Agridoce escrita por lassdamsel INATIVO, Opelon


Capítulo 1
Agridoce.


Notas iniciais do capítulo

A primeira página da fanfic pertence à Maricchi e estará em negrito. Onde eu começo estará em negrito e sublinha para que assim saibam onde uma começa e acaba ^^



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Senti meu cenho franzir enquanto eu observava atentamente ao homem a minha frente. Era impossível acreditar que ele realmente estava me pedindo aquilo. A minha vontade foi de chutá-lo para fora da minha casa e dizer que depois de tudo o que ele fez ele não era nada bem-vindo em meu país. Seu rosto estava corado, o que indicava que viera até aqui correndo, mas por um momento eu não me importei se estava cansado.

– Não vais convidar-me à entrar? – ele falou, olhando-me de forma inteligente.

– Não há necessidade, Portugal – respondi seco. Todos adoravam me fazer de trouxa, mas dessa vez... Bem, dessa vez não seria tão fácil.

– Por favor, Brasil – ele pediu novamente. Suspirei. Eu infelizmente era incapaz de dizer não a alguém, mesmo que fosse um cretino como Portugal.

– Vou pensar no seu caso, velhote – foi a melhor resposta. Fechei a porta na cara dele, sem me importar se o acertaria ou não. Eu tenho meu próprios assuntos para resolver, não tenho que ficar ajudando-o com suas crises econômicas. Isso porque ele sempre me passou o maior sermão sobre como cuidar do dinheiro!

Subi as escadas tratando de pisar forte nos degraus para que ele ouvisse – eu sabia que ele ainda estava em frente a porta. Ao chegar lá em cima, fui direto para meu quarto e atirei-me em minha cama. A resposta ‘não’ tamborilava em minha cabeça com um batuque irritante. Eu queria dizer que não, minha consciência queria me impedir de gastar tempo com aquele babaca. Mas meu maldito emocional e subconsciência imploravam por ajuda-lo, afinal, ele estava necessitado.

Necessitado? Ele nunca se importou comigo! Não de verdade pelo menos. Era apenas um interesseiro, um abusado. Me explorou, me abandonou e agora queria minha ajuda? Não pude impedir que a minha mente regressasse para séculos atrás. Para a pior época de minha existência.

–--

Brasil, 1808.

Eu fui literalmente enfiado naquela droga de roupa que até agora não sei o que é, só sei que fede a pó. E o idiota do Afonso está lá embaixo atendendo a porta. Claro, porque aquele amigo dele está aqui.

Quando me olhei no espelho de novo a única coisa que queria era arrancar aqueles penduricalhos presos na gola e jogá-los pela janela. Europeus estranhos... Vestir tanto roupa para quê? Sinto dizer, mas nenhuma roupa bonita supera a beleza de um corpo. E essa aqui com certeza não era a melhor roupa que alguém poderia vestir. Se for pra feder a pó eu posso muito bem ficar sem isso.

Ouvi altas risadas vindas do andar debaixo da mansão. Pelo visto o tal do Inglaterra já tinha chegado. Olhei me pela última vez no espelho, meu cabelo escuro todo empapado com alguma coisa estranha que ele lambuzou nem sei porque. Bufei indignado e passei a mão neles de uma forma que ficassem mais o meu estilo, com alguns fios mais rebeldes. Sorri maroto. O Portugal ia se exaltar um pouco nessa reunião hoje. Logo, ouvi Afonso chamando meu nome e só pude revirar os olhos. Abri a porta e desci as escadas mantendo a melhor máscara de calmaria que pude trajar.

Vi, com gosto, o rosto de Afonso transformar-se em uma carranca quando pisei os pés na sala, que até poucos momentos, era o palco de grandes risadas. Os olhos dele, presos aos meus, perguntavam-me silenciosamente o que eu pretendia, quase temerosos do que eu poderia fazer. Sorri mais ainda. Um pigarreio foi o suficiente para que eu quebrasse o contato visual entre mim e o português. Virei o rosto de lado e pude notar duas grandes bolas verdes me encarando com indisfarçável curiosidade. Estava sentado em uma grande poltrona de couro, uma xícara de chá pousada, displicentemente, em sua perna esquerda. O vi se levantar com graça, deixando a xicara na mesa de cento. O andar era firme e havia um quê de nobreza neles.

Ele era da minha altura, percebi, e também continha menos músculos. Ele tinha uma pele clara, diferente da minha, que era uma pele mais escura, forjada por dias de incansáveis trabalhos à luz do Sol. Usava roupas estranhas, cheias de babados e objetos. Será que cheiravam a pó também? Agora, se algo havia-me chamado a atenção, era o rosto dele. O formato era fino, acentuado por seu queixo. Os lábios eram finos e quase sem coloração. As bochechas tinham um tom pálido, sem cor alguma. O nariz era reto e arrebitado. Os olhos, porém, eram belos, incríveis esmeraldas vivas num rosto sem cor. Porém, um pouco mais acima de seus olhos, se encontrava algo que eras por deveras curioso: suas sobrancelhas. Grandes, grossas e quase juntas. Franzi o cenho diante daquilo e uma risada já estava para escapar de meus lábios quando o vi estender a mão para mim, numa tentativa de me cumprimentar.

– Sir Arthur Kirkland, England – Havia um forte sotaque em sua voz e ele falava de forma lenta, como se estivesse degustando algo de extremo sabor.

– Luciano Oliveira, Brasil - Falei estendendo a mão, o cumprimentando. Sua mão era gélida. Um suspirou de alívio prosseguiu logo após o nosso cumprimento. Lisboa estava satisfeito, era vidente. Era como se ele esperasse outra reação minha. Não que eu mesmo não quisesse agir de outra forma. A começar pelas roupas...

– Feitas apresentações, espero que sente-se, Kirkland. Ainda temos negócios a tratar, creio que não vais querer fazer-te isso em pé, ou vais? - Perguntou Afonso, sua entonação era mansa como sempre usava quando queria que alguém fizesse suas vontades. Vi Inglaterra mira-lo com os olhos em brasa, a boca fina presa numa linha reta e rígida. Ah... Então ele percebeu o que se escondia por baixo daquele tom de voz. Esperto, admito.

