Premonição 7: Clube da Morte escrita por Lerd


Capítulo 9
Disforia


Notas iniciais do capítulo

Bom, primeiramente me desculpem a demora. Eu demorei, mas cheguei. Esse capítulo é o maior da fanfiction e contém o "clímax" da história. Prometo não demorar para postar o último :D
E ah! Eu o revisei, mas sou humano, então se notarem algum errinho, por favor me avisem!
Enjoy!



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Já passava das nove da noite e só restavam Cassiel e Crystal na capela do cemitério. O rapaz estava ajoelhado rezando, enquanto a garota estava deitada em um dos bancos de madeira, fazendo a boina do militar como travesseiro. A cigana tentara contato com Cody, mas ele não atendia o celular. Ela então lhe deixou uma mensagem com o título de “urgente”, e esperava que ele a respondesse. Não havia tempo a ser perdido. Ulysses fora pulado e ele era o próximo.

Em sua cabeça, a teoria do assassinato soava mais forte do que nunca. Se ao menos nós soubéssemos quem é esse filho da puta que está atrás da gente... Nós poderíamos fazer alguma coisa. Se ele realmente saiu do zoológico naquele dia, matá-lo destruiria toda a lista. Tremeu ao pensar naquela ideia ali, na casa do deus da maioria das pessoas.

Crystal sabia que não havia outra possibilidade. Com exceção de Bunny Face, só havia vítimas ali. Tanto ela como Cassiel, Ulysses, Cody ou Erika. Nenhum deles merecia morrer, e a mulher tinha certeza que não seria capaz de fazer algo daquela natureza, nem que fosse para salvar a própria vida. Sua alma valia mais. Minha existência nesse plano é passageira, mas a integridade do meu espírito é eterna.

Como todas da sua religião, a garota acreditava plenamente em vidas passadas e futuras. Sabia que reencarnaria, por isso o fim não lhe preocupava. Morrer não lhe parecia um problema. O que a assustava tremendamente era a maneiracomo esse fim chegaria. Iria doer? Crystal esperava que não. Por favor, Mãe, me proteja de todo o mal, ela pedia em pensamento.

Cassiel levantou-se, fez o sinal da cruz e cutucou Crystal, que estava de olhos fechados. A cigana levantou-se, alisando o vestido preto que usava. Os dois saíram da capela de maneira cambaleante. O casal parou na entrada e ficou observando o céu cheio de estrelas. O militar abraçou a cigana por trás e sentiu o calor de seu corpo.

— Eu tenho algo pra te contar. — Crystal começou, incerta.

— Conte. — Foi tudo o que o loiro disse.

A cigana então suspirou. Desvencilhou-se dos braços dele e falou tudo o que sabia a respeito da teoria do assassinato.

x-x-x-x-x

Um dia depois.

O dia estava ensolarado e bonito.

Tina estava sentada no banco da praça fazendo tricô, porém sem desgrudar os olhos de Julia, que brincava com outras duas crianças e a babá de uma delas. Ao seu lado duas das mães distraiam-se com fofocas e contando acontecimentos de seu cotidiano. Apesar disso, a mulher não conseguia tirar da cabeça um problema que a corroia desde o dia em que o descobrira.

Não era algo que lhe assombrava ou que dominava seus pensamentos. Mas era algo que ela volta e meia se via remoendo, algo que precisava de uma solução. De uma forma ou de outra, só haveria perdedores. Naquele caso a verdade não agradaria a ninguém.

A mulher lembrava-se claramente da noite em que ela e Cassiel discutiram, logo quando Paul morreu. Também se lembrava de como fora dura em suas palavras, e em como gostaria de jamais ter dito nada do que disse. Mas não havia como voltar atrás. Doía-lhe ainda mais pelo fato de que Cassiel não sabia de toda a história. Ela lhe culpara por coisas que ele não tinha culpa, e lhe jogara na cara vários fatos relacionados a sua rivalidade com Paul. Coisas que ela sabia que iam muito além da simples rixa entre irmãos. Coisas das quais Cassiel jamais poderia desconfiar.

Ele vive da esperança, Tina pensou. Da esperança do futuro e da esperança de uma mudança no passado. A verdade nesse caso lhe tiraria uma das únicas coisas que meu filho tem como certo nessa vida. Não. Meu perdoe, Deus, mas eu não posso contar a verdade.

Naquele dia decidiu que levaria aquele segredo para o túmulo.

x-x-x-x-x

Foi no dia seguinte ao velório de Marissa, dois dias após sua morte, que Erika teve tempo de se encontrar com Pria Davuluri. A editora-chefe marcou o encontro em uma cafeteria luxuosa no centro da cidade. Chegou antes da assistente social, e sentou-se em uma das mesas. Pediu um café preto e sem açúcar. Levou um susto quando viu, sentado há algumas mesas, um velho amigo. Levantou-se e foi lhe cumprimentar.

— Roger? — Ela disse levemente surpresa.

O homem estava na casa dos quarenta anos. Tinha praticamente nenhuma marca de expressão no rosto e possuía um corpo bastante atlético. Seus cabelos eram grisalhos, mas de uma forma tingida. Roger decidira fazer isso assim que o primeiro fio surgiu. Abraçara os cabelos acinzentados com bastante naturalidade. Divertia-se com a perspectiva de ser um homem de meia idade.

— Erika, querida. — Ele levantou-se, lhe abraçando. — Esse é o Harry. — Roger apontou para o homem sentado à sua frente, na mesma mesa. Foi só nesse momento que Erika notou sua presença.

— Oh, me desculpe a minha falta de educação. É um prazer conhecê-lo Harry.

