Antes De Morrer escrita por Alan


Capítulo 10
Capítulo 10


Notas iniciais do capítulo

Olá aqui estou eu postando mais um capítulo :3 esse é o mais longo '-'



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Papai diz:
- Ei, você está acordado! – Então, ele repara na roupa que estou usando, e seus lábios se contraem. – Deixa eu adivinhar. Vai encontrar a Quinn?
- Algum problema?
Ele empurra as vitaminas na minha direção pela mesa da cozinha.
- Não esquece isto aqui. – Em geral, ele às leva em uma bandeja até o andar de cima, mas hoje não vai precisar ter esse trabalho. Teoricamente, isso deveria deixá-lo feliz, mas tudo que ele faz é ficar sentado ali me olhando engolir uma drágea atrás da outra.
Vitamina E ajuda o corpo a se recuperar da anemia pós-radiação. Vitamina A combate os efeitos da radiação no intestino. Olmo reconstitui a mucosa que reveste todos os tubos ocos do meu corpo. Sílica fortalece os ossos. Potássio, ferro e cobre estimulam o sistema imunológico. Babosa possui propriedades genéricas de cura. E alho – bom, papai leu em algum lugar que as propriedades do alho ainda não são completamente conhecidas. Ele o chama de vitamina X. Tudo engolido com suco natural de laranja e uma colher de chá de mel não-refinado.
Torno a deslizar a bandeja na direção de papai com um sorriso. Ele se levanta, leva-a até a pia e a deposita sobre a bancada.
- Eu achei – diz ele enquanto abre a torneira e enxágua a pia – que você ontem estivesse sentindo um pouco de enjôo e dor.
- Estou bem. Hoje não tem nada doendo.
- Você não acha que seria bom descansar?
Isso é um território perigoso, então mudo de assunto depressa e volto minha atenção para Sam, que está amassando seu corn flakes para formar uma maçaroca encharcada. Ele parece tão desanimado quanto papai.
- O que está acontecendo com você? – pergunto.
- Nada.
- Hoje é sábado! Você não deveria estar feliz por causa disso?
Ele olha para mim, zangado.
- Você não lembra, né?
- De quê?
- Você disse que ia me levar pra fazer compras nas férias de meio de trimestre. Disse que ia levar seu cartão de crédito. – Ele fecha os olhos com bastante força. – Sabia que você não ia fazer porcaria nenhuma!
- Calma aí! – Papai diz isso com a voz de alerta que sempre usa quando Sam começa a perder as estribeiras.
- Eu disse isso, sim. Sam, mas hoje não vou poder te levar.
Ele me olha com fúria.
- Mas eu quero que você me leve!
Então eu tenho que levar, porque faz parte das regras. O item número dois da minha lista é simples. Tenho de dizer sim para tudo durante um dia inteiro. Não importa o que seja, nem quem esteja pedindo.
Olho para o rosto animado de Sam enquanto saímos pelo portão, e de repente sinto uma onda de medo.
- Vou mandar um torpedo pra Quinn – digo a ele. – Pra avisar que a gente está a caminho.
Ele me diz que detesta Quinn, o que é bem difícil, porque eu preciso dela. De sua energia. Do fato de as coisas sempre acontecerem quando ela está por perto.
- Quero ir ao parquinho – diz Sam.
- Você não está meio velho pra isso?
- Não. Vai ser legal.
Muitas vezes me esqueço de que Sam é só uma criança, e de que parte dele ainda gosta de balanços, carrosséis e coisas assim. Mas não há nada que possa nos fazer mal no parquinho, e Quinn manda um torpedo de volta dizendo que tudo bem, ela ia chegar atrasada mesmo e vai nos encontrar lá.
Fico sentado em um banco vendo Sam escalar um brinquedo. É como uma teia de aranha feita de cordas, e ele parece bem pequenininho lá em cima.
- Vou subir mais alto! – grita ele. – Será que eu subo até lá em cima?
