Mantendo O Equilíbrio - Um Novo Amanhã escrita por Alexis terminando a história


Capítulo 20
Capítulo 19


Notas iniciais do capítulo

Umas mudanças de comportamento, surpresas do coração, flagras, gente se ferrando (respira, não é a Milena) e... Concordo com o Gui: Isso é lá música pra cantar pra uma garotinha?

Eita que o cap. tá cheio!

Enjoy.



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Sabe quando você é criança, dorme no sofá assistindo TV e acorda no outro dia no seu quarto, amontoada em seu lençol? Que alguém foi carinhoso o bastante de te erguer e te levar para um lugar mais confortável e você só percebe isso ao acordar? São mimos que se acaba gostando, mas que tem um fim logo que se cresce. Se não é chutada pra ir pra cama, te deixam “à deriva” no sofá, chão, cadeira, seja lá onde você inventou de dormir. Só que não foi assim que aconteceu...

Mesmo cansada do domingo, inventei de continuar o estudo para escritura de um trabalho do professor Bartolomeu, com os cálculos e análises dos dados, essa coisa toda que demorou a me deixar dormir. Na verdade, acho que em determinada hora os números se embaralharam todos na minha cabeça, não consegui distinguir 108 de 180, não sabia mais o que dividir ou multiplicar, assim me entreguei às pálpebras pesadas que finalmente caíram, como uma cortina ao fim de uma apresentação. Na passagem para o inconsciente sei que senti um livro sob minha barriga, o caderno no meu pé e acho que só deu tempo de, num comando fácil, hibernar meu notebook, onde provavelmente minha cara foi parar, no teclado.

Então, com meu inconsciente preocupado por essa entrega às 3h da manhã, quando o meu corpo chegou aos 80% de carregamento da bateria biológica, dei um salto da cama, um susto, tal qual um ser atrasado dá se o alarme não toca. Bom, o alarme não tocou, afinal, não coloquei e nem precisava, não estava atrasada, só pensava era no maldito trabalho acadêmico e como tava difícil em realizá-lo. Pensei que seria melhor que o anterior até chegar numa parte casqueira. E então me vi deitada ao longo da cama como a princesa que desperta e diz bom dia ao seu dossel.

Apesar de eu não ter dossel.

Pela última lembrança do segundo antes de eu e o notebook hibernarmos, tateei de imediato as coisas que dormi em cima. Nem sinal do notebook, caderno, folhas espalhadas, livros abertos e fechados, apenas eu, sobre um travesseiro, sob um lençol, coisas que não faziam parte de minha memória recente. Porque não foi ação minha.

Estavam tudo na minha mesa do quarto, transportados cuidadosamente. No fim das contas, meu irmão foi meu irmão, veio me socorrer. Sento e sorrio, na noite passada ele falava do lado bom de ter uma irmã... talvez queira elogios, talvez queira se sentir herói de novo. Ou queira trocar essa gentileza por algo. Vindo de Murilo, eu acredito.

O resto da manhã foi uma dedicação aos outros trabalhos pendentes. Finalizei um relatório para a aula de hoje, terminei minha parte de uma atividade em equipe da aula de Djane de amanhã, mandei para Flávia. Dona Bia comentou que eu estava de muito bom humor dentre tantos afazeres, que eu cantava sem saber junto com uma playlist qualquer que deixei tocando. Nesse ritmo, tomei meu banho, me arrumei para o estágio. Meu irmão chegou na hora para o almoço. Dessa vez ele mudou sua famosa fala de “Cheguei, família” para...

– Chegamos, família.

Trouxe Aline para almoçar conosco. Dona Bia foi lá mimá-los enquanto eu terminava de aprontar minhas coisas, já que a jornada dos meus dias era então ir para o estágio e de lá para a faculdade. Cumprimentei os dois na sala. Enquanto dona Bia ia apresentar suas gostosuras de almoço, segui Murilo que se encaminhava para o quarto. Queria agradecer o bichinho. Pairando perto dele, ele ficou desconfiado.

– O quê? Eu sei, te levo pro estágio, nem precisa pedir.