O tal Harry parecia ser alguns anos mais novo do que Roger. Possuía a mesma estrutura corporal, porém tinha uma aparência mais intimidadora. Usava uma barba cerrada e tinha os cabelos negros. A mulher não perguntou, mas supôs que ele fosse o novo namorado do amigo. Sentiu-se um pouco ofendida por Roger não ter lhe contado que estava namorando, mas decidiu ignorar o assunto.

— O prazer é meu. — O rapaz disse. Então completou: — Eu fiquei sabendo da sua perda. Eu sinto muito, Erika, de verdade.

A morena concordou com um sorriso gentil, agradecendo. Roger comparecera ao velório de Marissa no dia anterior, por isso não dissera nada.

— Se senta conosco? — O grisalho ofereceu.

— Oh não, obrigada. Eu vim aqui me encontrar com a assistente social.

— A tal Pria? — Roger perguntou, incerto.

Erika surpreendeu-se com o fato de o homem se lembrar daquilo.

— Ela mesma. As coisas vão ficar complicadas agora que a Marissa não está mais aqui.

Roger concordou com a cabeça, completando:

— Mas tenha fé, minha querida. Você e o Jamal vão ser uma família feliz. Vocês vão superar tudo isso. É o que a Marissa gostaria, eu tenho certeza.

A editora concordou mais uma vez, se despedindo deles ao ver que Pria acabara de chegar. As duas mulheres se cumprimentaram educadamente, sendo que a indiana lhe deu as condolências de praxe. Elas então seguiram até uma das mesas, onde Erika estava anteriormente sentada.

Pria pediu um café da exata mesma maneira que a editora. Erika torceu para que, diferente dela, aquele pedido não fosse um reflexo do seu humor.

— Eu poderia ter esperado mais por esse encontro, senhorita Bergström. Eu sei como é difícil perder alguém. Não havia problema nenhum em adiarmos essa situação.

Erika rapidamente meneou a cabeça negativamente.

— Não, essa é a melhor coisa que eu posso fazer. É o que eu preciso fazer. Eu já perdi a Marissa, eu não posso perder o Jamal. Ele é agora a pessoa mais importante na minha vida. Eu não quero ficar um minuto a mais do que o necessário longe dele.

A indiana meneou a cabeça positivamente. Disse:

— Bom, então isso significa que o processo de adoção continuará.

— Com certeza. Existe algum problema?

Pria respondeu:

— Não exatamente. Quero dizer, a senhorita já está apta a adotar o Jamal. Quanto a isso não existe qualquer problema. Existem apenas pequenos detalhes que precisam ser corrigidos. Por exemplo, o fato de que essa não é mais uma adoção conjunta, de um casal. A senhorita agora será uma mãe solteira. Isso precisa ser agilizado com o seu advogado, nos papeis da adoção, e isso pode levar mais algum tempo. Pode atrasar as coisas.

Erika sabia que aquela era a resposta racional, e previra que seria o que ela iria receber. Mesmo assim, uma parte de si desejava com todas as forças que por algum motivo Pria dissesse que ela e Jamal já poderiam ir para casa juntos. Não havia mais nada que a mulher quisesse na vida do que abraçá-lo e cuidar dele. Canalizara todas as suas esperanças no menino. Ela não tinha mais Marissa, mas o amor delas por Jamal estava mais vivo do que nunca.

— Eu preciso perguntar... — Pria começou, interrompendo sua fala. Erika acenou para que ela continuasse. — Eu não quero me intrometer em sua vida pessoal de forma nenhuma, mas... A sua perda é extremamente recente. Nós podemos esperar. O Jamal pode esperar. Você tem prioridade na adoção dele, Erika. Ele já te ama. Nós não daremos a guarda do Jamal pra mais ninguém, isso eu lhe asseguro. Pelo bem do menino ele deve ficar com você. Mas você... Perdão, a senhorita. A senhorita não acha que é cedo demais?

A morena ficou alguns segundos sem saber o que dizer. Cedo demais?

— Eu e a Marissa estamos tentando adotar o Jamal há quase um ano.

— Não falo sobre isso. Falo sobre o falecimento da sua companheira.

Erika meneou a cabeça negativamente. Disse:

— Eu entendi o que a senhora quis dizer. Mas não, eu não preciso de um tempo. Adotar o Jamal é a coisa da qual tenho mais certeza na minha vida.

Pria não teve nada a dizer a não ser um “ok”. As duas continuaram a conversa pela meia hora seguinte.

x-x-x-x-x

O fusca cor de rosa de Tina morreu no meio da estrada, na volta para casa. A mãe de Cassiel havia ido embora de carona com os pais de Erika, de modo que o militar e a cigana ficaram com carro para si.

Isso acontecera no dia anterior. Todos os que foram embora até as oito da noite haviam conseguido sair da cidade. Após isso, o local onde eles estavam e onde acontecera o funeral fora completamente fechado por conta de uma ameaça de ataque terrorista, de modo que eles tiveram que esperar a madrugada e o dia todo ali, indo de restaurante em restaurante e de loja em loja. Estavam exaustos, já que dormiram no carro. Apenas quando a noite e a madrugaram chegaram é que as estradas foram finalmente liberadas. A frustração não poderia ser maior. Cada dia perdido era uma chance a mais para a morte pegá-los.

Através do celular, Cody continuava sem responder.

— Não, não, não, por favor... — Crystal resmungou, tentando dar a partida. — Não faz isso comigo...

Cassiel divertia-se no banco do carona. Ser rabugento e pessimista não melhoraria a situação deles.

— Ele não vai voltar a funcionar, não é a primeira vez que isso acontece. Vamos ligar pra um guincho.

A cigana olhou para o militar com uma expressão de deboche.