- Sim – grito de volta, porque prometi isso a mim mesmo. Faz parte das regras.
- Estou vendo dentro dos aviões! – grita ele. – Vem ver também!
É difícil escalar. Toda a teia de cordas balança, e sou obrigado a tirar os sapatos e deixá-los cair no chão. Sam ri de mim.
- Até lá em cima! – ordena ele. É muito alto mesmo, e um menino com o roto grande feito uma jamanta está sacudindo as cordas lá embaixo. Vou me içando até o topo, mesmo que meus braços doam. Também quero ver dentro dos aviões. Quero ver o vento e pegar passarinhos com a mão.
Chego lá. Posso ver o alto da igreja, as árvores que margeiam o parque e todas as castanhas prestes a explodir. O ar é limpo, e as nuvens estão próximas; é como estar em cima de uma pequena montanha. Olho para baixo, para os rostos virados na nossa direção.
- É alto, né? – pergunta Sam.
- É.
- Vamos no balanço agora?
- Sim.
Sim a tudo que você disser, Sam, mas primeiro quero sentir o ar em volta do meu rosto. Quero ficar olhando para a curva da terra enquanto giramos lentamente ao redor do sol.
- Eu te disse que ia ser legal. – O rosto de Sam está brilhando de alegria. – Vamos em todos os outros brinquedos!
Tem fila nos balanços, então vamos andar de gangorra. Ainda sou mais pesado do que ele, ainda sou seu irmão mais velho, e posso bater com as pernas no chão fazendo-o pular bem alto e gritar e dar risada ao cair com força em cima do traseiro. Ele vai ficar com hematomas, mas não estou nem ligando. Diga sim, apenas diga sim.
Vamos a todos o brinquedos: a casinha no alto da escada na caixa de areia, onde cabemos por um triz. A motocicleta em cima de uma mola gigante, que pende feito bêbada para um lado quando me sento em cima, fazendo-me ralar o joelho no chão. Há um cavalo de madeira onde fingimos que somos ginastas, uma cobra com as letras do alfabeto para andarmos em cima, um jogo de amarelinha, barras assimétricas. Depois voltamos para os balanços, onde uma fila de mães com seus lenços de papel e seus bebês de cara gorda me dão um muxoxo de reprovação quando corro na frente de Sam até o único balanço livre.
Meu calção deixa aparecer minhas coxas. Isso me faz rir. Me faz inclinar para trás e subir ainda mais alto. Talvez, se eu subir alto o suficiente, o mundo seja diferente.
Não vejo Quinn chegar. Quando Sam aponta para ela, está encostada na entrada do parquinho olhando para nós. Talvez esteja lá há séculos. Está vestindo uma blusa justa e curta e uma saia que mal cobre o seu bumbum.
- Oi – diz ela quando chegamos perto. – Estou vendo que já começaram sem mim.
Sinto-me corar.
- O Sam queria que eu andasse no balanço.
- E você teve que dizer sim, claro.
- Sim.
Ela olha para Sam, pensativa.
- A gente vai ao mercado – diz a ele. – Vamos fazer compras e conversar sobre ficar menstruada, então você vai achar muito chato.
Ele a olha zangado, com o rosto todo sujo de terra.
- Eu quero ir na loja de mágica.
- Ótimo. Vai lá então. A gente se vê mais tarde.
- Ele tem que vir com a gente – digo a Quinn. – Eu prometi a ele.
Ela dá um suspiro e se afasta. Automaticamente, Sam e eu a seguimos. No colégio, Quinn era a única menina que não tinha medo da minha doença. Ainda é a única pessoa que eu conheço que anda na rua como se assaltos não acontecessem nunca, como se as pessoas nunca fossem esfaqueadas, ônibus nunca subissem nas calçadas, doenças nunca acontecessem. Estar com ela é como ouvir que eles se equivocaram e eu não vou morrer, quem vai morrer e outra pessoa, e é tudo um erro.