– Sim, creio que temos negócios a tratar, porém deixe-me ser cordial. Temos tempo e eu realmente gostaria de saber como andas teu irmão, Carriedo - Frio, seco e com um leve tom de desgosto na voz - E temos também o pequeno Oliveira. Deixe-me desfrutar da sua companhia afinal, esperava uma criança, não um homem quase pronto hoje - terminou com um sotaque mais forte. Virou-se e caminhou lentamente até a poltrona de couro. Franzi o cenho. Como assim uma criança? Ele achava que ia tratar assuntos de meu país com uma criança? Era isso mesmo? Já acomodado na poltrona, olhou para mim, percebendo minha clara confusão. Sorriu de lado.

– Confuso? – Perguntou - Deve se perguntar o porquê de eu achar que encontraria uma criança aqui. Bem, minhas informações devem estar, digamos... Atrasadas - Perguntou mais para si mesmo do que para mim – Sim, atrasadas é um bom termo. Sempre o vi através de pinturas, Brasil. Pinturas que me mostravam uma criança afoita correndo e desbravando matas. Uma criança que hora estava com um... Arco, certo? Ah, sim... Um arco em mão, hora uma faca... – Parou e olhou para mim. Um sorriso estranho desenhava seu rosto. O olhei com a sobrancelha erguida, um gesto para que prosseguisse. Ele apenas assentiu e mirou Afonso, que parecia tenso. Seus ombros estavam curvados, os olhos baixos e ele mexiam nervosamente as mãos.

É, ele estava nervoso.

– Continuando – Inglaterra disse, tomando minha atenção – Nunca me disseram que teríamos aqui um homem. Espero que tenha um bom motivo para nunca ter-me contado tal detalhe, Lisboa – Se dirigiu a Afonso de forma calma, porém não menos medonha. Escondia nos olhos um brilho maligno, diabólico – Sabe que não gosto que me escodam as coisas...

Deixou a frase no ar. Afonso engoliu seco, os olhos trêmulos. Eu nunca tinha visto aquele babaca daquele jeito. O tal do Kirkland, pra mim, parecia simplesmente um metidinho à nobre. Tudo o que eu queria naquele momento era rir muito da cara daquele português, sempre tão cordial e respeitoso, e agora completamente domado, com medo de que eu fizesse algo errado e estragasse o acordo completamente. Mas já chega, eu mesmo queria terminar logo com aquilo.

– Por favor, peço para que o senhor, sir Kirkland, seja breve – expliquei – Não tenho tempo para ficar brincando por aí. Quanto ao fato de que o senhor achava que eu era um garotinho, deve ser pela demora na troca de informações e ao fato de que eu cresci rapidamente. Como nações, creio que não sou o único, estou correto?

Extremely right, boy! – Kirkland sorriu – Meu protetorado América também cresceu muito rápido... I think too fast even for countries. Mas claro, vamos aos negócios. E a que solução chegamos após você ter pensado, Afonso?

– Nós acreditamos que a abertura dos portos brasileiros será adequada e que vossa senhoria, Inglaterra, será o mais beneficiado, dentre os aliados, com essa atitude – Afonso disse, sorrindo não mais tão nervoso.

– Ótimo – Inglaterra bebericou seu chá enquanto eu parecia uma árvore de Natal, em pé no meio da sala de visitas. Os dois continuaram a conversar ali sobre assuntos banais de seus países e também sobre o meu, no qual eu nem era convidado a participar. Eu sabia que Afonso tinha medo que eu falasse besteira e Inglaterra não quisesse investir em mim, sendo assim, seus lucros seriam menores. Como sempre, o dinheiro reinando acima de tudo.

Uma jovem negra que aparentava ter a minha idade adentrou o cômodo com uma bandeja de prata. Seus cabelos tinham cachos fortes e ela sempre os mantinha soltos, enfeitados com um lenço. Eu já tinha a avistado frequentemente caminhando pela casa. Eu conhecia praticamente todos os escravos deste engenho de cana e sempre conversava com todos eles, claro, sem que Portugal soubesse. A moça sorriu gentilmente para mim, de modo que os outros dois não se apercebessem e rapidamente deixou a badeja sobre a mesa, pediu licença e retirou-se.

Os homens continuaram ali, como se nada tivesse adentrado a sala, como se a bandeja sobre a mesa tivesse chegado lá voando. E eu ainda estava lá, de pé, sentindo meus punhos se fecharem e meu maxilar travar. Mirei com raiva os dois homens à minha frente, sentados, gesticulando e falando. Estavam normais. Malditos.

–... Então como fazem para manter os escravos na linha? - O assunto pescou minha atenção. Mirei Kirkland - esse era o sobrenome, não? -, os olhos em brasa, o fulminando. Este apenas continuou com o rosto indiferente. Afonso virou a cabeça, olhando-me nos olhos. Algo em seus olhos brilhou com arrependimento para logo depois ser sobreposto a frieza com a qual eu me acostumei.

– Bem, não é muito difícil, sabe? Eles nos temem, à nós, seus senhores e donos... Os carrascos também ajudam. Os amarram à postes de madeiras e os chicoteiam quando eles reclamam... Miseráveis. Lhes damos teto e comida e eles ainda reclamam - Seu tom transbordava superioridade. Eu já não ouvia mais nada, a raiva queimou em meu interior.

– E o que fazem quando as mulheres dão a luz? - Perguntou Inglaterra. Novamente indiferente.

– Isso não lhe diz respeito! - Cuspi as palavras, me intrometendo.

–Brasil! - A voz de Portugal soou alta e repreensiva - O que pensa que estás a fazer? Não podes falar assim com o Sr. Kirkland. Peça desculpas!

Olhei para Afonso e depois para Inglaterra, este se mostrando alheio, apenas com sua enorme sobrancelha direita erguida. Ah... como eu queria que meu punho atingisse aquela face e quebrasse toda aquela pompa dele. Depois diria, com a maior cara de inocência, que foi sem querer. Que meu punho o atingiu por livre e espontânea vontade. Simples. No entanto, Portugal ainda me encarava. Esperava por um pedido de desculpas que não viria. Pois ele ficaria a esperar, conclui.