— Um guincho vinte e quatro horas custa uma fortuna. Sem falar que estamos no meio do nada, e meu celular não tem sinal nenhum. A gente vai ter que esperar amanhecer e sair procurando por ajuda.

— Aqui dentro do carro de novo? — O rapaz surpreendeu-se. — Eu não aguento mais uma noite nesse banco. Eu preciso de uma cama.

Crystal pensou por alguns segundos, mas então seu olhar se iluminou.

— A gente passou por um hotel não muito longe daqui. Quinze, vinte minutos de caminhada no máximo. Nós podemos ir até lá ver se a gente consegue um telefone ou pelo menos um quarto barato. Tudo bem pra você?

O rapaz hesitou:

— Eu já gastei todo o dinheiro que eu trouxe ontem.

A garota abriu um largo sorriso.

— Deixa comigo. Vem.

Os dois desceram do carro num pulo. Crystal trancou o veículo e entregou as chaves para Cassiel. Ele colocou-as dentro do bolso da calça e os dois começaram a empurrar o fusca para o acostamento. Levaram sorte, pois havia uma leve inclinação que facilitou a tarefa. Assim que terminaram, a cigana bateu as mãos, limpando uma poeira inexistente.

— Vamos?

E o casal seguiu andando pelo acostamento. O lugar onde estavam era completamente deserto, porém era um campo aberto e bastante iluminado. Eles conseguiriam ver com facilidade qualquer pessoa que se aproximasse num raio de vários metros.

Andaram por meia hora, mais tempo do que Crystal previu. O hotel era um casarão relativamente pequeno e velho, clássico de beira de estrada. Havia uma caminhonete velha e enferrujada estacionada ali, claramente parada há décadas. O militar e a cigana entraram no hotel com uma expressão de desconfiança em seus rostos.

Quem os recebeu no balcão foi um rapaz eufórico e animado de uns treze ou quatorze anos. Ele se chamava Norman, e foi rapidamente chamar a mãe, responsável pelo hotel. A mulher chegou em seguida, gorda e enfiada em um imenso vestido florido.

— Nós gostaríamos de dois — e olhou para Cassiel para ter certeza — perdão, um quarto.

A mulher checou uma agendinha que estava a sua frente, lhes disse o preço e entregou a chave do quarto deles. Aparentemente eles eram os únicos hóspedes daquela noite.

Cassiel foi o primeiro a entrar no quarto. Não se surpreendeu, era exatamente o que esperava: um cômodo pequeno e cheirando a mofo. Havia ali duas camas de solteiro. Crystal também não se importou, retirando sua jaqueta de couro sintético e colocando no encosto de uma cadeira ali presente. Em seguida ela tirou seu salto e jogou num canto, caindo na cama como uma pedra.

O militar desabotoou a camisa da farda, ficando apenas como uma regata branca, e a dobrou de maneira milimetricamente perfeita, colocando-a em cima do acento da cadeira. Em seguida colocou a boina verde delicadamente em cima dela. Por fim, ele retirou o sapato e a meia e os deixou ao lado dos saltos de Crystal, deitando na outra cama ao lado dela. Sentiu que estava fedido, por mais que não sentisse nenhum odor desagradável. Podia ser um trauma por ter ficado meses e meses sem tomar banho quando ficou cativo.

A cigana percebeu que ao lado de sua cama havia um pequeno radiozinho de pilha. Pegou-o sem esperanças de que funcionasse. Surpreendentemente, ele ligou. Não só isso como a recepção parecia perfeita e o aparelho estava sincronizado com uma rádio conhecida. Naquele momento tocava uma música:

When you touch me I die

Just a little inside

I wonder if this could be love

This could be love

'Cause you're out of this world

Galaxy, space and time

I wonder if this could be love

A garota riu consigo mesma. Aquela letra... Era exatamente a maneira como Cassiel fazia com que ela se sentisse. Ao mesmo tempo em que ela sentia que perto dele estava irreversivelmente em perigo, não conseguia evitar. Talvez não fosse perigo. Talvez aquele fosse um medo irracional e subconsciente que ela possuía. Um medo de que pudesse amá-lo e perdê-lo.

Crystal permitira-se poucas conexões reais em sua vida. Além de sua família, amara a pouquíssimos, possíveis de contar nos dedos de uma mão. Não doía perder alguém por quem ela não tinha amor, então era mais fácil que fosse assim. Patricia fora uma das únicas exceções a qual se permitira. A cigana sabia que as aves não viviam mais do que vinte e tantos anos, mas se preparara de antemão para o dia em que a coruja morresse. Com pouco mais de sete anos de vida, ela ainda tinha um bom tempo pela frente.

I can’t help the way I’m feelin’

Goddess of Love please take me to your leader

I can’t help but keep on dancing

Goddess of Love

Goddess of Love

Olhou para o lado. Cassiel já dormia, da mesma maneira que deitara. A cigana se levantou e ficou de pé em frente a ele, lhe observando. Não conseguia conter a curiosidade em relação às cicatrizes dele. Observava com fascinação as marcas dispostas por todo o seu corpo. Decidiu-se.

Subiu em cima da cama e começou a beijar o pescoço do militar. Ele acordou ao primeiro gesto, e os beijos continuaram, cada vez mais intensos. Crystal desabotoou calmamente o seu vestido, enquanto Cassiel jogava a sua camiseta regata para o canto do quarto. Em seu peito havia uma enorme marca escura que ia de sua escápula até próximo da virilha.

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Erika não conseguia prestar a menor atenção ao filme que passava na tela. Roger estava deitado em seu colo comendo pipoca, mas a morena não parecia estar ali. Sua cabeça estava em outro lugar, algum bastante distante.

— Eu preciso ir tomar um banho.

— Mas o filme ainda está na metade.

