Trovão Do Leste escrita por T I Wright


Capítulo 12
O Dragão de Rahna


Notas iniciais do capítulo

Olá! Sim, eu ainda vivo. Me desculpem mil vezes por demorar tanto. Não, eu não vou abandonar essa fic. Não depois de todos os leitores maravilhosos que passaram por aqui. Obrigada novamente!

Enfim, depois de um longo inverno, eu saí da hibernação e estou aqui com um Capítulo com 'c' maiúsculo. Peço paciência para ler esse mostrinho aqui; princialmente porque levei umas boas chifradas dele antes de terminar (o que foi a poucos minutos atrás :P)

O caso é: 5000 e bolinha palavras. Deu trabalho que só vendo e espero mesmo que gostem, pois acho que foi aquele que mais exigiu de mim até agora. Levei um tempo considerável pesquisando sobre o personagem em questão, mas tenho certeza que valeu a pena.

Espero que achem isso também.
Boa leitura!



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- Mais uma vez, sim? – insistiu o grande Urgal, encarando Kogar de cima para baixo. Pela milésima vez aquele dia, ele estava preso. O maior segurava seu pescoço em uma chave de braço com o cotovelo direito e sua mão segurava um de seus chifres enquanto a outra mantinha seu braço dolosamente torcido para trás.

Com um empurrão, Kragg libertou-o aos tropeções para frente para voltar ao outro extremo do quadrado de luta riscado no chão. Kogar ergueu-se e seguiu de volta para sua ponta da arena, tentando manter a pouca dignidade que lhe restava ao endireitar as costas e conter o impulso de esfregar o pescoço. Mesmo com tantas repetições, ele simplesmente não conseguia ler os movimentos de seu adversário, mesmo que Kragg insistisse que dava dicas explícitas sobre seus movimentos instantes antes de atacar.

Já estavam nisso há pelo menos duas horas ininterruptas, a não ser para que Kragg o segurasse em uma posição constrangedora e o soltasse por tempo suficiente apenas para voltar para sua ponta do quadrado. Perder um treino em público já era ruim o suficiente. Perder para o próprio irmão era muito pior.

O sol batia às costas de Kragg, fazendo sua sombra chegar aos pés de Kogar e seus olhos ressaltarem na sombra de seus chifres. Ele engoliu em seco. Lutar contra qualquer um já era difícil para alguém como Kogar, pequeno até mesmo para um Urgal comum. Do contrário do irmão, Kragg era um dos melhores de sua aldeia, além de ser um Kull. Sua força era comparável a de um Shrrg, os lobos gigantes das montanhas do sul, dos quais Kogar somente ouvira rumores. Ao repassar as informações mentalmente, Kogar sentiu um arrepio correr por suas costas. Era injusto em todos os aspectos que fosse logo ele a tentar ensinar alguma coisa a Kogar. Mas era a única esperança do pai para que Kogar crescesse alguns músculos, mesmo que estes fossem acompanhados de alguns hematomas notáveis.

Mas sempre há uma saída - a frase incomodou-o um pouco, pois ele mesmo encontrava-se numa encruzilhada. O tamanho impressionante de Kragg trazia consigo a desvantagem do peso, e os poucos segundos que ele ganhasse com o atraso do irmão seriam a diferença entre a derrota humilhante e a derrota extremamente humilhante. Ele preparou-se novamente, inclinando para frente os chifres mirrados. Kragg soltou um urro de batalha impressionante e avançou em sua direção. Kogar firmou os pés no chão e preparou-se para desviar da massa em movimento no último instante.

Kragg abaixou a cabeça ainda mais, descobrindo o sol às suas costas.

A luz bateu bem nos olhos de Kogar.

Sem querer, Kogar deixou sair um som engasgado quando foi atingido no peito por chifres maciços, e jogado para trás, sem conseguir conter um gemido quando finalmente sugou ar para os pulmões.

Sua visão piscou em pontos escuros e um braço forte puxou o seu para cima. Kragg o olhava com um indício de sorriso no rosto. Mas não um de verdade.