– Ah, não era isso.

– Então?

Me estiquei, segurei seu rosto e dei um smack silencioso lá na bochecha dele. Que sorri levemente ante minha atitude. Só estranhei ser um pouco fraco, ele costuma fazer um alvoroço, como se eu não desse carinho suficiente para a peste.

– Brigada... Que foi?

– É só que... eu vi. A passagem, você já comprou.

Será que na hora que ele foi ao meu quarto, vasculhou minhas coisas? Porque a passagem estava bem guardada, posso assegurar. Vendo que eu suspeitava disso, Murilo trata de especificar. Ou consertar a impressão que ficou.

– Eu vi na impressora. Fui usar hoje de manhã antes de sair, tinha uma folha não impressa, aquelas páginas em branco que às vezes fica nos arquivos de boleto. Vi o site, presumi, você não negou agora.

– Hum. Sim, já tenho data de viagem, comprei quarta.

– E por que não me falou?

– Porque você não gosta de nada relacionado a ela? Convenhamos, tu num é fã dessa minha viagem. Pensei que... sei lá, com Aline, e feliz, eu num queria estragar teu humor... E fiquei na dúvida de como ia aceitar isso.

– Tá, confesso que não é das melhores coisas, mas tô tentando, tu sabe. Não quero mais saber disso, de ficar na dúvida de abordar comigo. Simplificar e não complicar, lembra?

Sorrio de canto.

– Lembro.

– Então vamos almoçar, antes que dona Bia mime alguém demais.

– Com medo de perder o posto?

– SEMPRE.

~;~

As coisas no escritório estavam indo bem para certa companhia indesejada na sala em que fiquei. André não perdia uma chance de soltar qualquer piadinha idiota, era sempre o mais resistente quando nosso chefe e treinador pedia alguma coisa. Nessa tarde eu verificava umas planilhas com a lista de empresas que tinham contrato conosco, buscava dados daquelas que não tinham atualizado no sistema, assim o setor poderia mandar alguém para fazer a média quanto aos nossos serviços e tal. Não sabia o que André fazia, só sei que hoje ficamos todos em uma sala diferente. Na sala onde havia outros estagiários, como o Gui.

Eu conversava com ele por mensagens de celular, mesmo estando no mesmo local. Não podia dar bandeira, né? Estava no silencioso, de qualquer forma, assim ninguém dava conta do que fazíamos. E como eu usava a calculadora do meu celular algumas vezes, ajudava a disfarçar. Confesso que dentre essas mensagens a gente não discutia só sobre a aula de Marketing e algumas atividades relacionadas... Logo virou palhaçada. E então Gui mandou uma que não soube interpretar se era brincadeira ou verdade. Dizia assim “Você também tá ouvindo um choro de bebê? Parece que tá vindo da sala de reuniões”.

Acontece que a sala de reuniões ficava ali do lado, mais precisamente no canto onde Gui trabalhava. Eu estava do outro lado, André teve de sair para levar umas papeladas para o setor jurídico. Nem deu tempo de eu responder quando a porta da tal sala abre para esse setor em que estávamos, o choro de criança se fez presente, choro alto e desesperador, e Thiago, meu treinador-chefe, aparece meio desorientado, varrendo com os olhos alguém. Para em mim. Oh-oh.

– Milena, onde está o... o... não importa o nome dele, o seu companheiro?

Odiei a referência. Ele poderia ter dito “o mala que estuda com você”, ficaria mais aceitável e conforme com o ser, porque pessoa André não é. Enquanto isso, o choro se tornava cada vez mais alto, fazendo várias cabeças daquela sala se virarem para espiar.

– André foi no setor jurídico, como o senhor pediu. Algum problema?

– Errrr... preciso de você aqui. E do André. Quer saber? Qualquer pessoa. Chame e venha aqui imediatamente.

Assim eu pude arrastar o Gui, que observava tudo calado. Arrumei rapidamente as coisas que eu analisava e me encaminhei para onde Thiago havia sumido, Gui só fez levantar porque sua cadeira era quase colada com a parede da sala de reuniões. Abri e vi uma cena um tanto... fofa. Thiago tentava distrair uma garotinha que chorava, estava numa cadeirinha de criança pequena em cima da mesa redonda de reuniões, a sala vazia, a menina não devia ter dois anos, se esgoelava que deixava o homem nervoso.