— Eu realmente preciso, Roger. — E sorriu. — É rapidinho, eu já volto. Você podia aproveitar e ir buscar as cervejas enquanto isso.

O homem a olhou de maneira cética e então sorriu. Levantou-se e foi se aprontar para ir até o posto de gasolina comprar as bebidas. A mulher seguiu lentamente até o banheiro, observando todas as coisas ao seu redor. Parou no porta-retratos de Cody, que ficava em cima da bancada da cozinha. Ele estava sumido já há dois dias, e com o carro dela. Erika tentara contato dezenas de vezes, porém sem sucesso. Se ele não aparecesse no dia seguinte, ela iria anunciar seu desaparecimento em uma delegacia, temendo que o pior pudesse ter acontecido. Mas ele não era o próximo, era? O próximo era o Ulysses.

Erika entrou no banheiro e, apenas por precaução, não trancou a porta. Percebeu que o secador estava ligado na tomada e sorriu. Ela não usava o objeto, de modo que Marissa é quem devia ter deixado o aparelho ligado na última vez que o usou. A morena engoliu em seco e abriu a porta do box transparente de vidro. Entrou e ligou o chuveiro, sentindo a água morna tocar sua pele. Pegou um sabonete e acabou derrubando o outro. Pela coloração, aquele era um sabonete que apenas Marissa usava.

Cada objeto naquela casa era uma lembrança constante. Erika suspirou.

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Cassiel sentiu seu rosto em chamas. Gritou e instintivamente empurrou Crystal para o lado, tentando protegê-la de um fogo inexistente. Mas não era como fogo, ele logo percebeu, apenas como cortes: profundos em sua pele, como cacos de vidro. A cigana tombou no chão com um baque surdo, acordando e soltando um gritinho de susto.

O militar foi dizendo:

— É a Erika, eu tenho certeza. Eu sei que é ela. Meu rosto... Ardia.

Crystal esfregou os olhos, enrolada no lençol, tentando entender a situação.

— Você viu alguma coisa? E por que você acha que é a Erika? O próximo não era o Cody?

Cassiel delicadamente apontou para a porta.

A cigana virou-se e encarou com incredulidade o sinal da morte da editora. Pendurada em um prego estava uma velha edição da Anubis. Crystal se aproximou e observou o título da matéria de capa:

Acidentes caseiros tornam-se mais frequentes. Imprudência e falta de atenção são ingredientes fatais para o aumento do número de mortos e feridos em sua própria casa.

Mesmo antes de abrir a revista e procurar a matéria, ela já sabia quem tinha sido a repórter responsável por ela.

— Foi a primeira coisa que eu vi quando despertei. Exatamente como na visão com a Marissa e a faca.

Crystal colocou o vestido com uma rapidez incrível, em seguida descendo as escadas. Lembrava-se de ver um telefone na recepção. Ele seria a sua salvação, já que os celulares continuavam sem sinal algum.

Norman não estava mais ali, mas sua mãe estava, fazendo tricô. A cigana educadamente pediu para usar o telefone.

— Dois dólares, querida.

Crystal concordou com um aceno desinteressado, discando o número de Erika após conferi-lo em seu celular. O celular da morena estava desligado. A cigana então tentou o fixo, no exato momento em que Cassiel descia, já vestido. O telefone tocou, tocou, tocou e caiu. Crystal fez mais duas tentativas, falhando em ambas.

— Liga pro Ulysses. Ele pode ir até a casa da Erika.

A gorda olhava de canto de olho pra eles, desconfiada. Mesmo assim, ateve-se ao seu tricô. A atividade fez com que Cassiel pensasse em sua mãe. Nos últimos dias ela quase não conseguia dormir e passava madrugadas a fio fazendo luvas, sapatos, casacos e toucas, apenas para desmanchá-los no dia seguinte e começar tudo de novo.

Ulysses atendeu no segundo toque.

— Oi, aqui é a Crystal. Eu e o Cassiel estamos perto do cemitério ainda, o nosso carro estragou, deu tudo errado. Você precisa ir até a casa da Erika, ela é a próxima.

Do outro lado da linha, o jornalista tremeu. Desligou o aparelho sem questionamentos e levantou-se da cama, ainda de cueca. Colocou uma calça jeans, uma camiseta branca e um cardigan vermelho, descendo as escadas de dois em dois degraus. Já passava das duas da manhã quando ele ligou o carro e se dirigiu até a casa de Erika, tentando contato com ela por telefone a cada dois minutos.

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Debaixo do chuveiro, Erika não ouvia o telefone tocando. Seu celular menos ainda, já que ele estava enrolado debaixo das cobertas em cima do sofá da sala. Roger demoraria alguns minutos a voltar, de modo que ela estava incomunicável.

Tomava banho por algum motivo indecifrável, muito além da simples higiene. Queria renascer, queria acordar e descobrir que tudo aquilo era um pesadelo. Sabia que a sua vez na lista estava chegando e, embora sentisse a falta de Marissa, não queria encontrá-la tão cedo. Queria viver muitos e muitos anos, ver Jamal crescer e se tornar um rapaz belo e bem sucedido. Sonhava um futuro diferente agora, bem aquém do que imaginara com a loira, mas era um futuro. Uma esperança.

Desligou a água e enrolou-se na toalha. Esfregou o rosto e pôde ver com clareza a névoa que tomara conta do banheiro. Deu um passo e subitamente escorregou no sabonete de Marissa. Seu corpo foi de encontro com o box com força, fazendo o vidro se quebrar em vários pedaços.

Erika caiu no chão ao lado dos cacos de vidro.