- Boa essa, mais ainda lhe falta agilidade – pensou por um segundo – Talvez um pouco mais de atenção, também, para não cair mais nessas armadilhas – ele explicou com um aceno de cabeça.

Ainda tonto, ele assentiu. Xingou em voz baixa. Ele deveria ter percebido: o ataque fora muito direto, óbvio demais. Se havia algo para treinar não era seu corpo, mas sua mente. Se não soubesse o que seu atacante pretendia fazer, era inútil tentar escapar.

Escapar. Era a única coisa que Kogar não podia fazer. Não era forte o suficiente, nem ágil, nem habilidoso. Era minimamente esperto, mas isso quase não contava se fosse considerar o quanto era desatento e desleixado. O máximo que conseguia fazer era ser inútil para o pai. Mas não podia manchar a honra de sua família mais ainda. Estremeceu. A lembrança da noite anterior voltou-lhe à mente mais rápido do que pôde contê-la.

O Urgal maior ainda olhou-o de cima para baixo, fazendo-o segurar seu olhar por mais tempo do que julgava ser capaz. Ele desviou os olhos.

- Não sabe pelo o que tive que passar para te manter aqui, Kogar – seu tom era duro. Não diferente da outras vezes, mas dessa havia uma frieza em sua voz que fez Kogar querer cavar um buraco e esconder a cabeça dentro – As tradições são explícitas: qualquer cria fraca deve ser sacrificado, pelo bem da linha de sangue puro dos Urgals Draugara– ele recitou, somente uma das muitas citações que proclamava diariamente. O hábito não fez com que a frase doesse menos.

Mais uma vez, Kogar fracassara ao tentar matar sua primeira presa na Espinha. Mesmo já possuindo seus chifres a mais de um ano, ele nunca pareceu grande o suficiente para encarar as florestas da Espinha sozinho. Então ele esperou. Ao perceber que o filho não cresceria muito mais, seu pai mandou-o à Espinha de qualquer jeito. Ao voltar, obviamente em fracasso, ele fora mandado para lá novamente. E foi quando tudo deu errado. De novo. A pior parte foi que ele mesmo se pôs em encrenca dessa vez. Se pelo menos não houvesse entrado na floresta...

De repente, sentiu-se tão pequeno que seria facilmente esmagado se seu pai cruzasse o cômodo até onde estava.

- Desculpe.

Kogar ouviu sua voz pequena, mas aos ouvidos do pai provavelmente estava menor ainda. Ele bufou, o cenho franzido sob a sombra dos chifres fazendo de seu rosto uma visão aterradora na meia luz da lareira. Ele disse:

- Nada mais há para se fazer – e Kogar sabia a que ele se referia. Já haviam falado disso antes. Fato: a Seleção aconteceria no dia seguinte. Fato: Kogar participaria. Incógnita: o que seu pai faria com ele se não fosse escolhido.

Afinal, que outra coisa poderia ele fazer? Kogar era somente o filhote mirrado da ninhada que ele tivera pena demais para sacrificar. Ele o olhou de cima para baixo com olhos amarelos e Kogar levantou o queixo. Não era um gesto de insubordinação, mas de rendição; ele oferecia sua garganta a seu pai. Ele levantou uma mão e passou um dedo pelo pescoço de Kogar, como se decapitasse o próprio filho.

Sacudindo-se, Kogar percebeu que ainda estava na arena determinada para o treino. Alguns transeuntes ainda ocupavam o local, talvez imaginando o que havia de errado com o filho raquítico de Krongru, o Temível. Percebendo o vazio que se instalara naquela parte da aldeia, lembrou-se em um sobressalto do ultimato do pai.

Kogar, o não temível, saiu correndo para a Seleção.

***

Pelo menos ele conseguia correr.

