Olhos De Vidro escrita por Bruna Fairbanks


Capítulo 1
Olhos de Vidro


Notas iniciais do capítulo

Caros leitores: esta é uma história extremamente simples. Procurei não me ater em detalhes desnecessários, dando ênfase apenas na relação do casal principal. Foi escrita com muito carinho, e eu realmente espero que agrade à vocês. Obrigada por lerem!

Ps: Esta é a música que escutei por horas enquanto escrevia esta história e que me serviu de inspiração. Escute-a durante sua leitura ;) http://www.youtube.com/watch?v=i8exIxzbA-I



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Sempre lhe disseram que era feia.

Andavam para longe quando ela se aproximava, ignoravam-na quando ela falava.

Por muito tempo, sentiu-se só.

Entre a família, as atenções iam todas para a beleza da irmã mais velha, enquanto para ela sobravam apenas migalhas de curiosidade quanto aos estudos na escola.

Odiava ver espelhos, e odiava mais ainda o que eles refletiam.

Detestava-se.

Não tendo a vantagem da beleza, só lhe restou vencer a vida pela inteligência. Dedicou-se inteiramente aos estudos tornou-se a melhor aluna da classe; ainda excluída por sua aparência, mas ao menos invejada por suas notas.

Pouco a pouco, acostumou-se a ser feia. Não cuidava de si mesma mais que o necessário para manter sua higiene pessoal. Já não tinha espelhos em seu quarto nem qualquer coisa que apontasse que o cômodo pertencia a uma adolescente; nada além da crueza insensível do branco das paredes e a frieza impessoal da mobília. Vestia-se com descaso, prezando nada além do conforto.

Completara 17 anos sem se importar mais em não ser querida.

Então ele apareceu. Sem pedir licença, abrindo caminho à força em sua vida, surgiu para quebrar seus inúteis olhos de vidro...

E a ensiná-la a enxergar com o coração.



Naquela manhã, chegou à escola ao horário de sempre e sentou-se em seu lugar de sempre. Ainda que as carteiras fossem organizadas em dupla, ninguém queria estar ao seu lado. Ela já não ligava, era bom ter espaço, ainda que seu corpo raquítico não precisasse de muito para sentir-se confortável. De qualquer maneira, habituara-se a solidão, e passara a preferi-la à presença de outros seres humanos.

Não deu muita importância ao novo aluno que entrou. De qualquer maneira ele também não lhe daria importância; era um jovem bonito, mas que em breve se misturaria às outras ovelhas e saberia pelas leis do rebanho que não deveria falar com quem “não existia”.

Então ele se sentou ao seu lado.

Era ele idiota? Não percebia que não devia chegar a mais de um metro de distância dela?

Inacreditavelmente, ele virou o rosto para ela, sorriu-lhe e estendeu uma mão.

Por acaso era alguma brincadeira de mau gosto?

Ele tinha olhos tão claros que pareciam de mentira – mas havia algo de errado com eles. Ele não olhava para ela, olhava para longe, para o que quer que houvesse além dela e além das paredes da sala; ele parecia olhar para o infinito.

Ele ficou sem jeito ao não ter seu cumprimento correspondido. Recolheu a mão e seu sorriso escorregou de seus lábios, dando lugar a uma expressão triste. Constrangida, ela se voltou para frente.

“Qual é o seu problema?” murmurou para si mesma, tão baixo que ele não deveria ouvi-la.

Mas ouviu.

“Oh, desculpe-me”, respondeu, sobressaltando-a. “Não quero ser um problema para você”.

“E por que seria?” perguntou, confusa.

Ele calou-se por alguns minutos. Ela voltou a encarar a lousa.

“Você não percebeu?” respondeu por fim, tão baixo que ela precisou se inclinar para compreendê-lo. “Eu sou cego.”

Depois disso, tudo mudou.

Todos os dias eles sentavam-se lado a lado, e ela lia para ele textos que posteriormente seriam copiados em Braille. Percebeu que ser apenas bonito não era garantia de que as ovelhas o convidariam para se juntar ao rebanho – ele afinal de contas tinha boa aparência, mas para os outros não passava de uma criatura defeituoso. Não que ele parecesse se importar em ser renegado ao posto de invisível; pelo contrário, não expressava desejo algum em estar com eles ao invés dela. Quando ela o questionou sobre isso, ele disse-lhe apenas que estava acostumado a estar sozinho.

Tornaram-se grandes amigos.

Às vezes, sem que ela soubesse como ele o fazia, lhe perguntava por que ela o estava observando, e só então ela percebia que o estivera encarando pelos últimos minutos. Ele lhe mostrou o alfabeto Braille, e ela se dedicou completamente até aprender a escrever por si só. Desenvolveram o hábito de conversar por bilhetes durante a aula, embora ela tivesse dificuldades para decifrá-los com as pontas dos dedos. Ele lhe explicou que era normal, pois pessoas que podiam enxergar não precisavam desenvolver tão apuradamente seu tato.