- Rebola – diz ela por cima do ombro. – Mexe esse quadril, Kurt!
- Por que você tem que fazer o que ela diz? – pergunta Sam.
- Eu tenho e pronto.
Quinn fica radiante. Espera nós dois a alcançarmos e me dá um tapinha no braço.
- Está perdoado – diz.
- Perdoado por quê?
Ela se aproxima de mim como uma conspiradora.
- Por ter sido tão horrível com a história de sua trepada de merda.
- Eu não fui horrível!
- Foi sim. Mas tudo bem.
- Cochichar é falta de educação! – diz Sam.
Ela o empurra na nossa frente e me puxa para mais perto enquanto caminhamos.
- Então – diz ela. – Até onde está preparado para ir? Se eu disser pra você fazer uma tatuagem, você faz?
- Sim.
- Você tomaria drogas?
- Eu quero tomar drogas!
- Diria “eu te amo” praquele homem?
O homem para quem ela aponta é careca e mais velho do que o meu pai. Está saindo de uma loja que vende jornais e revistas enquanto rasga o celofane de um maço de cigarros e deixa o papel cair de sua mão até o chão.
- Diria.
- Então vai lá.
O homem tira um cigarro do maço, acende e sopra a fumaça no ar. Ando até ele e ele se vira, com um meio-sorriso no rosto, talvez esperando ver alguém conhecido.
- Eu te amo – digo.
Ele franze o cenho, então vê Quinn rindo.
- Dá o fora daqui, porra. – diz. – Seu imbecil.
É hilário. Eu e Quinn nos seguramos uma na outra e rimos muito. Sam, desesperado, olha para nós com uma careta.
- Dá pra gente ir agora? – pergunta.
O mercado está lotado. Gente por toda parte, acotovelando-se, como se o dia estivesse cheio de emergências. Velhas gordas com suas cestas de compras passam me empurrando; pais com carrinhos de bebê ocupam o espaço inteiro. Estar ali em pé, com a luz cinza desse dia à minha volta, é como estar dentro de um sonho, como se eu não estivesse sequer me mexendo, como se a calçada estivesse grudando e meus pés fossem feitos de chumbo. Meninos se esgueiram por mim, de capuzes levantados, rostos sem expressão. Meninas com quem eu estudava no colégio passam serpenteando. Não me reconhecem mais; faz muito tempo que eu não entro em uma sala de aula. O ar está tomado pelo cheiro de cachorro-quente, hambúrguer e cebola. Tudo está à venda – galinhas para caldo penduradas pelos pés, bandejas de tripas e miúdos, quartos de porco com as costelas partidas ao meio expostas. Tecidos, lã, renda e cortinas. Na barraca de brinquedos, cães ladram e dão cambalhotas e soldadinhos de corda batem pratos. O dono da barraca sorri para mim e aponta para uma boneca de plástico gigante, sentada e muda em sua capa de celofane.
- Só dez libras, meu bem.
Viro-lhe as costas, fingindo não ter escutado.
Quinn me olha, séria.
- Você devia estar dizendo sim para tudo. Da próxima vez, compre... O que quer que seja. Tá bom?
- Sim.
- Ótimo. Volto daqui a um minuto. – E ela desaparece na multidão.
Não quero que ela vá embora. Eu preciso dela. Se ela não voltar, o meu dia vai ter se resumido a uma volta no parquinho e alguns assobios no caminho do mercado.
- Está tudo bem com você? – pergunta Sam.
- Tudo.
- Não parece.
- Bom, eu estou achando um saco.
O que é perigoso, porque obviamente vou ter de dizer sim caso ele queira ir para casa.

- A Quinn vai voltar daqui a um minuto. Quem sabe a gente pega o ônibus até o outro lado da cidade? A gente podia ir na loja de mágica.

Sam dá de ombros, enfia as mãos no bolso.
- Ela não vai querer fazer isso.
- Vai olhar os brinquedos enquanto espera.