Ele saiu costurando seu caminho pelas tendas da aldeia até chegar ao grande espaço bem no centro da vila. Um amplo semicírculo contornado por altas tendas retangulares. Essas pertenciam às famílias com os status mais altos entre os Draugara. Logo no meio estava a mais ampla e maior das tendas, na frente da qual uma enorme fila já se formava. No fim da praça, Kogar encaixou-se na fila e esperou.

A fila torturantemente grande deu-lhe tempo para remoer os pensamentos que mantinha afastados. Como, por exemplo, por que havia nascido tão pequeno. Esse era o que mais o incomodava. Seu pai era grande e forte, assim como o irmão. Ambos Kulls de respeito e renome entre os Draugara, a maior tribo de Urgralgra do lago Woadark.

E sua mãe...

Flashes piscaram por trás dos olhos do jovem Urgal, lembranças de cheiros e impressões. Ela cheirava a erva doce e tinha um rosto gentil. Ele a imaginava assim, pelo menos. Disseram-lhe uma vez que os chifres de sua mãe eram pequenos. Kogar achava que era por isso que considerava o rosto de sua mãe bonito quando os de todas as outras fêmeas eram grosseiros e sombreados por chifres grandes.

Ela morrera há alguns anos. Em uma das revoltas depois da derrota do rei Tirano, um grupo de soldados de um lorde de Teirm, que pensava poder controlar a região central da Espinha, atacara a aldeia dos Draugara no braço oeste do lago. Kogar não se lembrava da ocasião, mas recordava de estar nos braços gentis de sua mãe em um momento e, em outro, ser carregado para longe por mãos rudes e enormes. Depois disso, sua vida virou um purgatório. Depois disso, começaram as comparações com seu irmão. “Kragg cresceu mais rápido, não?” “Ele parece tão pequeno! Você tem alimentado o pequeno, Krongru?...”

A lembrança que mais se destacava, entretanto, não eram as comparações, nem a rejeição clara do pai por um filho tão incapaz como ele. Não as diversas derrotas e fracassos ao longo de sua existência. Era uma história.

“‘No começo, havia somente os deuses e o mundo’, dizia sua mãe, na voz mais doce que poderia soar em seus ouvidos. ‘E, nesse mundo, viviam os dragões’, ela deixava os olhos divagaram para o céu, como se tentasse imaginar as feras voando por cima de sua cabeça. ‘Belíssimas criaturas, os dragões. Voavam como pássaros, cuspiam fogo como uma fogueira e brilhavam como um baú de joias’. Suas comparações, por mais belas que fossem, não faziam muito sentido para Kogar, que vivera tão pouco na época, mas ele ainda a olhava maravilhado.

‘Um dia, Rahna, ela com chifres de ouro, mãe de todos, passava pelas montanhas do sul, as quais os anões chamam de Beor. Lá, ela sentou-se em um amplo prado florido e distraiu-se colhendo flores. O que Rahna não sabia era que aquele era o lar do temível dragão da montanha, Ënurfala. O dragão, percebendo a invasão de seus domínios, pousou no prado e mandou que Rahna fosse embora de lá.

Rahna ficou pasmada com a beleza do dragão, cujas escamas eram do mais alvo branco que ela já vira. Cobiçosa da beleza do dragão, Rahna tentou distrair a fera para poder apunhalá-lo com sua faca e fazer de suas presas um colar e de sua pele um prêmio; Ela os vestiria para que todos a respeitassem como matadora de dragões.

Porém, Ënurfala, percebeu o engodo, e virou-se contra Rahna, perseguindo-a pelas montanhas do sul a fora. Rahna fugiu por longos dias e noites, passou por oceanos e florestas e desertos, com Ënurfala sempre em seu encalço.

Um dia, exausta, parou para descansar às margens de um lago e, ao olhar sua imagem refletida na água, teve uma ideia. Se ela ao menos tivesse outros para defendê-la... Sim! E foi isso que fez: ela criaria guerreiros para protegê-la do dragão. Então, criou os Urgralgra, aqueles com chifres. Eles eram grandes e fortes, guerreiros natos, munidos de grandes cornos retorcidos e imponentes como a própria Rahna. Eles combateram o grande dragão e o espantaram de volta para as montanhas do sul.

