Lexy me acorda. Estou deitada no chão, apoiada na minha capa de chuva.

O céu parece cinza, como se tivesse chovido mais uma vez. Não me sinto molhada, mas um vento bate no meu rosto quando levanto. Percebo uma blusa azul larga estirada em cima de mim, como um cobertor.

Quando olho para frente, espero encontrar Lexy ou Harry, mas é um outro menino.

Aproximadamente da mesma idade que meus aliados, magro, provavelmente mais alto do que eu, com cabelos loiro-escuros e olhos cor de âmbar, quase dourados. É o garoto que vi ao meu lado na cornucópia.

Procuro pela minha espada, levantando do chão, mas não a acho. Muito menos minha mochila.

Estamos em uma clareira cheia de cavernas como a que me escondera antes, exceto que essa é maior e as cavernas são mais espaçosas. O garoto loiro está encostado na entrada de uma das cavernas, olhando para mim.

– Faith? - ouço Lexy atrás de mim. - Está tudo bem, Josh não vai te machucar.

Então esse é o Josh de quem estava falando, penso.

– Onde está minha mochila, Lexy? Onde está minha espada? - pergunto me virando, olhando para a garota.

– Harry a levou para achar alguma coisa para comer.

– Sem minha permissão? Aquelas armas são minhas, ele pode nos matar, ele pode...

Lexy se levanta e segura minhas mãos, sem me deixar terminar.

– Vai ficar tudo bem, se você me deixar explicar. - ela diz, como se me reconfortasse.

Faço que sim com a cabeça, dando a menina liberdade para falar. Ela pede para Josh se aproximar e nós três sentamos no chão de musgo, o garoto se ocupando em olhar para os lados e ocasionalmente para Lexy.

– Josh me achou no meu turno de vigia, e implorou para que pudéssemos ficar com ele. Harry concordou, desde que nos mudássemos para um lugar maior. Tentamos te acordar várias vezes para dar alguma opinião sobre isso, mas você estava simplesmente cansada demais. - a garota fez uma pausa olhando para mim, esperando que falasse alguma coisa. Mas queria ouvir tudo antes de abrir a boca. Ela engoliu em seco e prosseguiu. - Josh disse que sabia o lugar certo. Nos levou até lá enquanto nos revezávamos para carregar você.

Fiz um sinal para que Lexy parasse agora.

– Vocês poderiam ter me jogado no chão alguma vez, eu acordaria. - começo a dizer, me sentido culpada por terem de me aguentar enquanto percorriam uma distância. - Ou talvez me matado. Não teria importância.

– Acredite, nós te derrubamos algumas vezes. - não fiquei feliz com o sorriso discreto no rosto da menina. Nem no de Josh. - E eu pedi para que você ficasse conosco. Precisaríamos da sua hospitalidade e sua esperteza. Além de que sua habilidade com lâminas é incrível.

– Ok, entendi. - digo, sem vontade de argumentar. - Mas, afinal, onde está Harry?

– Então. - ela faz sinal com as mãos para continuar a história. - Nós acabamos com suas frutas e sua água no meio da noite, e Harry se ofereceu para buscar mais. Levou sua mochila porque as coisas da mochila dele estavam la dentro também, e pediu a espada para se proteger.

Lexy olha de novo, aqueles olhos verdes esperando que eu compreendesse.

– Faz quanto tempo que ele foi? - pergunto depois de um tempo.

– Não sei. Parecem horas. - Josh se põe no meio da conversa.

– Algum canhão soou? - faço outra pergunta, dessa vez preocupada com qualquer outro tributo.

O menino faz que não com a cabeça.

O barulho de plantas me assusta. Deve ser apenas Harry, digo para mim mesma, mas o medo me impede de ter certeza.

Graças a Deus.

É Harry. Harry um pouco sujo de... aquilo era sangue? Não, muito rosado. O rosto estava meio inchado, como se não esperasse por um momento de sono. A espada que ele trazia, minha espada, estava um pouco suja de terra e de uma espécie de gosma preta, que pingava vagarosamente.