Sua vida passou a ter um sentido.

Meses se passaram, e pela primeira vez ela sentia-se motivada em acordar todas as manhãs para ir à escola.

Numa tarde de outono, enquanto comiam uvas de uma vasilha sentados sob uma árvore no parque após as aulas, ele lhe explicou que, para compensar a falta de um sentido, todos os seus outros se desenvolviam melhor.

“Posso dizer, por exemplo, que você é pequena” disse-lhe. Ela ficou surpresa. “Seus passos são bem leves. E você tem um cheiro bom” respirou fundo, fazendo-a corar. “É limpo e agradável. Eu gosto” comentou, colocando uma uva na boca. Ela sorriu para si mesma, grata por ele não poder ver sua expressão constrangida.

“Mas tem uma coisa que eu ainda não sei sobre você.”

“O que?”

“Como você é, fisicamente?”

Ela ficou quieta por um longo tempo. Por fim respondeu, tímida.

“Eu sou feia.”

“Não, isso é o que as pessoas dizem que você é.”

“Dá no mesmo.”

“Não, não dá.” Ele recostou-se à árvore, mordendo outra uva. “Sabe, a maioria das pessoas é como bonecas. Bonecas têm olhos de vidro, mas não tem coração. E olhos de vidro são olhos falsos, incapazes de enxergar verdadeiramente. Eles não veem o que é, e sim o que parece ser.”

“E você?” ela murmurou. “Tem olhos de que?”

Ele riu.
“Eu não tenho olhos, mas eu tenho um coração. E corações enxergam o que é, não o que parece ser. Corações veem outros corações.”

Fizeram silêncio, enquanto comiam mais algumas uvas. Eram uvas de outono, dessas doces que estouram na boca.

“Quero saber como você é.” Ele insistiu.

“Mas você disse que o que importava era ver com o coração” ela reclamou.

“Mas eu quero saber.”

Ela pensou por alguns segundos.

“Meus cabelos são compridos e escorridos, são escuros e sem graça. Meus olhos também são escuros e não tem nada de legal no meu rosto. Eu tenho um monte de sardas e meus dentes da frente são grandes demais.”, confessou.

Ele sorriu.

“Posso tocar?”

“O que?”

“Quero saber como o seu rosto é. Posso tocá-lo?”

Ela ficou muda, surpresa.

Ele não esperou por uma resposta. Primeiro seus dedos correram por uma mecha, depois por seus cabelos inteiros. Desceram para seu pescoço, e subiram por suas bochechas. Ela manteve os olhos fechados, anormalmente consciente do toque em seu rosto, e seu coração batia dolorosamente rápido. As mãos dele eram quentes e gentis enquanto seus dedos delineavam seu nariz, seus olhos, tocavam suas sobrancelhas e desciam para seus lábios. Por fim se espalmaram em suas bochechas e ele se inclinou para beijar suavemente sua testa. Ela abriu os olhos, e deu de cara com as íris azuis que eternamente encarariam o infinito. Ele sorria, e ela sorriu também.

Naquela noite, adormeceu sorrindo.

Os dias de outono passaram rápido, dando lugar ao inverno. Estavam sentados embaixo da mesma árvore no dia em que os primeiros flocos de neve começaram a cair.

“Está nevando...” ela murmurou, admirada. Eram tão lindos. Lembrou-se de que ele não podia vê-los.

“Eu queria tanto que você pudesse saber como eles são.”

“Por que você não me mostra?”

Ela olhou ao redor. Viu no chão uma pluminha branca, perdida por algum passarinho. Pegou-a.

“Estende as mãos.”

Ele estendeu. Ela soltou a pluma sobre as palmas abertas. Pousou suavemente e ficou ali. Ele fechou as mãos sobre ela.

“São pequenos, leves e flutuam. E parem tão suaves e tão delicados. São tão brancos, parecem pontinhos de pureza caindo num mundo cinza.”

“Me lembram você.”

Quando ela virou o rosto, topou com a face dele a centímetros da sua. Dedos quentes tocaram suas bochechas.

“Você é pequena, leve, suave, delicada e, neste mundo escuro onde eu vivo, você é a única coisa iluminada.”

Seu coração disparou. Ela sentiu vontade de chorar quando percebeu o quão intenso era o sentimento que havia desenvolvido por ele naquele tempo.

Ele baixou o rosto até tocar com a testa na dela, rindo.

“Pela primeira vez na minha vida há um ponto de luz na minha escuridão. E eu amo este ponto. Eu amo você.”

Ela pôs-se a rir com ele enquanto, sem que soubesse por que, lágrimas escorriam por seu rosto.

“Não brinque comigo deste jeito.” Seu riso se transformou em soluços.

Ele envolveu seus ombros com os braços e a puxou para si. Tocou delicadamente os lábios dela com os seus, e naquele instante a existência do outro foi a única coisa que cada um pode sentir no mundo.

“Isso parece uma brincadeira?” Ele murmurou para ela.