Nessa parte, ela olhou-o e disse, com um toque de sermão na voz: ‘E com Rahna, aprendemos que não devemos desejar o que não podemos possuir’

‘E assim, Rahna criou a raça dos Urgals’”

Kogar deixou-se acordar de seu estupor, percebendo que andara com a fila mais da metade do caminho até a tenda das Herndall. Estas eram as anciãs da tribo, um grupo que determinava todos os assuntos pertinentes aos Draugara. Inclusive a vida ou morte de filhotes fracos. Kogar estremeceu ao imaginar-se colocando sua vida em jogo naquela tenda novamente.

Conforme chegava mais perto da entrada, Kogar avistou um par de figuras vigiando a fila. Uma era alta, um tanto magra demais, e sua pele era clara como a barriga de um porco. Do outro lado, estava um anão.

Claro que ele já vira um em outras Seleções. De longe, ele avistara a criatura anormalmente pequena e a observara exclamar ordens para um homem que carregava um pesado baú de madeira. Ele ficara tão impressionado que uma criatura tão pequena pudesse ter tanta influência que ficou invejoso. Seu momento de abismamento acabou quando um dos Urgals candidatos a Cavaleiro zombou de como ele deveria se identificar com o anão. Ele franziu a testa e até considerou responder a provocação, um argumento espinhento se avolumava na língua sobre como os cérebros de ambos deveriam ser do mesmo tamanho, apesar das contrastantes alturas, mas sabia que tudo acabaria em brigas físicas, como era do costume Urgal, então mordeu a ponta da língua entre as presas e saiu andando.

Sacudiu a cabeça; era besteira prender-se a mágoas do passado. Sua mãe havia lhe ensinado isso. O ensinamento pareceu se soprado como uma vela assim que notou quem entrava na tenda naquele segundo. Jungr. Um bolo de raiva e frustração cresceu em seu peito. Era o mesmo Urgal da Seleção anterior. Era o mesmo Urgal que vinha infernizando-o durante toda sua vida. E, principalmente, era o mesmo Urgal do dia anterior...

Ele caíra pela terceira vez. Dessa vez com um golpe em seu esterno de Kragg. Kogar limpou o sangue que lhe escorria pelo nariz e apoiou-se em um braço, ainda no chão poeirento. O suor que escorria por sua testa ardia em seus olhos, o sangue parecia afogá-lo e a dor no peito tornava difícil respirar.

Não que fosse fácil antes do golpe. Na semana anterior ele falhara mais uma vez. Pela segunda vez ele fracassara. A cada segundo de sua existência miserável ele remoía aquele fato irrefutável: ele só tinha mais uma chance. Se falhasse novamente, não havia mais para onde correr; Kogar seria exilado da tribo.

Pior desgraça que essa não há. Pensou no pai, na desaprovação que demonstraria, no desgosto. No irmão, que vergonha sentiria em ser irmão do exilado. Pensou na mãe...

Não. Pelo bem de sua sanidade, não. Kogar não se atreveria a pensar daquele jeito. Seria sua ruína. Se imaginasse o olhar dela ao ver o filho renegado... com todas as forças que lhe restavam, Kogar afastou o pensamento.

Kragg oferecera uma mão para ajudá-lo a se levantar. Ele olhou para o braço estendido do irmão, então para seus olhos. Estavam vazios. Como um poço seco no meio do deserto. Kragg desistira dele. Kogar desviou os olhos e fingiu que a mão não estava lá; pensando bem, nunca estivera.

Com braços trêmulos, colocou-se de pé sobre pernas fracas. Sentia-se pesado, um fardo mole de farinha molhada; pesado e inútil. Foi quando Jungr falou:

- É um começo, ele aguentou um minuto inteiro – sua fala foi seguida por uma onda de risadas dos expectadores – Pena, não? Ele está aqui, lutando contra o inevitável quando poderia muito bem ser mais útil na barriga de um urso – mais risos seguiram a piada. Kogar mal tinha força de vontade para virar-se e olhar os agressores. Ele mal tinha forças para bolar uma resposta.