Do lado de fora, Ulysses apertava insistentemente a campainha. A noite estava quente e não havia ninguém na rua. Então subitamente o jornalista foi tomado por um arrepio, uma onda de eletricidade que passou por todo o seu corpo.

A editora-chefe gritou alto. Olhou para o corpo nu e viu que havia um enorme pedaço de caco de vidro fincado de maneira profunda em sua coxa esquerda. Seus braços e torso também estavam cobertos de pequenos cortes. Erika passou a mão pelo rosto e sentiu que a cabeça sangrava, mas ela não sentia nenhuma dor naquela área.

— Roger! Roger!

Apenas o silêncio. A campainha já não tocava mais.

Erika olhou para a pia e percebeu uma toalha ao lado do secador. Não hesitou em puxá-la, mas o objeto veio junto com força. A umidade de seu corpo causou um pequeno curto circuito, suficiente para que ela levasse um choque capaz de queimar a ponta de seus dedos e fazer bolhas grotescas. A morena gritou o mais alto que pôde. O secador então caiu no chão, desligando-se da tomada.

De repente, passos. Erika não tinha forças para gritar por ajuda. Olhou para os dedos em carne viva e sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto. Teve a certeza de que estava morrendo.

Quando a porta do banheiro se abriu, uma esperança. Ela estava salva. O homem entrou e olhou para a mulher caída. Inclinou o pescoço, numa expressão infantil e indecifrável.

— Me ajuda, rápido.

O Cara de Coelho sorriu, dessa vez sem máscara. Então num gesto simples empurrou o pequeno armário com espelho que ficava na pia direto no rosto de Erika. A mulher não teve tempo de gritar, sentindo o impacto do vidro se chocando contra seu rosto e perfurando sua bochecha, pescoço e olhos. O sangue escorreu e misturou-se com a água do banho.

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Pela manhã, Ulysses acordou caído no sofá ao lado de uma garrafa vazia de vinho. Em seu celular havia mais de quinze chamadas perdidas, sendo todas ou do número do hotel ou dos celulares de Crystal e Cassiel. Havia, porém, uma chamada perdida da redação da Anubis. Ver aquele número fez o jornalista lembrar-se da noite anterior, e em como se frustrara tremendamente quando Erika não o atendeu. Decidiu ligar primeiro para a revista.

Quem atendeu foi Sherri, a estagiária.

— Graças a Deus você ligou, Ulysses!

— Me desculpa, eu passei mal ontem a noite, estava dormindo até agora. O que foi?

— Você tem algum outro número através do qual a gente possa encontrar a Erika? Ela não atende o fixo e nem o celular. E ninguém aqui sabe o endereço dela.

Ulysses suspirou.

— Ela acabou de perder a companheira, o que é tão urgente que vocês precisam incomodá-la?

Sherri ficou em silêncio durante alguns segundos. Então suspirou e respondeu:

— É sobre o cunhado dela. Uns policiais ligaram aqui pedindo pra Erika ir até a delegacia prestar um depoimento. Eles encontraram o carro dela completamente destruído, e o rapaz estava dentro.

O Cody está morto. Deus. A Erika! A Crystal estava certa.

— Eu vou até a casa dela agora, pode deixar. — E desligou.

Sua cabeça estava um turbilhão de pensamentos.

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Cassiel despediu-se de Crystal com um abraço rápido e singelo.

— Eu te encontro depois do almoço. — A cigana garantiu. — Eu só preciso tomar um banho e dar de comer para a Patricia. Ela sabe se virar, mas mesmo assim deve estar faminta. Eu vou ficar tentando o Cody no celular o tempo todo, ok?

O militar concordou meneando a cabeça. Ele decidira que iria imediatamente até a casa de Erika, já que Ulysses também decidira parar de atender o celular. Cassiel frustrava-se com aquele comportamento. Quando eles mais precisavam se comunicar, todos resolviam se separar ou não atender seus celulares. Olha quem está falando. Você ficou a noite toda em um hotel sem sinal. Estúpido.

— Eu vou descobrir um jeito de salvar a gente. Eu prometo. — Ele disse. Crystal sorriu de maneira doce, porém incrédula. Aquilo partiu o coração do loiro.

Cassiel pediu um táxi e seguiu até a casa de Erika. Dentro do veículo, se lembrou de que não havia trazido dinheiro e pediu que o motorista fosse até sua casa antes. Isso tomaria mais tempo, e o militar sentiu-se ainda mais estúpido. Sabia que os outros sobreviventes contavam com ele, mas estava farto daquela carga.

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Crystal sentiu que algo estava errado logo quando se aproximou da porta de entrada. Alguém tentou arrombar, ela percebeu de imediato. Apesar disso, a casa continuava trancada. Seu coração quase saiu pela boca ao tentar decifrar o que poderia ter acontecido. O Cara de Coelho. O gato do Ulysses. Patricia!

Abriu a porta num rompante e rapidamente a trancou, assustada. Virou-se e caiu de joelhos na sala, irrompendo em lágrimas.

A cabeça de Patricia estava em cima da televisão, como um enfeite. O tapete havia sido retirado e o corpo desfalecido da coruja estava no chão da sala, no meio de um pentagrama desenhado com o sangue da ave. Em cima do desenho estava escrito:

Bruxa maldita.

A cigana gritou alto, batendo com os punhos no chão.

E então ele surgiu, esticando a cabeça da cozinha.

— Bu! — Bunny Facedisse.

Crystal sentiu seu coração congelar. Tentou abrir a porta, mas teve dificuldade com a tranca. Frustrada, arranjou sangue frio suficiente para passar pelo pentagrama e subir as escadas com uma velocidade incrível. O assassino então correu atrás dela com uma faca de cozinha em mãos. A cigana escondeu-se num ponto cego, ainda perto da escada. Assim que o mascarado passou por ela, a garota voltou a descer a escadas com uma velocidade incrível.