Ela não podia responder. Não achava sua voz. Passou os braços pelo corpo dele e enfiou seu rosto no peito quente, enquanto ele acariciava seus cabelos.

Ficaram parados juntos, ali, enquanto flocos de neve caiam ao redor, tornando um mundo escuro puramente branco.

Chegou o fim do ano, e com ele a formatura. Durante o baile eles dançaram a valsa juntos, e foi então que ela, com o rosto colado ao dele enquanto rodopiavam lentamente pelo salão lotado, lhe confessou seu sonho.

“Eu nunca soube o que queria exatamente da vida, mas graças a você agora tenho uma meta. E não vou descansar enquanto não atingi-la. Eu vou estudar medicina, e vou me especializar em oftalmologia. E um dia serei uma grande médica e vou consertar seus olhos, e vou te mostrar as coisas lindas que existem no mundo.”

Ele ficou emocionado. Seus olhos estavam quebrados, mas ainda eram capazes de chorar.

“Eu só quero ser capaz de ver uma coisa.” Murmurou, a voz embargada.

“O que?”

“A coisa mais linda que existe nesse mundo. Você, meu amor.”

Ela sorriu. Ficou na ponta dos pés e lhe plantou um beijo-surpresa. E ele riu, corado, e apertou o corpo quente nos braços enquanto giravam na escuridão.

Os anos se passaram. Muitas primaveras vieram e se foram, enquanto seu amor crescia a cada dia. Ela continuou detestando seu reflexo, mas agora se importava consigo mesma, com suas roupas, com seu cabelo, com suas unhas e sua pele. Depois que se formou e começou a trabalhar em um grande hospital, passou a ser respeitada por seu profissionalismo e querida por todos os seus pacientes. Tornou-se uma mulher madura, calma e paciente.

Naquela manhã, porém, seu coração batia dolorosamente rápido enquanto ela tentava não se atirar através dos corredores do hospital.

Era o último dia da recuperação pós-operatória. Ele finalmente poderia tirar as bandagens.

Ele poderia vê-la!

Ela parou, em frente à porta do quarto, a mão erguida para a maçaneta.

Ele poderia vê-la.

E se... E se ele não gostasse do que visse?

O pensamento encheu-a de medo. E se ele não quisesse mais estar ao lado dela? E se...

A porta se abriu abruptamente, interrompendo seus pensamentos. A enfermeira sorriu para ela.

“Doutora. Estivemos esperando-a.”

Mais atrás, sentado sobre uma cadeira, o primeiro e grande amor de sua vida esperava pacientemente. As faixas brancas cobriam-lhe metade do rosto, mas ele continuava lindo. Tão lindo quanto estava na primeira vez em que conversaram, ou quando ele tocou seu rosto e ela sentiu o perfume das uvas de outono em seus dedos ou no dia em que se beijaram pela primeira vez enquanto a neve se acumulava ao seu redor.

Foi tomada por uma angústia repentina. Mas ele estendeu a mão para ela e sorriu – o mesmo sorriso quente e acolhedor que ele lhe oferecera a vida toda.

“Vamos, meu amor. Está na hora de você iluminar permanentemente o meu mundo.”

Ela pousou uma das mãos no rosto, emocionada. Minúsculos cristais rolavam por seu rosto enquanto ela, muito cuidadosamente, pegou a tesoura e começou a cortar as bandagens. Quando a última faixa foi ao chão, ela se afastou e esperou.

Ele se ergueu da cadeira, e abriu os olhos lentamente. Aquelas íris azuis que sempre fitavam o infinito, agora estavam fixas nela.

Ela sentiu seu rosto corar. Não pode desviar o olhar do dele enquanto ele a encarava por longos e silenciosos minutos.

Foi então que ele murmurou.

“Você tentou me enganar a vida inteira.”

Ela sentiu um choque percorrer por seu corpo. Sempre soubera o que aconteceria. Sempre se preparara para isso.

Abaixou o rosto e cobriu-o com as mãos. Seu corpo sacudia sob seus soluços.

Surpreendeu-se ao sentir duas palmas quentes em suas bochechas. Ergueu o rosto para encontrar o olhar mais intenso que vira em todos os anos de sua vida.

“Por todos esses anos... Você tentou me fazer acreditar que você era feia? Sinceramente.” Ele se abaixou e beijou-lhe ternamente a testa. “Você é ainda mais linda do que o meu coração pode me dizer. Antes você era a única luz dentre a escuridão que me cercava, mas agora eu estou num mundo cheio de sol, e quer saber? De tudo, você continua sendo o que há de mais iluminado em minha vida. Eu amo você.”

Ela atirou os braços ao redor do corpo dele e chorou. Chorou até que toda a tristeza e todo o medo que acumularam em sua alma ao longo de anos se esvaíssem nos braços do grande amor de sua vida. E então, pela primeira vez na vida, sentiu-se bonita.

Foi quando soube que seus olhos de vidro haviam se quebrado, e que ela finalmente havia aprendido a enxergar com o coração.


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Notas finais do capítulo

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