– Senhor?

Ele se vira tenso, com um ursinho branco de coração na mão – o ursinho, não o chefe – os ombros para baixo como desistentes. A menina dava trégua alguma, chorava abertamente, olhava para meu chefe, abria o berreiro, ele ficava sem jeito. Ele implorou praticamente.

– Preciso de ajuda.

E foi assim que conseguimos fazer um trabalho juntos naquela empresa, eu e Gui. Meu chefe falou com o chefe dele, eles sumiram do mapa. Pelo que Thiago me contou rapidamente, a mãe da neném era sua irmã, que teve uma emergência e não tinha com quem deixar. Encurtando mais a história, ele não sabia cuidar da sobrinha.

Quando o tio Thiago saiu, a menininha Sarah abaixou mais o berreiro. Ou ela não gostava do tio mesmo ou aquele choro lhe doía a garganta. Vai saber? Eu não falava nenenês. Acho que ela não queria era ficar com o tio, queria ficar com a mãe. Com uns brinquedos na bolsa da menina, eu e Gui tentamos distraí-la, batemos chocalho, fizemos vozinhas chatas mexendo os ursinhos, nada a animava.

Como nada resolvia o bico da garota, que nos olhava como os seres mais estranhos, Gui disse para eu cantar algo de criança. O que tentei, ela não gostou da musiquinha do Bob Esponja. Eu não tinha muito jeito com crianças mesmo. Só com Murilo. Gui me cutucou ante meu fracasso.

– Tenta outra coisa.

– Ora, e por que você não tenta também?

– E eu lá sei?

– E só por que sou mulher tenho de saber, é?

– É!

– Hum. Você sabe assobiar?

– Por quê?

Trilha sonora indicada/citada: Bruno Mars – The Lazy Song

http://www.youtube.com/watch?v=fLexgOxsZu0

– Me acompanha. “Today I don't feel like doing anything... I just wanna lay in my bed”. Assobia, Gui!

– Nan-ham! Isso é lá música pra cantar pra uma garotinha?

Acontece que não tínhamos chance ou outra ideia, então foi essa mesma. As partes que não eram indicadas para menores eu embolava, falava qualquer outra coisa, menos seguir a real letra porque era injusto dizê-la para uma criança tão inocente. Eu seria processada ou algo do tipo.

Incrivelmente a menina gostou.

Improvisei umas palmas pra acompanhar o ritmo, puxei o Gui pra dançar uns passinhos, balançava a cabeça, brincamos com umas bonecas e ursos, fizemos um show particular improvisado. Foi gratificante ver a menina rir para nós, mostrar seus dentinhos, balançar os bracinhos. Esse foi nosso gás, que repetimos a música.

Até Thiago surgir com Iara pela porta dos fundos e nos dar o maior flagra de pessoas empolgadas cantando e dançando. Nos pegou bem na parte do “uh, uh, uh, nothing at all”. Como paramos de imediato, a menina Sarah não gostou e ameaçou chorar. Então Iara veio cheia de delicadezas cuidar dela, que sorriu novamente. Ela sabia fazer graça para criança, para nosso alívio. Principalmente de Thiago.

– Putz, Iara, nem sei como te agradecer. Certeza que pode ficar com ela?

– Aham. Vou levá-la para a sala dos brinquedos. Por agora estava com tudo no ponto, arrumava algumas coisas do sistema. Posso ficar de boa. Não é, lindinha?

E fez um carinho na pequenina, que se derreteu toda. Acho que ela só queria atenção. Ou carinho. Iara se armou com a bolsa com as coisas da neném, fez ela se despedir do tio, fez MEU CHEFE dar um beijo meigo na testa da criança (não é que ele não tenha alma, ele só não tem jeito com as pessoas às vezes), que então abriu a porta dos fundos para ela e quem surgiu, quem, quem, quem? O chefão.