–Vamos, Brasil! Peça desculpas por sua insolência! - Gritou exasperado, levantando-se de sua aconchegante poltrona. Àquela altura meu sangue já fervia e minha mente nublava. Meu gênio começava a dar as caras.

– Não pedirei desculpas para alguém que mal conheço! - Gritei - Ele acha que pode chegar aqui e simplesmente questionar sobre um assunto como esse?! E você, Portugal, ainda trata ele como se fosse um rei! - As palavras escapavam da minha boca, fluíam como um rio que segue seu curso. Foi quando vi.

Vi os olhos de Afonso se fecharem com força e os verdes do inglês se estreitarem de maneira perigosa. As duas esmeraldas me fitavam, me mediam, procuravam por algo. O clima na sala era pesado, respirar era difícil. Afonso tremia, os olhos ainda fechados, a boca se movendo. Ele parecia fazer uma prece silenciosa. O inglês pomposo ainda me mirava, caçando por algo que eu não sabia se queria descobrir o que era. E eu? Bem, eu saí da sala. Meus pés pesavam quando me dirigi para fora daquele lugar. Ignorei os protestos do português e as esmeraldas indagadoras o inglês. Não me lembro de ter aberto a porta dos fundos e tampouco me lembro de como cheguei lá. Mas quando vi não pude evitar de sorrir.

Ao fundo da Casa Grande um grupo de escravos praticava sua usual capoeira. Claro que Afonso não tinha ideia que aquilo era uma luta, português ignorante. Mas era melhor que continuasse sem saber, afinal, ele poderia priva-los da única fonte de diversão que tinham. Sem permitir que eles me vissem e tendo certeza que Afonso não sairia repentinamente e abandonaria o convidado, eu dei a volta na casa e passei por trás do engenho, indo na direção da floresta. Quando vi que já havia adentrado no mato o suficiente para que ninguém me visse, comecei a ir na direção do rio enquanto tentava me livrar daquele maldito negócio pendurado em meu pescoço... Mas qual a função de um lencinho? Idiotice.

Rasguei-o com um puxão, tomando cuidado para não enforcar a mim mesmo e comecei a desabotoar aquele casaco gigante e fedido. Larguei os trapos para trás e comecei a caminhar mais afoito quando comecei a ouvir o barulho da água caindo da pequena cachoeira. O colete disse adeus junto com os botões da camisa de baixo. As botas seguiram logo depois e no momento eu me via livre, apenas com as calças – afinal, aquela peça de roupa havia se tornado um hábito. A única parte do vestuário que eu não largara no mato fora o casaco gigante e com cheiro de mofo. Afonso adorava aquele casaco, e havia me emprestado justamente para a ocasião.

Embora minha cabeça gritasse um “dane-se” bem alto e claro e clamasse por jogar o casado na água para ser levado pela correnteza, eu fiz a minha boa ação do ano e deixei a peça de roupa no canto, próxima a uma raiz de árvore. Pena que as botas de Afonso não tiveram o mesmo destino. Lancei-as do outro lado do rio, visualizando a face alva do tal Kirkland e sorri ao ouvir o barulho delas acertando o chão coberto com musgo. Uma reclamação em inglês foi ouvida em minha mente, e o olho roxo do Inglaterra era bem claro. Gargalhei alto. Observei o rio correndo abaixo e a cachoeira que o alimentava bem ao meu lado. Desci as pedras cautelosamente enquanto retirava o cinto e deixava a última peça do vestuário para trás, em cima de uma rocha úmida.

Quando meus pés tocaram a água gelada pude sentir a vitalidade daquela cachoeira penetrar em meu corpo de baixo para cima, eu sorri e entrei mais fundo, até estar coberto na metade dos quadris. Enfiei-me debaixo da cachoeira permitindo que meus cabelos se molhassem e abaixei a cabeça, sentindo a nuca ser atingida pela água. A sensação era tão hipnotizante que perdi completamente a noção do tempo. Esqueci até de minha raiva com Portugal e o amiguinho idiota dele. Esqueci-me de tudo. Tanto que levei uma susto quando a irritante voz entupida de sotaque daquele português babaca irrompeu meus pensamentos.

– Estás a brincar de João e Maria, largando suas roupas por aí, menino? - Virei-me para encará-lo, pouco importando-me com meu estado. Vi seus olhos percorrerem meu corpo e ele percebeu que notei sua ousadia. Virou o rosto para o lado e gesticulou em direção as calças.

– Vista-se, Brasil – sorri com sua vergonha.

– Não quero me vestir – pirracei – estou bem aqui.

– Eu disse para vestir-se! Temos que conversar sobre o se comportamento estúpido na companhia do senhor Kirkland. Ele já foi embora no momento, por sorte ainda aceitou negociar conosco – dei de ombros e voltei para baixo da cachoeira. No entanto, a água gelada não foi capaz de fazer com que o olhar do português estupido ardesse menos. Prendi a respiração e mergulhei. A cachoeira não era funda, se eu fosse ao seu limite a água bateria em meus ombros. Porém, era funda o suficiente para que eu pudesse aproveitar um mergulho. Meus pensamentos voltaram a rondar a minha mente e me perguntei o porquê de tudo aquilo. Não precisava do inglês metido a Rei em meu país, mas Afonso achava que sim. Não precisava de todo aquele luxo e roupas caras, todavia Afonso acreditava que sim. Meu povo não deveria ser escravo, porém, para Afonso, apenas os negros deveriam. Os brancos não, exceto aqueles que não tinham dinheiro o suficiente para se manter. Eu não o entendia. Eu era feliz daquele jeito, era feliz à minha maneira. A maneira dele de ser feliz era torta, errada e quebrada. Ele chegou aqui, em minha terra, dando presentes e depois ordens. Eu ainda era uma criança e nada entendia, apenas aceitava aquilo que o estranho engomado me dava. Só percebi que aquilo tinha um preço quando já estava preso em uma jaula...