Aproximou-se da porta, girou a maçaneta e congelou ao perceber que as chaves não estavam mais ali.

— Socorro! — Gritou instintivamente. Apesar de ser um domingo, eram nove da manhã e ela morava em uma vizinhança relativamente movimentada. Era uma tentativa válida.

O assassinou esfaqueou a porta segundos depois de Crystal sair dali. Ela então correu até a cozinha, sem ter ideia do que fazer. Lá, apressou-se em abrir as gavetas, mas antes que pudesse pegar uma faca, Bunny Facejá estava em seu encalço. A cigana então ficou em um extremo do balcão da cozinha, sendo que o assassino ficou no outro. Em segundos desenrolou-se um jogo de adivinhação de para qual lado o outro iria seguir.

Pensa, Crystal, pensa. Puta que pariu!

Ela seguiu para a esquerda, conseguindo escapar do assassino por alguns segundos. Voltou a seguir escada a cima, com o plano de pular através de uma das janelas. Entrou no único quarto que só possuía fechadura do lado de dentro, o seu.

Ainda tremendo, retirou o celular do bolso. Começou a discar o número da polícia, quando ouviu o Cara de Coelho gritar:

— Abre essa porta, sua bruxa filha duma puta!

Essa... Voz.

Com as mãos trêmulas, conseguiu escrever um nome. Enviou a mensagem para Cassiel durante os segundos mais longos e tensos de sua vida. Duas palavras que mudariam tudo.

Coelho. Ulysses.

Ulysses arrombou a porta com um único movimento. Crystal deixou o celular cair, sem saber como reagir. A cena aconteceu em câmera lenta, como nos filmes. O assassinou retirou a máscara e a jogou num canto. A cigana estava completamente sem reação. Talvez tivesse conseguido voltar a escapar, mas o baque da revelação a deixara completamente sem chão.

— Por quê? — Foi tudo o que ela perguntou. Merecia uma resposta.

Mas o assassinou não respondeu. Apenas a empurrou em direção ao chão e sentou-se em seu peito. Crystal tentou se desvencilhar dele, lhe dando socos e esperneando. Ulysses não se moveu um centímetro. Conseguira assassinar da mesma forma um homem com o dobro de seu peso e tudo isso em músculos. A cigana não oferecia nenhuma ameaça.

Desferiu o primeiro golpe direto na lateral da cabeça dela, fazendo o sangue jorrar. Crystal soltou um meio grito, mas então se calou, morrendo instantaneamente. Mesmo assim Ulysses continuou esfaqueando sua cabeça até que a faca estivesse cheia de cabelo e sangue.

Então desceu as escadas lentamente e seguiu até a cozinha. Admirou a gaveta de facas aberta e pegou um afiado cutelo. Passou pela sala e pegou a cabeça de Patricia, colocando-a debaixo do braço. Subiu os degraus de dois em dois, assoviando, e dedicou os minutos seguintes a decapitar Crystal usando o objeto. Conseguiu finalizar a tarefa depois de dois minutos e vários golpes. Nos filmes parece mais fácil, pensou.

Por vários segundos encarou o corpo decapitado no chão. Então ergueu a cabeça de Patricia e achou que aquilo poderia ser divertido. Colocou a cabeça da ave no chão em cima do corpo da cigana e riu tremendamente, observando a bestialidade que acabara de criar. Sua obra prima deixaria os povos da antiguidade com inveja.

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Cassiel acabava de conversar com Roger quando recebeu uma mensagem. Na hora não a leu, ensimesmado. Erika estava morta, o amigo encontrara o corpo na noite anterior. A editora aparentemente morrera durante um acidente no banho. Os policiais investigavam o caso, mas o militar sabia exatamente do que se tratava. Estava cansado, dolorido, triste. Queria apenas que tudo aquilo acabasse.

Decidiu ir para um dos únicos lugares que parecia lhe fazer bem. Antes que pudesse sair da frente da casa de Erika, seu celular tocou. Era sua mãe. Os dois conversaram por poucos minutos, sendo que Cassiel ignorou o assunto da morte da morena. Apenas avisou que iria até o Museu das Forças Armadas e desligou.

Seguiu a pé, já que a distância era de apenas vinte minutos de caminhada. Fazia sol, e o rapaz estava vestido com uma regata branca, um colete cinza, calça jeans e chinelos. Usava em seu pescoço, como sempre, suas dogtags. Tivera tempo de tomar um banho de dois minutos em sua casa, quando foi até lá buscar o dinheiro do táxi.

O museu estava vazio naquele dia. Cassiel cumprimentou o recepcionista, um velho amigo dos tempos de treinamento. Os dois papearam por cerca de dez minutos, e então o militar entrou.

O lugar era enorme. Fora colocado dentro de uma mansão construída no século XVII, propriedade de uma família de militares. Ela fora cedida ao Exército dos Estados Unidos nos anos oitenta, por uma herdeira e uma das primeiras Generais femininas da corporação. Desde então o casarão se dedicava a contar em detalhes o envolvimento do exército em acontecimentos históricos através dos séculos, em especial as duas guerras mundiais.

Para Cassiel o lugar era um templo, assim como a igreja era para os cristãos. Ali ele sentia-se em casa. Sentia-se inspirado. Admirava as fotos de soldados combatentes da Segunda Guerra Mundial, lia seus diários, descobria suas histórias. Entristecia-se em saber que muitos deles morreram anônimos, sem ter seus rostos imortalizados. Paradoxalmente, queria ser um desses. Afligia-lhe a ideia de alguém, muitos anos no futuro, saber quem ele tinha sido. Queria viver e partir desconhecido, porém sabendo que deixara algo bom para trás.