- Os brinquedos são uma bosta.
São mesmo? Eu costumava vir aqui com papai e olhar os brinquedos. Tudo costumava cintilar.
Quinn volta, parecendo nervosa.
- O Scott é um babaca mentiroso – diz ela.
- Quem?
- O Scott. Ele disse que trabalhava em uma barraca, mas não está lá.
- O Doidinho? Quando foi que ele te disse isso?
Ela me olha como se eu fosse inteiramente louco, e torna a se afastar. Vai até um homem atrás da barraca de frutas e se inclina por cima das caixas de bananas para falar com ele. Ele fica olhando para os seus peitos.
Uma mulher se aproxima de mim. Está carregando vários sacos plásticos. Olha bem para mim, e eu não desvio os olhos.
- Dez costeletas, três pacotes de toucinho defumado e uma galinha para caldo – sussurra ela. – Quer?
- Sim.
Ela me passa uma sacola, depois cutuca uma casquinha do nariz enquanto eu acho o dinheiro. Dou-lhe cinco libras e ela vasculha os bolsos e me devolve duas de troco.
- Uma pechincha – diz.
Sam parece um pouco assustado quando ela se afasta.
- Por que você fez isso?
- Cala a boca – respondo, porque em nenhum lugar das regras está dito que eu tenha de ficar satisfeito com o que fizer. Como só me restam doze libras, penso se poderia mudar as regras para poder só dizer sim ao que for de graça. A sacola pinga sangue a meus pés. Pergunto-me se preciso ficar com tudo que comprar.
Quinn volta, repara na sacola e a tira da minha mão.
- Que porcaria tem aí dentro? – Ela dá uma espiada. – Parecem pedaços de cachorro morto! – Ela joga tudo dentro de uma lata de lixo, depois torna a se virar para mim, sorrindo. – Achei o Scott. No final das contas, ele estava lá, sim. O Jake está com ele. Vem.
Enquanto abrimos caminho em meio à multidão, Quinn me diz que encontrou Scott algumas vezes desde que fomos à casa deles. Não olha para mim quando me conta isso.
- Por que você não me falou?
- Você ficou fora de combate por mais de quatro semanas! E eu achei que você fosse ficar puto!
É chocante vê-los à luz do dia, em pé atrás de uma barraca que vende lanternas e torradeiras, relógios e chaleiras elétricas. Parecem mais velhos do que eu me lembrava.
Quinn dá a volta para falar com Scott. Jake me cumprimenta com a cabeça.
- Tudo bem? – pergunta ele.
- Tudo.
- Fazendo compras?
Ele parece diferente – suado e um pouco encabulado. Uma mulher aparece atrás de mim, e Sam e eu temos de sair do caminho para ela chegar à barraca. Ela compra quatro pilhas. Custam uma libra. Jake as põe dentro de um saco plástico para ela e pega o dinheiro. Ela vai embora.
- Quer umas pilhas? – pergunta ele. Não me olha direito nos olhos. – Não precisa pagar.
Alguma coisa na maneira como ele diz isso, como se estivesse me fazendo um enorme favor, como se estivesse com pena de mim e quisesse mostrar que é um cara decente – alguma coisa me diz que ele sabe. Quinn contou a ele. Posso ver a culpa e a pena em seus olhos. Ele trepou com um menino moribundo e agora está com medo. Talvez eu seja contagioso; minha doença roçou seu ombro, e talvez esteja esperando por ele.
- Quer ou não quer? – Ele pega um pacote de pilhas e acena para mim com elas.
- Sim – é o que sai da minha boca. A decepção da palavra tem de ser engolida depressa enquanto pego suas pilhas idiotas e as coloco dentro da bolsa.
Sam me dá um forte cutucão nas costelas.
- A gente pode ir agora?
- Sim.
Quinn está com o braço em volta da cintura de Scott.
- Não! – diz ela. – A gente vai pra casa deles. Eles param pra almoçar daqui a meia hora.