– Iara? Como assim já sou avô?

Posso dizer que isso também foi... fofo? Meu Deus, Filipe em crise de fofura, é demais para meus olhos (ou ouvidos?). Ele riu da própria piada, se despediu de quem falava ao celular, puxou o nariz da garotinha e confirmou se Iara se encaminharia para a “sala das mamães”.

Ao que parece, existe uma saleta do outro lado do prédio, perto da entrada, feita especialmente para as mães que atendem os filhos pequenos, como a hora de mamar e coisas assim, uma assistência no processo de voltar a trabalhar após a licença à maternidade. Pelo que meu treinador de estágio falou, tem brinquedos, trocador, poltronas e até somzinho para acalmar crianças. Quase perguntei por que ele não levou a sobrinha para lá pra começo de história.

Pois então, Filipe nos mostrou essa faceta cômica dele. Até Gui ficou de olhos saltados. O que não durou muito, porque Thiago nos expulsou dali, nos mandou de volta ao trabalho. Quando voltamos, a sala estava vazia. Um funcionário apareceu para chamar Gui, que haveria uma demonstração de pesquisa, o que varreu os estagiários de marketing e publicidade fora dali, junto com os do setor de arte, design e T.I.. Nem deu pra ficar sozinha, André logo voltou.

Por um momento me senti azeda por ter que aturar ele na sala, me sentei onde estava antes e continuei meu trabalho. André ficou uns cinco biombos longe de mim, o que agradeci por muito dos outros estagiários terem deixado seus pertencentes, entre bolsas, mochilas, apostilas, livros e ademais por ali, assim Hermani se mantinha afastado e me deixava na paz. Mas para o que se sucedeu um tempo depois, agradeci por estar ali... eu tinha que ver essa cena.

Continuei meu trabalho. Estava absorta nos dados que organizava que nem vi quando alguém abriu a porta atrás de mim, só sei que essa pessoa entrou e se encaminhou para o outro lado, para a porta da sala de reuniões. Percebi que a tal pessoa falava ao telefone, e que a voz era de Filipe.

Foi esse meu alerta para levantar o rosto e observá-lo andar até lá. No celular ele pedia pelo telefone de alguém, que havia perdido o número e trocado. Antes de entrar finalmente na sala de reuniões, ele voltou-se um pouco e falou algo com André, quem estava muito à vontade, posso dizer, faltava apenas colocar as pernas sobre a mesa. As expressões deles não foram muito boas, mas mesmo assim André entregou algo a Filipe, que sumiu pela outra porta.

Me roí de curiosidade, num minto não. Quando acabei minha parte, fui lá rondar o André, aproveitando que tinha que entregar uns dados para ele também. Percebi quando ele alternou guias de tela, de alguma rede social para a planilha. Nem sabe disfarçar o cretino.

– Aqui estão os dados gerais e os específicos.

– Hum. Ok. Pode deixar aí.

Fiquei sem jeito, nem eu acreditei.

– E... o que foi isso ainda agora, quando o cara entrou?

– Ah, acho que era um desses assistentes que as empresas mandam para as reuniões. Cara chato, queria umas folhinhas de post-it para suas anotações. Entreguei logo pra não dizer que eu tava atendendo mal, mas também não fiquei calado. Respondi que aqui não era papelaria para se pedir post-it.

Levei as mãos à cabeça, meio rindo, meio desacreditada.

– Meu Deus, André! Tu tá chapado ou o quê?

– O quê? Que eu fiz? Nada demais. Ele que tava me interrompendo, oras. Sabe faz quanto tempo que eu tava tentando carregar vídeo do youtube? O sinal tá péssimo hoje.

Facepalm forever deve definir. Se bem que eu não sabia se ria, se gargalhava ou se informava quem era de verdade. Acho que ele merecia a verdade, né? Só pra aterrorizar um pouco, pelo menos.

– André, esse tal cara... bom, é nosso chefe. Quer dizer, ele é O chefe.

O espertalhão não entende. Dai-me paciência.

– Chefe de que setor?

– De todos. Ele é o dono da empresa. Ele é o Muniz.