- Sabe, acho que ele não vai mais para a floresta mesmo. Com esses chifres, não duraria mais de alguns minutos por conta própria – Jungr dizia entre roncos de humor – Ele mal consegue se manter de pé!

Kragg parecia chamá-lo, mas sua voz grave e gutural parecia distante. Tudo o que ouvia era o som abafado e ainda sim claro das vozes dos outros jovens. Então ele ouviu:

- Talvez se sua mãezinha ainda estivesse aqui ela pudesse te ensinar a bordar, então finalmente você seria útil para a tribo.

Tudo pareceu convergir para um único ponto entre os chifres do Urgal, como a ponta de uma lança que lentamente afundava em seu crânio. De repente, snap! Tudo estalou, e Kogar correu. Correu não rápido, mas com uma força de vontade que desconhecia possuir. Fogo líquido corria por suas veias, concedendo-lhe uma velocidade que não era sua. Ele não estava fugindo, estava deixando-se ser seguido. Ele passou pelo círculo externo de tendas da aldeia, então pela linha fina de árvores que margeavam o assentamento Urgal. Não se atreveu a olhar para trás enquanto não atingiu a orla da floresta, quando derrapou e parou a poucos metros de uma árvore.

Confirmou que era seguido ao ouvir o trovejar de passos às suas costas. Sem se virar para fazer contato visual, ele elevou a voz, incerto a como ela soava para os ouvintes:

- Queriam que eu me provasse, certo? Certo, Jungr? Então que seja.

Ouviu passos se afastando do grupo atrás de si, mas não ousou virar para verificar. Se fraquejasse agora, seria seu fim. Por isso, caminhou em passo firme até a borda da floresta. Lá, respirou fundo. Tinha passado por uns maus bocados naquele lugar, e não estava ansioso por entrar na mata de novo. Mas o que podia fazer? Era sua última chance...,

Ele entrou na floresta. Andou. O verbo andar era o único presente em sua mente. Nada mais importava. Não o hematoma a se formar em seu esterno, seu nariz sangrando ou o fato que estava desrespeitando as regras mais fundamentais do ritual que tentava realizar ali. Sua partida da aldeia precisava ser assistida por todas as fêmeas Herndall da tribo em questão. Elas dariam sua bênção - ou não - e a permissão para continuar sua busca por respeito entre os Draugara.

A tarefa era simples: entre na floresta. Mate um animal com as próprias mãos. Volte para casa vivo. E com a prova do sucesso. Simples, não fácil. Kogar mal conseguia segurar seu campo contra o irmão num abriga, quanto mais matar um animal selvagem. Critérios: maior que um gamo; quanto maior, melhor.

Assim que o barulho que o alvoroço que se formara na borda da floresta perdeu a força, Kogar percebeu que entrar naquela floresta fora uma /péssima/ ideia. Seu coração acelerou o ritmo frenético que já seguia desde duas semanas atrás. Ele andou mais, e quanto mais andava pior a situação parecia. Para onde quer que olhasse, só enxergava os mesmos padrões nauseantemente iguais de verde e marrom. A temperatura pareceu cair vários graus enquanto caminhava. Apesar disso, suor inundou suas palmas e testa. Suas pernas pareciam feixes de madeira verde.

O mantra que repetia a si mesmo era: não olhe para trás. Nunca. Nem pense nisso. Se pensar, vai falhar. Novamente. Só continue a andar.

E foi o que Kogar fez. Ele andou até que só se visse fracos feixes de luz do dia através as árvores. A essa altura, finalmente conseguiu encontrar algo que se destacasse do resto: uma clareira se esticava por alguns metros medíocres de alívio visual, tão necessário para a vista exausta de Kogar. Só quando se sentou embaixo de uma árvore e recostou-se para descansar, percebeu o quão cansado estava.