O ar começava a me faltar resolvi que era a hora de submergir, voltar a estúpida superfície. Dei algumas braçadas com mais força e logo eu já estava com a cabeça para fora d’água. Eu puxava o ar com força, meus pulmões exigindo mais ar do que lhes eram permitidos ter.

– Pensei que ias morrer - ouvi Afonso reclamar cheio de ironia.

– Como se isso fosse fazer diferença - resmunguei baixo, já saindo da cachoeira. Passei as mãos em meus cabelos, tirando o excesso.

– O-oque estás a fazer?! - Gritou Afonso com a voz estrangulada. Olhei para ele e arqueei minhas sobrancelhas. Ele apenas se limitou a me olhar. Ou melhor, olhar meu corpo. Eu via seus olhos desenharem meus ombros, peito e barriga de maneira minuciosa, como se gravando cada detalhe. Seus olhos baixaram um pouco mais e seu rosto tingiu-se e rubro...

– Gosta do que vê? - Perguntei convencido, com um sorriso que destilava sarcasmo. E foi o que bastou para que ele saísse do transe. A boca abria e se fechava com força, nunca realmente pronunciando algo. As mãos foram aos olhos, os tapando. Gargalhei.

– Pare com isso, Lisboa. Até parece que nunca viu alguém nu - Zombei dele que ainda estava com as mãos nos olhos. Virou-se de costas.

– Cubra-lhe as vergonhas! - Gritou, exasperado.

Calma. Será que...? Não poderia! Ele era um adulto, alguém com mais experiência do que eu, seria impossível ele nunca ter...

– Sério? Não acredito, Lisboa! Como pode nunca ter visto alguém nu na vida? - Falava entre uma risada e outra quando um pensamento me surgiu - Não! Então você nunca dormiu com outra pessoa?! - ri alto.

– Cala-te! Cala-te! - Sua voz era corrida, estrangulada e demasiadamente alta – Tu não sabeis de nada, idiota! - E ele continuou a resmungar, entretanto sua voz era sobreposta perante minha imensa gargalhada. Eu sabia que seria castigado pelas risadas, pouco me importava. Peguei minhas roupas, o vento soprava leve, me fazendo ter cocegas. Com Afonso ainda de costas para mim, me troquei. De certa forma senti-me um pouco culpado pela vergonha de Afonso. Realmente, esses europeus não estavam acostumados à nudez, mesmo que ela fosse incrível e natural. Eu me lembro que ele quase morreu de vergonha ao chegar aqui, por isso logo tratou de enfiar-me nessas vestes que tanto odeio.

– Pronto – exclamei, já vestido com as calças.

– Coloque as botas e o casaco também, menino – Afonso disse, cautelosamente se virando para me encarar.

– Não... Esse casaco fede e as botas estão do outro lado. Estou com preguiça de ir até lá – comecei a voltar pelo mesmo caminho que fiz, descalço mesmo. Os galhos, as folhas e a terra não me incomodavam. Prosseguimos em silêncio pelo caminho de volta, localizando meus trapos de roupas que Afonso recolhia. Eu sentia seu olhar queimando em minhas costas novamente, mas dessa vez não sorri. Sabia que aquele olhar que ele estava me lançando não era de luxúria.

– Acho que já sabes o que iremos fazer, não sabes, garoto? – ele disse pausadamente e com um tom de voz estranho. Eu já sabia o que iríamos fazer, aquela não seria a primeira vez que ele me castigaria. Mas eu já pegara o hábito... Meu lema era o mesmo que o do meu povo: se formos punidos por experimentar, nem que seja apenas um pouco, o gosto da liberdade, valerá a pena.

Caminhei ao local onde ele me castigaria. A punição não era tão severa, obviamente. Ele não tinha intenção nenhuma de me matar, apenas marcar-me o corpo já seria o suficiente. Eu também não era amarrado ao tronco, e sim lançado ao chão. Afonso empurrou-me com certa grosseria – grosseria forjada, apenas para que ele não amolecesse na hora das chibatadas – e fui ao chão, já preparando-me. O som agudo do chicote cortando o vento me foi familiar. Em minha opinião, a primeira chibatada não é a que dói mais. Mas mesmo assim não pude evitar de retrair meu corpo. Se eu ficasse quieto aquilo acabaria logo. Pelo menos era o que eu esperava.

O chicote desceu novamente e novamente, acertando minhas costas em pontos já doloridos e marcados por antigos castigos. Eu apertei os dedos em nós firmes no chão, apertando a terra em minhas mãos. Ouvi-o contando. Estava na quinta. Quando ele me acertou mais uma vez, com força maior do que o normal, virei o rosto para o lado e abaixei a cabeça, encostando a lateral do rosto do chão. Mordi o lábio inferior com força. Minhas costas ardiam muito. Meus olhos embaçados pelas lágrimas que eu não deixaria caírem conseguiam visualizar, ao longe, a escrava que antes servira a bandeja na sala. Ela me olhava, mas eu não focalizava em sua expressão. A sétima, a oitava, a nona e a décima desceram cortando, rápidas e barulhentas. Contorci meu corpo e senti-me quente. Algo escorrendo pelas laterais das minhas costas, o sangue finalmente.

Eu ouvi Afonso murmurar a quantidade de chibatadas que já haviam sido dadas e não pude acreditar quando, mesmo que parecendo ter-se passado cem golpes, ele ainda estava no décimo terceiro dos usuais vinte golpes. Permaneci forte, sem me permitir gritar. Gritar é para os fracos, e não sou fraco. Sou o Brasil.

Décimo quarto. Sangue manchando meu corpo. Décimo quinto. Minhas dedos enrolados na terra. Décima sexto. A garganta sufocando um grito. Décimo sétimo. Estava acabando. Décimo oitavo. O ar me faltou. Décimo nono. Minha visão ficou desfocada. Vigésima. O chicote cortou com extrema força o ar, rasgando minha pele com força. E então um suspirou escapou dos lábios de Afonso. Ele finalmente havia acabado. Minhas costas ardiam de maneira excruciante. O sangue, carmim e viscoso, deveria as ter pintado. Deveria ter pinceladas de vermelho respingadas por todo o meu corpo, maculando minha pele. Tentei me erguer, porém meu corpo ignorou o comando. Ele arqueou, mas não levantou. Doía demais.