Entrou no banheiro e olhou-se no espelho. Estava vermelho e suado. Lavou as mãos e as enxugou. Então retirou o celular do bolso. Percebeu que a mensagem que ele ignorara tinha sido enviada por Crystal. Congelou. Abriu-a no exato momento em que a porta do banheiro também se abriu.

Coelho. Ulysses.

Seu coração se desfez no peito.

O homem surgiu como um fantasma.

Ulysses vestia uma camiseta branca e larga completamente encharcada de sangue. Sua calça amarela também estava coberta do líquido vermelho, bem como suas mãos e o colar em seu pescoço. O jornalista jogou no chão a jaqueta de couro que acabara de tirar, a única peça de roupa limpa. Suas mãos tremiam tremendamente.

— Eu acho que eu fiz alguma coisa. Eu acho que eu matei alguém.

Cassiel foi levado de volta para o dia do acidente no Roar Zoo. A face, dessa vez, ficou nítida. O homem que esfaqueara a detetive Ramona Cooper. Era ele. Com seus enormes olhos claros e a sua bocarra vermelha. Ulysses. Subitamente as peças se encaixavam.

Assim como os seus outros sentimentos, seu olhar de ódio foi impossível de esconder.

— Cassiel, me ajuda. Eu não sei o que aconteceu. Eu... Eu acordei na calçada, caído e desse jeito, cheio de sangue.

O militar se segurava na pia do banheiro sem saber como reagir. Estava em choque.

— Você é o Cara de Coelho. O que você fez com a Crystal?

A expressão de terror no rosto de Ulysses foi maior do que Cassiel poderia imaginar. O jornalista ficou mudo.

Em sua cabeça, muitas coisas se relacionavam. Não pode ser. Eu sei que eu não fiz nada disso. Eu tenho consciência das minhas ações. Eu não sou um assassino. Eu tenho uma carreira, uma família. Eu sou um homem bom.

Você dorme demais, uma voz disse em sua cabeça.

Não pode ser possível.

Era frequente que Ulysses passasse boa parte do seu tempo livre dormindo. Nos finais de semana era possível que ele passasse doze, quatorze horas deitado em sua cama. Subitamente, compreendia que isso podia não ser a verdade. Eu durmo, mas eu não sou o único que vive aqui.

Lembrou-se de uma única situação, quando ainda era criança. Tinha sete anos.

Acordara em um terreno baldio de madrugada. Ao seu redor havia apenas a escuridão. Tateou os bolsos e encontrou um isqueiro, presente de seu avô. Acendeu-o e soltou um grito. À sua frente havia um coelho com as tripas para fora. Ulysses iluminou suas roupas e percebeu que ele próprio estava coberto de sangue.

Correu até sua casa e encontrou toda a vizinhança reunida ali. Havia duas viaturas de polícia, sendo que toda a comunidade havia sido reunida para encontrá-lo. Todos ficaram chocados com a maneira como ele estava portado, mas a história morreu dias depois. Ulysses ficara de castigo por semanas, mas logo o assunto foi esquecido e jamais foi trazido a tona. Mesmo quase vinte anos depois, o jornalista via-se várias vezes se indagando sobre o que realmente teria acontecido. Eu apaguei e aquele coelho morreu. Fui eu.

Eu sou um monstro, ele percebeu de repente. Pior. Um monstro vive dentro de mim sem que eu me dê conta disso.

Flashbacks tomaram conta de sua cabeça. Ocasiões, fatos, pessoas. Transtorno dissociativo de identidade era o nome correto. Ulysses escrevera algumas matérias a respeito do assunto, de modo que sabia bastante sobre o tema. Retomou seus conhecimentos e começou a mentalmente fazer a associação de cada uma das características. Perdas de memória, muito sono. Eram as únicas que se relacionavam. O rapaz não se lembrava de nenhuma experiência traumática durante sua infância, nem nenhum tipo de estresse ou algo do gênero. Tivera um leve caso de transtorno alimentar quando tinha quatorze ou quinze anos, mas fora isso não havia nada. Anos e anos no escuro.

Eu não matei essas pessoas. Por que eu faria isso? Eu... Não...

— A Crystal... — Cassiel murmurou, tirando o jornalista de seus devaneios.

O militar então pulou em cima de Ulysses com toda força, derrubando-o no chão. O outro rapaz caiu com força, batendo a cabeça no piso e sentindo sua visão ficar turva. Cassiel então sentou em seu peito e começou a desferir diversos socos em seu rosto. Um, dois, três. Na quarta pancada, Ulysses sentiu um dente sendo arremessado para fora de sua boca. Decidiu que era hora de revidar. Eu não fiz isso, seu filho de uma puta!

Com um único movimento deu um soco no estômago de Cassiel, fazendo-o cair para trás. O jornalista então se levantou com dificuldade, sentindo o rosto em chamas. O militar caiu no chão, mas também ficou de pé com grande velocidade. Ulysses, porém, era muito mais rápido e em segundos já tinha saído do banheiro.

Do lado de fora, o silêncio. Nem mesmo o militar que cuidava da guarita estava ali. Antes que Ulysses pudesse decidir o que fazer, Cassiel apareceu e voltou a lhe derrubar com um empurrão forte. O jornalista bateu em uma caixa de vidro, que guardava uma carabina velha, e caiu no chão. Os cacos voaram para todos os lados, e Ulysses sentiu o braço queimando. Com uma rápida olhada percebeu os cortes.

Cassiel estava decidido a acabar com ele. Jogou-se contra o jornalista com força, mas bateu o rosto no chão, já que o rapaz já havia saído dali, escapando como uma sombra. Ulysses correu escada à cima, procurando uma maneira de tirar o militar de seu encalço. Sentiu-se zonzo, fraco... E desmaiou. Rolou os degraus até embaixo.