– Ah, você tá de sacanagem comigo.

– Não dessa vez, André, não dessa vez.

Ele quis chamar todos os palavrões que sabia, quis. Não pôde porque Thiago surgiu lá da sala de reuniões, pediu para ver os dados que eu tinha entregado a André e verificar o trabalho para nos orientar à outra etapa. Quando nosso treinador saiu rapidinho, André ficou bufando de raiva de si mesmo, dizendo baixinho para si o que não pôde gritar. Ao voltar, Thiago nos levou para outra sala e foi nos mostrando uns procedimentos novos quando à consultoria, que era o nosso setor. Passei o resto da tarde me aguentando para não rir.

Se ferrou.

~;~

Seria uma boa matar aula se não fosse pelo convite que envolvia Anderson. Mas convenci Vinícius de que era por causa do trabalho que eu devia apresentar na aula de Marketing. Não tenho nada contra Anderson não, só... sei lá. Desde o aniversário de Vini fico com uma impressão estranha, de que ele sabe algo de mim, mesmo não sendo nada. Já dispensei outros convites que o envolvia, dessa vez consegui novamente. Porém senti que Vinícius notou algo diferente... Fiquei inquieta na aula por causa disso.

Sávio e Flávia ficaram me caçoando por andar distraída. Discretamente acabei contando a história de André e tirei o meu da reta, foi a graça do dia além do caso da neném chorando e eu e Gui lá para acalmar a garota.

Também dispensei meu namorado sobre a hora de me buscar. Não quis interromper a saída dele com os amigos, ele teria que dar uma viagem só pra me ver. Não pareceu justo. Consegui carona com Bruno, que pareceu animado demais. E Dani também foi conosco, como se fosse os velhos tempos, não tão velhos. Dessa vez ela não pôde ir com Yuri, ele ficou preso na biblioteca para algum trabalho.

Encontrei primeiramente ela enquanto Sávio me acompanhava para a parada de ônibus, ele insistindo em me deixar de moto, eu convencendo-o de que não era preciso. Ele desistiu quando Daniela disse que iria comigo. Logo Bruno apareceu também. Não sei o que deu no universo hoje de liberar várias turmas ao mesmo tempo, mas foi legal.

Poderia ter pedido que me deixasse na praia para encontrar com Vinícius e os amigos, porém estava cansada e isso talvez fosse pedir muito, apesar de o caminho não ser tão longe de carro. Além de que eu não poderia deixar aqueles dois sozinhos de novo, Daniela mesmo havia me pedido isso.

– Garotas, o que vocês acham de uma paradinha? Tô com fome.

Na hora de entrar no carro Dani discreta me empurrou para sentar no banco da frente, assim, estando mais perto, sou eu quem respondo. Entre bocejos, apertando os olhos para me manter acordada:

– Até que tô com fome... mas um... soninho tá me pegando. Capaz de eu me afogar numa sopa se colocarem na minha frente.

– Ô mulher dramática. Vamos, Lena, a gente não sai faz um tempinho...

– Tá, se a Dani quiser também, vô né?

Ela ainda não havia dito nada. Sentada ao meio do banco de trás, Dani responde como se fosse a coisa mais casual de se fazer. Como se não se importasse, mesmo eu vendo que sim, não sei Bruno. Ele vez e outra olha pelo retrovisor central interno do carro, e acho que não é só por causa do trânsito.

– Pode ser.

Paramos numa lanchonete perto de minha casa, pedimos uns sanduíches com suco. Nenhum dos dois quis fazer qualquer piada sobre álcool dessa vez. Aos poucos eles foram relaxando, me senti melhor quando Bruno fez uma piada machista sobre fantasias femininas de carnaval e Dani lhe deu um tapa no braço. Foi tão... espontâneo.

Rimos falando besteira enquanto o pedido não saía. Dado momento, no entanto, meu pensamento correu noutro paralelo. Percebi que sentamos na mesa onde já briguei com Filipe, na noite em que ele me atacou. É na verdade bem próximo da sorveteria onde Vini gosta de comprar sorvete.