– Seu tolo, não tente se levantar - Recomendou-me meu carrasco particular. Sorri, meu rosto a centímetros da terra.

E mais uma vez tentei e falhei. Tentei de novo, fracassei mais uma vez. Meu corpo ia, gradativamente, se acostumando a dor, a pele machucada e ao sangue derramado. Por fim, com esforço, consegui-me ficar de joelhos, ficando de costas para ele. Os ombros encurvados, as mão fechadas no joelho e com a boca travada. Eu tinha consciência de que Afonso me olhava curioso, como sempre ficava nessas situações. Segundo ele, era impossível alguém ser tão persistente e tão tolo, como eu e meu povo éramos. E toda vez que ele dizia aquilo eu apenas me limitava a um riso falso. Ele não me conhecia, não conhecia minha nação e não conhecia nada sobre nós que não fosse, estritamente, de seu interesse. Ele era o tolo, não nós. Seus olhos em mim e vendo que eu não iria falar algo tão cedo ele disse:

– Brasil... - Começou, receoso.

Ah, eu sabia onde ele ia parar com esse “Brasil...”. Ele me olharia com os olhos cheios de culpa, mas não me pediria desculpas. Era um orgulhoso de primeira. E eu, como um idiota, iria o perdoa-lo, pois ele me fazia acreditar que eu era o errado, e não ele. Fazia-me acreditar que eu pedia por aquilo. Já estava a responder para que ele não começasse com aquilo de novo quando senti uma mão gélida passear de forma atrevida em minha nuca. Ergui a cabeça com rapidez, me perguntado o que diabos o português tinha na cabeça. E eu de fato o faria se meu corpo não tivesse sido jogado, de novo, no chão. Resmunguei quando minha cara entrou em contado com a terra. Minhas costas arderam no ato, segurei um gemido de dor, não iria fraquejar na frente daquele imbecil.

– Mas o quê...? - Essa foi a pergunta interrompida quando Afonso girou meu corpo, ficando de frente comigo. A surpresa? Ele sentado em meus quadris.

A segunda surpresa? Ele segurando minhas mãos acima de minha cabeça. A terceira, e talvez mais importante, surpresa? Ele, de forma brusca, me beijar. O beijo em si já era violento, nada esperado do português idiota. Sua língua vasculhava, afoita, minha boca. Explorava cada pequeno lugar, os decorando. E eu não sei quando nem o porquê, mas me via correspondendo o beijo com igual intensidade. Nossas línguas se entrelaçavam numa dança perigosa. O ardor do beijo aumentava quando, ao que parece, Afonso resolveu esquecer meus pulsos presos e resolveu explorar meu corpo. A dor ainda estava lá, claro, mas isso pouco me importava no momento. O que importava no momento era o como o cabelo do português era macio! Eu o puxava, literalmente, pelos cabelos, não crendo que aquele português seria tão vaidoso a ponto de ter cabelos macios e cheirosos.

Minhas costas arderam profundamente quando ele deixou seu corpo cair lentamente sobre o meu e eu me contorci abaixo dele, tentando me separar e parar de beijá-lo graças a dor, mas parece que ele não havia conseguido entender. Seu peso continuou o mesmo e eu senti meus olhos lacrimejarem mais e, por mais que eu tentasse impedir, algumas lágrimas de angustia rolaram pela minha face. Apoiei minhas mãos em seu peito tentando empurrá-lo, mas meus braços ardiam e latejavam fortemente, apenas perdendo a batalha para minhas costas. Afonso parecia levar aquilo como um estímulo, pois seu beijo ficava mais profundo, porém para mim aquilo era mais para uma tortura. Aquele português parecia não precisar respirar!

Momentaneamente juntei todas as minhas forças e fiz pressão o suficiente para nos afastarmos alguns centímetros, fazendo nossos lábios de descolarem. Ele me olhou incerto do que fazer, com os olhos curiosos. Infelizmente eu havia deixado aquela maldita lágrima escapar. Afonso tentou de alguma forma passar a mão em meu rosto, e já ia abrindo a maldita boca para me perguntar alguma idiotice, mas com o resto de forças que me sobrara empurrei-o de cima de mim e levantei-me cambaleante. Olhei em volta. Eu sabia que eles não estavam a vista, mas me observavam, como sempre faziam quando eu apanhava. Eles viam que eu sofria o mesmo que eles, e que não por ser um país eu sairia impune, mesmo que os golpes que eu levasse fossem mais fortes que os deles. Até hoje tento entender o porquê disso.

Sem nem olhar para trás, fui o mais rápido que pude para o outro lado da floresta, o lado onde não havia o rio. Pude ouvir o português idiota levantando-se e imaginei sua cara de irritado... Algo parecido com “Acabou de apanhar, já quer mais?”, e foi o que ouvi. Resmunguei um xingamento feio e prossegui meu caminho, com minhas costas quentes e ardentes, dessa vez não por trabalhar no sol. Eu não conseguia entender Afonso, por que aquele filho de uma... argh! Aquele maldito havia me beijado! Mas claro, vindo dele eu sabia que não significava nada de mais, nada além de um simples beijo. Algo como um “estou interessado em te beijar, mas sabe, depois vou continuar te explorando, então não me leve a mal!”. Naqueles momentos eu preferia até a companhia do chato do Argentina. Daquela vez, para mim, a dor constante, aguda e irritante em meu peito era parte do castigo.

Brasil, 1822

Aquele seria o golpe do milênio. Afonso perderia, seria lançado fora daqui... Eu venceria. Seria finalmente livre. Aquela carruagem chacoalhava mais que qualquer coisa, tanto que em um momento eu não sabia que estava com a mão na minha perna ou em Afonso, mas eu ignorei. Tudo sairia conforme o planejado, afinal estávamos quase chegando ao ponto combinado.