O sol atravessava a janela basculante que ficava ao lado das escadas. Cassiel observou o corpo do jornalista caído e sem forças. Pegou-o e o colocou nos ombros como um saco de batatas. Nunca imaginou que possuísse tanta força. Subiu os degraus, decidido a dar um final àquela história. Assassinato, não é? Pois que assim seja. Em sua cabeça havia duas imagens: a de Tina e a de Crystal. Ele tinha que conseguir salvar pelo menos uma delas.

Largou o corpo desfalecido de Ulysses ao lado da janela do terceiro andar, apoiado com as costas na janela. A sala onde eles estavam possuía diversas espadas militares presas nas paredes, bem como uma réplica em miniatura de um tanque de guerra utilizado pelos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. O objeto ficava no meio da sala, protegido por uma caixa de vidro como as do primeiro andar.

Cassiel respirou fundo, fixando o olhar no tanque.

Não percebeu quando o jornalista se levantou, atacando-o por trás. Não era mais Ulysses, mas Bunny Face. O assassino segurou o pescoço de Cassiel com força e bateu a cabeça dele no vidro com um movimento só. O loiro sentiu os cacos de vidro em seu rosto e sentiu claramente um deles se alojando em seu globo ocular esquerdo. Urrou de dor e num movimento instintivo deu uma cotovelada certeira na virilha do Cara de Coelho. O serial killer caiu no chão.

O militar gritava de dor, com a mão colocada sobre o olho esquerdo. Andou cambaleante até a parede, tentando pegar uma das espadas. Caiu em frente a elas, sem nenhum fôlego. Sentiu a respiração pesada do assassino atrás de si. Ouviu a risadinha infantil e diabólica.

Mas então ouviu dois tiros vindos da porta. Virou-se para trás e viu o assassino com seus imensos olhos claros esbugalhados. Uma das balas atravessou o seu peito e ficou presa na parede. A outra foi certeira em sua cabeça, e o militar imaginou que ela não tivesse saído. O Cara de Coelho caiu no chão com um baque surdo.

Atrás dele, Dahlia segurava a pistola empunhada com firmeza. Ao lado dela estava o militar responsável pelo museu, tremendo de medo. Cassiel olhou para os dois com uma expressão de incredulidade, sentindo seu mundo girar. Abriu a boca e murmurou:

— Ela precisa de ajuda.

E desmaiou de dor.


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Notas finais do capítulo

Bom, vamos lá:

Várias cenas aparentemente sem objetivo nesse capítulo, farão sentido no último capítulo. Cito aí a cena do "segredo da Tina" e o personagem do Roger. Ambos terão importância no capítulo final.

Eu pesquisei e aparentemente o casamento gay ainda não é permitido na Flórida, lugar onde acontece a fanfiction. Por isso não há menção ao fato de Marissa e Erika serem legalmente casadas.

Quem aí sacar a referência/homenagem dos personagens do hotel onde Cassiel e Crystal ficam hospedados ganha um doce. Tá fácil, vai? HAHAHA XD

A música que a Crystal ouve na rádio é Venus, da Lady Gaga. Eu achei que a letra era MUITO apropriada para a relação dela e do Cassiel, por isso decidi incluir.

A cena da perseguição da Crystal é clássica dos slasher movies. Eu quis, porém, deixar a personagem esperta. Basta ver que a todo momento ela tenta sair de casa, mas acaba sendo forçada a subir as escadas novamente. Achei que seria interessante brincar com essa dinâmica clássica.

Eu não expliquei isso no capítulo porque tiraria o "clímax" da história, mas o Ulysses ligou para Tina para saber onde Cassiel estava. É por isso que eu mencionei o militar avisando a mãe de para onde iria, para que as coisas ficassem verossímeis. E ninguém percebeu as roupas ensaguentadas porque ele estava usando a jaqueta de couro, e a calça podia ser muito bem estilizada de amarelo e vermelho.

Vamos agora ao ponto crucial da história: a revelação do assassino! Eu tenho certeza absoluta que esse plot não será unanimidade. Afinal o resultado foi o mais óbvio, correto? Vários leitores apontaram Ulysses como Bunny Face, e vocês estavam certos. Mas pra mim a trama do Cara do Coelho foi TÃO mais do que um "whodunit"! I mean: ele foi a principal trama e o principal antagonista dessa fanfiction. A sua identidade foi apenas a cereja do bolo, de modo que mesmo que essa revelação não tenha sido satisfatória, não acho que ela desmereça toda a trama e tals. Quero dizer: EU gostei do que planejei, mas tenho consciência que a maioria de vocês esperava uma coisa mais surpreendente, certo?

Outro adendo é que a fanfiction ainda não acabou. Pontas soltas e tramas mal resolvidas serão resolvidas no capítulo final. Entre elas um background bacana sobre a história de Ulysses, fatos que ele próprio desconhecia e que o levaram a ser como era. Ou seja, aguardem, a história do Cara de Coelho não acaba aqui! Fatos do passado serão mostrados no último capítulo. Eu não pude fazer isso aqui porque eu mostrei a visão do Ulysses das coisas, e esses fatos são desconhecidos pra ele. Enfim, esperem e verão.

Os motivos de Dahlia ter aparecido ali e salvado Cassiel também serão (bem) explicados. Ela não surgiu magicamente, vocês vão ver. Essa subtrama será bem embasada, prometo.

"Ela" a quem Cassiel se refere na última fala do capítulo, é Crystal.

Por fim, Crystal. Vocês podem me perdoar?

Enfim, é isso galera. Abraço! :D



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