Ver o comportamento dos meus amigos e olhar para trás... meses atrás. Poxa, como tudo mudou. Com uma brincadeira de Dani, eu retornei à conversa. Então ela quis saber de Vinícius, deve ter achado que era meu motivo de viagem, como sempre.

– Ele tá em aula ainda?

– Não, nem foi hoje. Resolveu matar aula, me chamou e tal. Só que eu não tava muito a fim, tinha atividade para entregar, participar de um debate... e tô meio esgotada. Para todos os efeitos, vocês que me arrastaram.

Bruno fez uma bolinha de papel com o guardanapo e jogou em meu rosto. Acho que ele estava muito carente de atenção, estava diferente. Claro que revidei, ninguém joga bolinha de papel em mim sem levar mais três de volta.

– Ah, poxa, faz tempo que a gente não se juntava para alguma coisa, jogar conversa fora. Na faculdade é sempre só... a faculdade. Aqueles dias da monitoria foram tensos, mas vocês não sentem um pouco de saudades?

Essa eu tive que comentar:

– Eu tô ouvindo certo ou o Bruno tá saudoso pela monitoria? Era ele quem reclamava 95% do tempo. Os outros 4% era de ele emburrado e o 1% de amizade. Como isso é possível?

Dani também replica, dá de ombros, brincava distraída com o canudo de seu suco. Bruno hoje não tá nada calado. Parece que quer manter nós duas faladeiras.

– Pensei que não gostasse de sair com a gente. Quer dizer, as meninas.

– Devo ter falado da boca para fora. Agora mal nos vemos.

Isso é verdade. De certa forma me sinto saudosa quanto a isso mesmo.

– É, my friend, é a lei do seguir em frente e manter próximo aqueles que conseguimos. Cada um tem um rumo, a questão é como cruzá-los.

Dani pega o celular para anotar. Ela achou bonito. Acho que estava tão cansada que, depois de dito, nem sabia bem o que havia falado. Talvez teria que consultar o bloco de notas do celular dela.

– Filosofou, hein, Lena.

– É o sono, acho.

Dali fomos deixar Dani em casa, depois Bruno me deixou. Nesse meio tempo ainda falei com Vinícius ao celular, que havia me mandado uma mensagem dizendo “Gol”. Fora do expediente dele, ficou difícil imaginar do que se tratava. Era que ele havia encontrado um fliperama para jogar videogame (viciado?) e ganhou várias vezes do amigo Anderson.

Disse que estava com saudades e faltava eu lá para torcer por ele, pois Susana havia pegado o lado do outro. Estavam apenas os três, ouvi a voz dela mandando um Oi para mim, assim como o próprio Anderson. Não comentei que havia saído com meus amigos, só que Bruno me levaria para casa.

Quando pisei na sala, Murilo se surpreendeu:

– Já? O tempo passou e eu não vi? E vocês sempre querem extrapolar o horár...

– Ah, não estava com Vini. Vim mais cedo, com Bruno e Dani, tô cansada.

– Hum. Vai querer comer alguma coisa? Posso preparar.

Acho que meu caso, minha exaustão, era penosa o bastante para ele se oferecer.

– Não precisa, fiz um lanche com eles ainda pouco. Vou só tomar um banho e não quero ver mais nada.

Fui me encaminhando para o quarto, mesmo sentindo que meu irmão parecia ter algo a falar. Talvez não fosse importante, pensei. Tomei meu banho, vesti um pijama confortável, o clima estava melhorando, sem muitas chuvas, sem muito frio. Um pouco antes de deitar, Murilo bateu à porta:

– Posso entrar?

– Poder pode, me encontrar acordada daqui a cinco, dez minutos, é outra história.

Desliguei a luz, me joguei na cama, fiquei até sem coragem de puxar o lençol. Pensei no trabalho escrito que deveria entregar na sexta, que eu deveria estar digitando algo, porém precisava de um descanso. Na noite anterior arrisquei fazer umas páginas e deu no que deu, eu dormir por cima de tudo.

Melhor eu estar mais disposta do que insistir nesse estado que mal sei meu nome. Sinto meu corpo se desfazer no colchão. Toda minha resistência estava de guarda-baixa, como se quisesse flutuar numa nuvem, ser levada para o sono dos justos.