– O que estás a achar do passeio, Brasil? Suas terras estão a cada dia mais... – ele começou a falar, todavia foi cortado em meio à sua frase por um golpe de direita que lhe dei na face. Portugal me olhou sem entender nada, tinha caído do banco. Aproveitei-me de sua posição inferior e puxei sua própria espada da bainha, apontando-a para sua garganta.

Ou ficar a Pátria livre, ou morrer pelo Brasil. Você perdeu, Portugal - ele passou a mão no canto da boca, limpando o sangue que escorrega do corte em seu lábio inferior e deu um sorriso estranho.

– Isso é o que tú pensas, menino – rebateu.

A carruagem chacoalhava de forma violenta. O terreno era pedregoso, eu sabia. Eu também sabia que se quisesse mesmo o controle de minha nação teria que agir daquele jeito, teria que usar de armas. Portugal ainda tinha aquele sorriso estranho no rosto quando, num solavanco, a carruagem pulou. Provavelmente havia passado por uma pedra grande. A espada tremeu por um milésimo de segundo sobre sua garganta, o suficiente para abrir uma brecha para o português que, com destreza, admito, chutou-me no peito. A força do impacto foi o suficiente para me desequilibrar e recuar um pouco a espada. Afonso levantou-se e, rápido como um tigre, pulou em minha direção. Não consegui me defender quando ele atingiu-me o rosto com o punho fechado. Me choquei contra a porta da carruagem que continuava balançando de forma violenta. Ergui a espada, porém seu cabo era curto, dificultando minha agilidade. Era um sabre. Eu não estava acostumado a sabres. E Lisboa sabia disso, uma vez que me prensou contra a porta no momento que ergui o braço.

Um click e eu via meu corpo sendo jogado para fora, junto com o de Afonso. A maldita porta estava aberta. Constatei quando senti minhas costas se chocar contra a terra. Gemi. Ouvi o muxoxo vindo de Portugal e exclamações de sua tropa. Aquele maldito insistiu em trazer sua escolta particular. Os cavalos relincharam e o cocheiro parou de puxar a carruagem. Todos nos miravam. Levantei com algum esforço e olhei em volta, constatando que havíamos chegado no lugar combinado. A terra era coberta, em partes, por grama, porém havia grandes pedaços cobertos por terra. O rio ficava perto. Sorri. Afonso revezava o olhar entre minha pessoa e sua espada que havia caídos à alguns metros distante de mim. Seu olhar se arregalou quando o som de cascos invadiram o ambiente que até então estava silencioso.

– Até que fim, rapazes - Disse quando um homem de estatura mediana chegou perto de mim montado num belo garanhão de pelagem negra.

– Antes tarde do que nunca - revolveu, a voz carregada do sotaque dos povos do norte.

Apenas sorri, pois eles haviam chegado, minha tropa. Algo em meu peito inflava. Orgulho.

E então algo foi ouvido, um estralo seguido de um grito agudo. O som de uma bala arrancando uma vida. O sorriso morreu no mesmo instante e meus olhos foram para a cavalaria de Afonso, caçando o responsável. No entanto, todos ainda estavam com suas armas guardadas, ainda estavam surpresos. Uma única pessoa estava com arma em mãos e seus olhos transmitiam ódio. Afonso, que estava irado. E de repente eu não vi mais nada, não ouvia e nem sentia. Me contaram, anos depois, que eu havia pegado a espada do chão e marchava até Portugal. Transbordava ira. E quando, cheguei perto dele, a guerra começou. Tiros e estampidos eram ouvidos. Estávamos em vantagem numérica, porém eles tinham armas de fogo, nós apenas arcos, espadas e algumas armas que consegui pegar escondido da guarda.

Investi pesado contra Afonso, a espada fazendo um “x” no ar. Queria o sangue dele sob o fio de sua própria espada. O maldito se defendeu usando o cabo de sua arma para impedir o movimento completo. A espada pegou em sua mão deixando um rastro vermelho por onde passou. Ele gemeu antes de pegar meu braço e torce-lo, fazendo-me ficar de costas para si com o braço torcido. Pendi minha cabeça para trás com força, e senti que havia acertado seu nariz em cheio, fazendo-o me soltar rapidamente. Me afastei para me recuperar. A minha volta tudo estava um caos. Eram humanos enfrentando humanos, brasileiros contra portugueses, injustiçados contra opressores. Portugal gemeu de dor e apalpou o nariz suavemente. Infelizmente, a pancada não havia sido certeira o suficiente para quebrar seu nariz. Olhei para cima ao sentir algo pingando em mim: chuva.

– Pare com isso, Brasil. Não vá começar com essa infantilidade de “independência” novamente – ele disse com a voz cansada, porém ainda com a espada em punho – Vamos nos acalmar e ir para casa. Ninguém precisa morrer por motivos fúteis.

– Motivos fúteis? Motivos fúteis? Acha mesmo que as pessoas que estão aqui estão seguindo ordens? Eles estão aqui por que querem, Afonso. Eles se arriscaram para proteger sua Pátria e para vê-la livre. Você é apenas um europeu ignorante, não entende o verdadeiro valor de uma vida. Maltrata as minhas pessoas. Chega! – eu disse, muito irritado, minha espada preparada para atingi-lo, igualmente.

Portugal suspirou exausto. Na certa não estava cansado da batalha. Aproveitei seu momento de distração e avancei contra ele, a lâmina de baixo para cima, enganchando na dele, rodando, desarmando-o. Rapidamente Afonso puxou sua pistola e a utilizou para se defender, no lugar da espada. O sabre se apoiava na pistola, e ambos forçávamos as armas umas contra as outras. Agilmente ele fraquejou repentinamente, fazendo-me perder o equilíbrio e cambalear. Afonso desviou para as laterais e enquanto eu me recuperava o mais rápido que podia, pude sentir o cano da arma de fogo em minha nuca. Cerrei os dentes.

– Largue a arma, Luciano. E vamos para casa.