- Vou levar o Sam ao outro lado da cidade.
Quinn está sorrindo ao se aproximar de mim. Está muito bonita, como se Scott a houvesse aquecido.
- Não era pra você dizer sim?
- O Sam perguntou primeiro.
Ela franze o cenho.
- Eles têm ketamina em casa. Está tudo combinado. Pode trazer o Sam, se quiser. Eles arrumam alguma coisa pra ele fazer, tipo um PlayStation ou algo assim.
- Você contou pro Jake.
- Contei o quê?
- Sobre mim.
- Não.
Ela fica vermelha, e é obrigada a jogar o cigarro no chão e pisar em cima para não ter de olhar para mim.
Posso imaginar direitinho como ela contou. Foi até a casa deles e os fez apertar um baseado, e insistiu em dar o primeiro tapa, tragando fundo e com força enquanto os dois a olhavam. Então se aninhou junto a Scott e disse: “Ei, sabem o Kurt?” E então contou. Talvez tenha até chorado. Aposto que o Scott a abraçou. Aposto que Jake pegou o baseado e tragou fundo o suficiente para não ter de pensar no assunto.
Agarro a mão de Sam e puxo-o para longe dali. Para longe de Quinn, do mercado. Puxo-o até os degraus atrás das barracas e até a ruazinha que margeia o canal.
- Pra onde a gente está indo? – geme ele.
- Cala a boca.
- Você está me deixando com medo.
Baixo os olhos para o rosto dele e nem ligo.
De vez em quando, sonho que estou andando pela casa, só entrando e saindo dos cômodos, e ninguém da minha família me reconhece. Passo por papai na escada e ele me cumprimenta com educação, como se eu estivesse ali para fazer faxina, ou na verdade a casa fosse um hotel. Sam me olha desconfiado quando entro no meu quarto. Todas as minhas coisas sumiram, e outra menina está dentro do quarto em vez de mim, uma menina de vestido florido, com lábios brilhantes e bochechas firmes como duas maçãs. É minha vida paralela, penso. A vida onde sou saudável, onde Jake teria ficado feliz em me conhecer.
Na vida real, arrastou meu irmão pela ruazinha em direção ao café debruçado sobre o canal.
- Vai ser legal – digo a ele. – Vamos tomar sorvete, chocolate quente e Coca-Cola.
- Você não pode comer açúcar. Vou contar pro papai.
Aperto a mão dele com mais força ainda. Há um homem em pé no caminho um pouco mais adiante, entre nós dois e o café. Está de pijama e olha para o canal. De sua boca pende um cigarro velho.
- Quero ir pra casa – diz Sam.
Mas eu quero mostrar a ele os ratos do caminho que margeia o canal, as folhas arrancadas das árvores aos gritos, a forma como as pessoas evitam as dificuldades, a forma como aquele homem de pijama é mais real do que Quinn, que surge trotando atrás de nós com sua boca grande e seus tolos cabelos louros.
- Vai embora – digo a ela sem sequer me virar.
Ela agarra meu braço.
- Por que é que tudo com você tem que ser tão dramático?
Empurro-a para longe.
- Sei lá, Quinn. Por que será, você acha?
- Não é nenhum segredo. Um monte de gente sabe que você está doente. O Jake não ligou, mas agora está te achando o maior esquisito.
- Eu sou o maior esquisito.
Ela me olha com os olhos apertados.
- Acho que você gosta de estar doente.
- Você acha?
- Você não suporta ser normal.
- É, tem razão, é incrível. Quer trocar?
- Todo mundo morre – diz ela, como se fosse algo em que houvesse acabado de pensar e não fosse ligar se acontecesse com ela.
Sam puxa a manga da minha roupa.
- Olha – diz.
O homem de pijama entrou no canal. Está chapinhando na água rasa e batendo na água com as mãos. Olha para nós sem expressão, e então sorri, exibindo vários dentes de ouro. Sinto minha coluna formigar.