Espera... Aquilo atrás dele era alguém? Mais uma pessoa.

Sim, era. Mais especificamente uma menina.

Mais baixa que Harry, tinha a pele morena e olhos castanho-escuros. O cabelo quase preto estava armado em um rabo-de-cavalo alto, e o rosto estava sujo de terra e tinha alguns arranhões. Sua calça vermelha estava rasgada na altura dos joelhos, e a menina carregava uma adaga na mão.

– Trouxe mais frutas... - Harry começa, baixinho. - E uma aliada. Julie Price, distrito 6.

Não sei se olho com descrença como Lexy, medo como Josh, ou vergonha como Julie. Escolho a raiva, afinal.

– Nada contra você, Julie. - digo quando me aproximo. - Mas não acha que é perigoso? Esse número de pessoas?

– Apenas cinco, Faith. Se mais alguma aparecer, juro que peço sua opinião antes. - diz o garoto alto ao lado da menina, olhando para mim.

Respiro fundo e levo os dois para sentar com Lexy e Josh. Colocamos as frutas que Harry colheu no meio do círculo que formamos e comemos devagar. Julie fica relutante no começo, mas depois se deixa levar.

– Temos de achar água. - Lexy quebra o silêncio. - A de Faith está quase acabando, a de Josh é pouca e Harry não tem muita coisa na sua mochila também.

Vejo duas mochilas jogadas perto de onde o garoto mais alto deixou a minha espada suja. Uma delas é a minha, a outra é laranja, e parece mais cheia. Vejo um reflexo azul. Aquilo é um a mochila dentro de outra? Agora sei de onde vem as três fontes de água.

– Conheço um córrego. - a menina que veio com Harry se pronuncia. Sua voz fina treme de vergonha por um momento. - Não é tão longe de onde você me achou. - ela olha para o menino que a resgatou.

***

Chegar ao córrego foi mais rápido do que eu esperava.

Foram alguns minutos de caminhada até lá, eu, Harry e Julie andando juntos, se revezando de vez em quando para prevenir tantos as costas do grupo quanto a frente de tributos perdidos ou perigosos.

Quando comecei a ouvir o barulho de água, meus lábios se secaram instantaneamente, como que implorando pelo líquido. Engolia em seco e continuava, até a hora que minha boca colava de tão seca.

Finalmente achamos o riozinho, passando fortemente por entre duas metades de musgo, separando o pântano ao meio. A água era tão transparente que era possível ver o fundo do córrego, verde da cor do chão em que pisávamos.

Julie se joga no chão e mergulha as mãos na água, levando o líquido à boca com voracidade. Eu e Harry nos ajoelhamos e bebemos um pouco também, mais cautelosos.

– Julie, Faith, olhem. - o menino ao meu lado pede para que paremos de beber do córrego. - Não estamos sozinhos.

Olho para o lado. Definitivamente há uma sombra se aproximando. Me projeto para trás, segurando a espada que agora estava comigo. Harry pega um das facas no seu bolso e Julie fica olhando, hipnotizada demais para pegar a sua adaga perto da mochila laranja que trazemos com os três recipientes para água.

A sombra começa a tomar forma, e vira o reflexo de uma menina segurando um arco. Uma menina alta e ruiva. O rosto dela aparece depois de alguns segundos...

Oh, não.

Começo a me levantar, pronta para usar a espada para ferir, mas não matar.

Não que eu ache que poderia matar a carreirista do 1.

Quando a menina chega mais perto, nos escondemos atrás da árvore mais próxima, eu ainda segurando minha arma com força. Ela parece não notar nossa presença, mesmo com Julie mexendo nas folhas com medo, minha lâmina de prata fazendo um brilho contra o riacho e Harry levantando e agachando de novo, para ficar estável.

Mas de alguma forma, sei que a garota nos observa.

Não, agora tenho certeza.

A carreirista vira para a árvore que nos esconde, os olhos verdes dela brilhando desafiadoramente.