Franzi as sobrancelhas e meus dedos fraquejaram por sobre o cabo da espada. Eu o apertava firmemente, não iria derrubá-lo. Mas no que tudo aquilo daria? Se Afonso atirasse em mim eu poderia talvez ter a chance de me recuperar, por ser um país. Mas o que aconteceria com a população enquanto eu estivesse mal? Embora algo no fundo de minha consciência insistia que Portugal não teria coragem de matar sua própria colônia. Eu discordava de mim mesmo. Havia visto as crueldades que ele fez com seres humanos. Não duvidava de mais nada vindo desse idiota. O aperto no objeto foi se afrouxando aos poucos, e logo a lâmina tombou com um baque surdo. Algo como “boa escolha” saiu dos lábios do idiota. Ao meu redor ambos os guerrilheiros lutavam habilmente, impossível dizer de quem era a vantagem, alguns completamente encharcados graças a tempestade.

Novamente imundas lágrimas – malditas! Sempre elas! – Tornaram a encher meus olhos. Pisquei rapidamente, tentando aliviar o ardor incessante, falhei. Leves trilhas salgadas percorrem seu caminho por meu rosto, depositando-se em meus lábios. Eu havia perdido mais uma revolução. Quantas mais teria que criar para me ver livre? Quando mais seria necessário sofrer para que as pessoas ficassem simplesmente bem?

Senti os dedos de Portugal apertarem meus fios de cabelo na nuca com força, puxando-me para trás com tudo, o cano da arma ainda apontando para minha cabeça e seu dedo no gatilho.

– Tu cresceste grandiosamente, menino. Não... não és mais menino. És um homem.

Foi isso que ouvi Afonso sussurrar em minha orelha antes de puxar meu rosto para o lado em um simples beijo. Calmo, suave e na chuva, com meus cabelos sendo puxados e uma arma em minha direção. Com barulhos de espadas e tiros, de gritos e de choros. Em meio a uma guerra, Portugal me beijara. Eu fiquei sem reação, meus olhos arregalados, quando finalmente ele se afastou de mim e sorriu brevemente. Parou de ameaçar-me com a pistola e lentamente, recolheu sua espada do chão e fez o caminho de volta para sua carruagem.

A chuva caia sobre a minha cabeça. Gelada. Ela vinha de forma despretensiosa, chegando de fininho. E tão rápida como veio engrossou. Veio lavando o sangue, limpando a terra.

Meus olhos o seguiam, confusos e querendo respostas. Não podia ouvir o soar de suas botas chafurdando na terra molhada, mas podia perceber o quão duro ele pisava. O orgulho dele estava trincado, eu o trinquei. Ele, por fim, chegou em sua carruagem. Girou a maçaneta da porta e, antes de entrar, gritou:

– Voltem aos seus postos, cavaleiros! Esta luta perdemos! - Seu grito se sobressaiu naquela cacofonia de sons. Entrou em sua carruagem e bateu a porta com força. Brasileiros e portugueses o olharam embasbacados e viram, assim como eu, o pobre cocheiro de bigode grande açoitar os dois cavalos e seguir pela terra. Os sons dos cascos batendo na terra eram encobertos pelo som da, agora mais grossa, chuva. Eu estava trêmulo. Percebi isso quando apertei com mais força o cabo de minha espada e notei que não conseguia fechar minha mão envolta dele. Os cavaleiros, então, foram montando em seus cavalos -os que não morreram em campo - e iam cavalgando atrás da carruagem. Levavam no lombo dos animais corpos. Os que caíram mortos sobre a terra e os que estavam machucados. Eram orgulhosos e não pediriam ajuda.

– Senhor? - Rafael, um escravo e grande amigo, me chamou. Virei-me e encarei-o. O rosto dele estava manchado de rubro e havia um corte superficial em sua bochecha.

– Sem “senhor”, Rafael - reclamei - Não sou tão velho assim, amigo - Brinquei. O vi sorrir torto, mostrando dentes incrivelmente brancos.

–Pois bem, há bastante feridos em campo, não posso estimar quantos. Mortos também - Vi os lábios dele tremerem e seus olhos marejarem. Senti um aperto em meu peito e minha boca secou. Quantos haviam sido mortos pelo fio da espada?

– Chame Maria e peça a ela para trazer as curandeiras - Minha voz era pesada, culpada. Rafael me olhou, crispou os lábios. Revolveu:

– Sabe que nada disso é sua culpa, eles vieram aqui por que, assim como ti, queriam sua terra livre. Queriam a liberdade que lhes foi tomada, Luciano. Morreram por algo que acreditavam, não se culpe - Sua voz era dura e oposta a sua face serena. Ele sorriu e eu sorri também. Ele estava certo.

– Espere, tem algo que preciso fazer - Falei me encaminhando para o rio.

Percebi que Rafael e meia dúzia de pessoas me olhavam sorridentes, eu apenas devolvia cada sorriso. Eles estavam machucados e ainda sorriam felizes. A chuva os castigava e eles ainda sorriam. Eu estava perto do rio, a chuva ainda fustigava em meus cabelos, ainda estava machucado, o sangue ainda pingava em alguns pontos do meu corpo. Porém isso não me impediu de erguer a espada. Não me impediu de inflar o peito. Eu estava chegando, já estava as margens do Rio Ipiranga quando o grito veio, trazendo minha amada independência junto.

–Independência ou Morte!

Eu ouvia gritos e palmas. Finalmente estava livre.

Abri os olhos rapidamente assim que percebi que havia adormecido. O cochilo fora leve, nada de mais, porém possuíra as lembranças mais excruciantes de minha existência. O maldito do Portugal.

Esses sonhos apenas me mostraram o quanto de ruim ele já fizera para mim, sendo que não merecia minha ajuda em tal hora de necessidade. Mesmo que houvesse me ajudado aquela fez que Holanda tentou me invadir, tudo fora por interesse próprio, nada mais. Com França a mesma coisa. Portugal me ajudou, porém pediu mais do que eu podia lhe dar em troca. Na verdade, pediu muito mais do que o próprio serviço valeria.