Mas o colchão afundou na ponta, Murilo sentou, e de costas para mim. Algo o incomodava, e passava a me incomodar também. Numa piscada eu podia já estar no mundo dos sonhos. Se não estivesse ainda. Só soube que não quando ele começou a falar baixo. Puxei minha última energia para lhe dar atenção, ou pelo menos dispensá-lo.

– Preciso te contar uma coisa.

– Agora?

– Sim. Se não for agora, talvez não consiga falar depois.

Nada respondi, permaneci tão imóvel quanto ele que então, mesmo sob o escuro, se escondia em suas mãos, o rosto coberto por suas palmas. Eu via minimamente pela luz da lua que passava pela fresta de minha janela (me esqueci de ligar o abajur dessa vez). Entendi que era sério.

– Eu o vi.

Isso deveria significar alguma coisa para mim?

– Murilo, presumindo por seu português, se trata de um cara. Como ninguém da nossa família morreu recentemente, sendo homem pelo menos, creio que não está vendo fantasmas, mas isso não reduz muito as possibilidades de quem seja. E mesmo parecendo coerente dizer tudo isso, eu não estou num estado bem sã. Mesmo lidando com números, quero esquecê-los essa noite.

– Vi o Eric.

Aí a coisa definitivamente mudou de perspectiva. Apesar de não nos fazer mexer de forma alguma, duas estátuas numa cama. Mesmo cansada, com as pálpebras pesadas, meus olhos deram um jeito de saltar. Estava consciente até da respiração de Murilo, leve, temerosa, cuidadosa.

– E o que sentiu?

– Num sei. Primeiro que demorei a perceber que era ele. Estava parado num sinal, pensando longe quando meu olho bateu nele, quase do meu lado numa calçada. Um cara lhe dava apoio para entrar num studio, ele ainda com o pé coberto por aqueles protetores. Até então estava satisfeito por ter batido nele, mas eu só queria o bater no rosto, não quebrá-lo por inteiro, mesmo com toda a raiva me dizendo para matá-lo. Aquilo não fui eu, foi da queda que ele sofreu.

Não havia o que dizer, então só o ouvi, pois Murilo necessitava se deixar abrir.

– Eu acho que... ainda não me arrependo, não de coração como você me pede. Não me senti culpado se é o que quer saber. Ele não me viu e também não pude ficar olhando por muito tempo. Logo o sinal abriu e ele entrou no studio.

De qualquer forma era difícil para ele, eu tinha que ter isso em mente. Um dia Murilo iria abrir os olhos, ver realmente o que fez e as consequências de que não teve conhecimento. Eu não poderia mais tentar incutir o que havia acontecido no passado, ficar me repetindo sem fim. Não foi bem o cansaço que me deixou quieta, foi a chance de enfim dar uma oportunidade a meu irmão de ele se ajudar, a se recuperar, a refletir, por isso não repliquei ou briguei.

Minha voz saiu num fio. Ele então se virou para mim, pude sentir e ver pouco de seus movimentos. Muito receio o tomava.

– Obrigada por me dizer.

– Não tá zangada?

– Não. Você precisava disso.

Sei que entende. Até sua respiração dava um jeito de me dizer isso. De leve me toca os cabelos, faz carinho e faz piada.

– Esse tal sono realmente tá te afetando.

– Depois sou eu quem estraga os momentos.

– Convivendo contigo peguei a manha também. Obrigado por me ouvir, de qualquer forma. Boa noite.

Me beija na testa como um pai muito cuidadoso, ouço seu sorriso baixo. Às vezes ele se parece mesmo um. Não sei como papai não tem ciúme dele. Talvez tenha, vai saber. Tem muita coisa que nem família consegue desvendar uns sobre os outros.

– Vai, vai embora. Curtir com o sono de alguém é maldade.

– Até parece que você não curte com o meu.

– Até parece que eu disse que sou boazinha.

– Essa é a minha garota.


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Notas finais do capítulo

Mto amor ♥



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