– Aquele é Harry Pyhle? E mais atrás... Ah, Julie Price. Vi seu parceiro de distrito morrer. Na verdade, eu fiz ele morrer. - a voz dela dá arrepios, mas tenho certeza que poderia usá-la mais carinhosamente. Ela ainda não me notou até se aproximar do tronco marrom. - Sou Amy Histon. Oh, não. Harry, não me diga que você se aliou à pequena Faith Meinerz.

Seus olhos ameaçadores se fixam em mim, e não saem até eu me levantar.

– Onde está seu irmão, Amy? - Harry apela. Posso ver a fúria nos olhos da ruiva aumentarem dez vezes mais.

– Você não ouse falar de Fllyn! - ela grita e pega uma flecha para atirar no arco. Não mira direito e a flecha bate no tronco da árvore.

Irrompemos em uma luta, que no começo pareceu injusta por sermos três contra uma, mas considerando que Julie só dava chutes e socos sem força, parecíamos dois. Dois com a mesma força de Amy Histon, a carreirista do 1.

Uso minha espada mais como escudo do que como arma, mas isso não ajuda muito. Amy rebate e enfia as unhas na minha bochecha direita, deixando três aberturas sangrando. Minhas pernas estão cheias de hematomas, mas me movo o suficiente para acertar algumas vezes com a espada o tronco e os pés da garota.

Harry se sai muito bem, e usa com talento as facas. Não precisa usar a espada para mostrar que é bom. Juntos, prendemos a carreirista na árvore onde nos escondíamos e ela se debate.

– Me deixem sair!

– Vai nos matar se deixarmos? - a desafio com o olhar.

– Claro que vou! Estamos nos Jogos! - ela berra em agonia. - Me deixem sair!!!

Harry olha meio confuso. Oh não...

– Só se você formar uma aliança conosco. - o garoto diz, se virando para minha confirmação.

Balanço a cabeça mas ele não retira a proposta.

– Mas... - a garota está quase se rendendo. Por favor, mais alguém não...

Harry olha fundo nos olhos dela, buscando um ponto fraco.

– Acharemos seu irmão. - ele diz por fim. – O matarei com minhas próprias mãos.

Os olhos de Amy se enchem de lágrimas por um segundo, mas ela pisca rápido.

– Me rendo. - ela olha de volta para o menino alto.

Ah, não.

– Então vamos voltar para o esconderijo. - digo por fim. - Julie, você pode levar Amy na frente, por favor? Preciso falar com Harry.

A menina afirma com a cabeça e sai andando com a ruiva. Espero elas estarem à 20 passos de distância e me viro para o garoto de olhos azuis.

– Você não viu eu falando que não? - pergunto.

– Faith, você não entende... - ele começa.

– Não, não entendo. - o corto. - Daqui a pouco seremos a maior aliança já criada! Tributos vão suspeitar! Será mais fácil de nos matar assim!

– Como você sabe? - ele se enfurece. - Participou das técnicas de sobrevivência? Acho que não.

Não, não participei. Apenas de algumas, mas nunca fui até o final, nunca aprendi técnicas de verdade.

Ops, uma promessa quebrada. Minha professora pedira para passar por todas as estações no Centro de Treinamento. Bom, talvez muito tarde.

Andamos mais rápido e em silêncio até chegar a clareira.

Um lugar, onde não queria ter chegado.

Lexy e Josh cuidam de uma menina com algumas coisas da mochila laranja. Aposto que ela, seja lá quem for, virou nossa aliada.

Pele clara, cabelos escuros e lisos caídos soltos pelos ombros, olhos castanhos de um tom escuro muito bonito, quase hipnotizante, e rosto fino, cheio de hematomas.

Josh cuidava das suas bochechas quando nos ouviu chegar.

– Ah, oi. - ele diz. - Essa é Piper Eanes. Precisava de ajuda, pensei em usar a estratégia de Harry.

O menino citado dá um sorriso.

– Sabe que eu usei essa estratégia agora mesmo, caro Josh? - ele diz. - Conheçam Amy Histon.

Todos nós trocamos apertos de mãos e abraços breves com as novas aliadas.

Sim, faço parte da maior aliança já criada nas últimas 73 edições dos Jogos Vorazes.