Levantei-me de minha cama, completamente descansado e vívido. Bocejei e espreguicei-me, o ritmo de sempre ao acordar. Porém claro, a luz que vinha da janela não era a mesma da manhã, era um tom alaranjado: o pôr do Sol. Eu dormira a tarde inteira.

Com a mais gigante das preguiças, caminhei pelos corredores e desci as escadas, indo em direção a cozinha. Porém, no meio do caminho, algo chamou a atenção de meus olhos embaçados. Esfreguei-os para ter certeza.

Parado a frente da minha porta de entrada, jazia Afonso. Sua sombra era a única coisa que era possível de ser vista de dentro da minha casa, mas isso me fizera chegar à conclusão de que ele passara a tarde toda ali aguardando por minha resposta. Trouxa.

Minha vontade era de passar reto e deixa-lo ali a vida toda, mas algo no fundo do meu peito me forçou a ir até a porta e abri-la. Quando fiz isso, ele tombou para dentro. Estava dormindo apoiado na porta e acordara em um solavanco assustado.

– Brasil? – Tentou se recompor o mais rapidamente que pode, como se não estivesse dormindo à porta da minha residência. Eu ia xingá-lo mas decidi que já havia feito isso com muita frequência naquele dia, mesmo que em sonhos – Já decidiu? Podes ajudar-me?

Olhei nos olhos dele por alguns segundos, tentando responder aquele ‘não’ que meu cérebro tanto me ordenava a dizer, porém aquela maldita culpa me assolava. Ele poderia se dar muito mal por causa dessa dívida, o problema econômico europeu não estava afetando apenas a Península Ibérica, e sim à todos. Desde o bobalhão do Antonio até a estranha Natalia. Suspirei enquanto baixava a cabeça. Apesar de todo o sofrimento e nunca fui do tipo de pessoa que guarda rancores, por mais extremos que os motivos sejam. Ele me encarava como se eu fosse a última esperança do mundo – e de fato era. Aquela expressão não me comoveu. Em fato, me deu vontade de chutá-lo porta afora, mas franzi o cenho e fiz uma expressão emburrada enquanto falava entredentes:

– Tudo bem, Portugal... Eu ajudo você.

Os olhos dele brilharam.

– Sério? Oh! Obrigado Luciano! – ele radiou e repentinamente avermelhou-se, mudando a posição e tomando uma postura rígida e séria – Nós agradecemos pelo auxílio, Brasil – ele virou-se de costas e retirou-se de minha casa, murmurando um adeus baixinho. Não pude evitar de sorrir, Portugal sempre era o mesmo: casca grossa e um chato por fora, mas por dentro era uma criança. A mesma criança que me diziam que eu era – normalmente – por fora. Meus olhos o seguiram até o momento em que ele se tornou uma sombra pálida no laranja do horizonte.

Uma estranha paz preencheu meu coração.

Continuei ali, na soleira da porta olhando o céu, pelo que pareciam horas. O céu já tinha enegrecido quando as lembranças voltaram a batucar em minha mente. Elas eram como escolas de samba: Barulhentas, cheias de significados, ritmadas e cheias de sons e cores. Elas batiam, incansáveis, em minha mente. Vinham aos montes derrubando, quebrando e estilhaçando as barreiras que criei em torno de mim mesmo. Eu ainda tinha marcas em minhas costas, marcas de um passado sofrido e regado a escravidão. Meus lábios ainda eram rachados pelos gritos de dor meus e daqueles que dividiram comigo a pele rasgada por chicotes, facas e armas. Mas meu povo sobreviveu, eram insistentes… Eram como eu.

No entanto, havia as boas memórias. Aquelas que me deixavam cheio de saudades, que traziam-me um gosto doce na boca. Nunca me esquecerei da vez em que eu consegui convencer Afonso a participar da Roda de Capoeira. Claro que ele ainda não sabia que era uma luta, para ele era tudo uma estranha dança. Os olhos deles brilhavam ao ver os movimentos serem executados na batida do berimbau. Foram bons dias, apesar de tudo.

O vento bateu, fresco, em meu rosto e eu soube que era hora de entrar e deixar aquelas lembranças para fora. Fora de minha casa e minha vida. Mas eu fracassaria, sabia. Isso de esquecer nunca foi uma qualidade minha. Não guardava rancor, tampouco perdoava. Havia dor demais para se perdoar.

Entrei e, antes de fechar a porta, algo preencheu minha mente, corpo e coração. Meus sentidos entorpeceram com um cheiro incrivelmente familiar. Minha boca pedia por um gosto que eu não poderia lhe dar. E meu coração pedia para que eu remendasse os trapos que ainda faltavam para completa-lo. A imagem de Afonso então apareceu em meus pensamentos trazendo seu cheiro e gosto. E eu apenas roguei contra ele. Ele ficara do lado de fora da porta há muito tempo. Eu ignorava a saudade e a dor, pois ele, assim como as lembranças que eu tentava esquecer, faziam parte de um passado do qual prefiro não lembrar.


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Notas finais do capítulo

Esclarecimentos: O nome da fanfic me veio a mente pelo fato de eu (Doce Amarga) ter na cabeça a idealização de que toda lembrança, tanto boas como más, tenha um lado amargo e um lado doce. E Luciano aqui tem muitas lembranças e sofre com elas. E não, nada tem haver comigo u.u.
Tentamos retratar uma relação conflituosa e, sinceramente, acho que conseguimos.

então... é isso gente! o/ Espero que tenham gostado! Eu e a Maricchi trabalhos duro e esperamos que tenham agradado vc's! E agradeço a MINHA ( isso mesmo, minha) Pichu por me aturar e aturar todas as vezes que quis me jogar da ponte por não conseguir terminar um parágrafo ¬¬ . Pichu, tu és minha diva *-*
Agradecimentos da Maricchi: agradeço a Mayumi e espero que as leitoras tenham sentido a profundidade dos sentimentos do Port em relação ao Brasil e vice-e-versa, mesmo com essas brigas. Também agradeço muito a Doce Amarga por ter divado ao extremo durante essa fic. Ela ficou linda *-*



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