- Uma nadadinha, senhores? – chama ele. Tem sotaque escocês. Eu nunca fui à Escócia.
- Entra lá com ele – diz Quinn. – Por que não?
- Você está me dizendo pra fazer isso?
Ela sorri para mim, maliciosa.
- Sim.
Espio rapidamente as mesas do lado de fora do café. As pessoas estão olhando para nós. Vão pensar que eu sou um drogado, um psicopata, um louco.
- O que você está fazendo? – sibila Sam. – Está todo mundo olhando!
- Então finge que você não está comigo.
- Vou fingir mesmo! – Ele se senta na grama, emburrado, enquanto eu tiro os sapatos.
Mergulho o dedão na água. Está tão fria que uma dormência sobe pela minha perna inteira.
Zoey toca meu braço.
- Não faz isso, Kurt. Era brincadeira. Deixa de ser bobo.
Será que ela não entende?
Entro n’água até a altura das coxas, e os patos saem grasnando, assustados. O canal não é fundo, é um pouco lamacento, e provavelmente no fundo tem todo tipo de porcaria. Ratos nadam nessa água. As pessoas jogam latinhas e carrinhos de compras, agulhas, cachorros mortos. Meus pés esmagam a lama mole. Dente de Ouro acena enquanto caminha na minha direção, dando palmadas nos próprios quadris.
- Bom menino – diz. Seus lábios estão azuis e seus dentes de ouro reluzem. Ele tem um corte na testa, e sangue fresco escorre da linha de implantação dos cabelos em direção aos olhos. Isso me faz sentir ainda mais frio.
Um homem sai do café sacudindo um pano de prato.
- Ei! – grita ele. – Ei, sai daí!
Ele está usando um avental, e sua barriga treme quando ele se inclina para me ajudar.
- Ficou maluco? – pergunta. – Você pode pegar uma doença nessa água. – Ele vira-se para Quinn. – Você está com ele?
- Desculpa – diz Quinn. – Não consegui fazer ele parar. – Ela sacode os cabelos de um lado para o outro para ele entender que não é culpa sua. Detesto isso.
- Ela não está comigo – digo ao homem. – Eu não conheço essa menina.
Quinn fecha a cara, e o homem do café torna a se virar para mim, confuso. Deixa que eu use o pano de prato para secar as pernas. Então me diz que eu sou maluco. Diz que todos os jovens são drogados. Enquanto ele grita, fico olhando Quinn se afastar. Ela vai ficando cada vez menor até desaparecer. O homem do café pergunta onde estão meus pais, pergunta se eu conheço o homem dos dentes de ouro, que agora está escalando a margem oposta do canal e rindo sozinho uma risada rouca. O homem do café dá vários muxoxos, mas depois segue comigo pelo caminho até o café, faz com que eu me sente e me traz uma xícara de chá. Ponho três torrões de açúcar na bebida e tomo pequenos goles. Muitas pessoas me encaram. Sam parece um tanto assustado e pequenino.
- O que você está fazendo? – sussurra ele.
Vou sentir tanta saudade dele que me dá vontade de machucá-lo. Também me dá vontade de levá-lo para casa e entregá-lo a papai antes que eu perca nós dois. Mas lá em casa é um tédio. Lá posso dizer sim a tudo, porque papai não vai me pedir para fazer nada de verdade.
O chá aquece minha barriga. O céu muda de cinza opaco para ensolarado e volta ao cinza no minuto seguinte. Nem mesmo o tempo consegue decidir o que fazer, e fica pulando de um acontecimento ridículo para outro.
- Vamos pegar um ônibus – digo.
Levanto-me, seguro a beirada da mesa e torno a calçar os sapatos. As pessoas fingem não prestar atenção em mim, mas posso sentir seus olhos. Eles fazem com que eu me sinta vivo.


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Notas finais do capítulo

comentem por favor, eu gosto de ler os comentários de vocês