Mentalmente, fez os cálculos: três horas. Hà três horas eu selei meu destino. Ele não queria saber o que estaria acontecendo na aldeia àquela hora. Só queria encontrar logo um animal grande o suficiente para chamar de presa.

Um rosnado assombrosamente selvagem despertou-o de seu estupor. Olhou em volta. Um par de enormes olhos amarelos encarava-o nas sombras longas do crepúsculo azul-escuro. Os olhos amarelos, apesar de tão aterrorizante quanto, não eram de seu pai. E o rosnado, apesar de tão sinistro quanto de seu irmão, não era de Kragg.

Antes que pudesse registrar a figura cinzenta prestes a dar o bote, o lobo atacou. Kogar mal conseguiu pular para o lado quando a enorme fera pulou para onde estava. Na fraca luz que o sol ainda dava Kogar não enxergava direito, o que era uma de suas desvantagens, mas a maior delas era o tamanho. Não o dele, mas o do lobo. A cernelha da fera facilmente atingia seus ombros, seus dentes pareciam facas de caça amarelas e afiadas e suas patas eram do tamanho de uma panela. O pior, parecia não comer há dias.

Kogar correu. De novo, o lobo atacou. Obstinado em capturar a presa, ele lançou-se contra Kogar e tentou abocanhá-lo. Dessa vez, ele conseguiu rasgar um grande talho na perna de Kogar com os dentes. Doeu como ferro na carne, mas Kogar não parou de correr. Ele contornou a clareira, tentando ganhar tempo para pensar numa estratégia, mas o lobo investiu de novo. Ele pulou em cima do Urgal, que caíra ao escapar, e o teria matado se este não houvesse puxado uma tora ressequida e atirado na boca do bicho. Isso não pareceu atrasar muito o lobo, que somente sacudiu a cabeça, e sim o enfureceu ainda mais.

É o fim, pensou. É assim que acaba: eu, na barriga de um lobo. Mais útil do que vivo. O lobo saltou...

E não aterrissou. Um braço forte agarrou-o por trás e o restringiu. O lobo ganiu em surpresa. O braço apertou seu pescoço e o jogou para o lado, finalmente revelando a enorme figura que o salvara. Um enorme Kull com chifres imponentes e porte feroz lançou-se atrás do lobo. Este estava em posição de ataque. Um animal atacou o outro.

Garras e presas e chifres lutaram por suas vidas, até que o lobo foi comprimido em um abraço mortal. De onde estava Kogar pôde ouvir os ossos estalando sob os músculos do Kull. O lobo estrebuchou, e então amoleceu nas mãos do Urgal.

Ele largou a carcaça inerte no chão e olhou para Kogar. Os olhos amarelos de Krongru, o temível, encontraram os seus. Pai olhou para filho com uma desaprovação que não parecia cabível a um único olhar.

Ele sabia o que aquele olhar significava.

Kogar perdera sua chance.

***

E era por isso que ele estava ali. Era sua única saída: ou ele era escolhido e ia para o Leste ou era exilado. Nenhuma das opções parecia-lhe muito agradável, mas, a essa altura, Kogar estava considerando se dormiria em seu catre simples na cabana de sua família ou se seria sobre o chão duro da floresta.

Jungr saiu da tenda. Ele não abandonou a postura de superioridade que seus chifres e status lhe permitiam ter, mas seu queixo grosseiro não estava levantado como de costume, nem seus ombros tão aprumados. Kogar pelo menos entendia isso. Ter uma carga ra uma das piores coisas que poderia se ter na vida. Ele carregava a responsabilidade toda uma tribo nas costas; era esperado que ele fosse o melhor. Com o canto do olho, Jungr capturou o olhar de Kogar. Ele manteve o olhar do maior por um segundo, o suficiente para que captasse um reflexo de entendimento neles, antes que ele largasse o contato e saísse andando.

Foi quando chegou sua vez.

- Ei, você - uma voz questionou. Kogar levou dois segundos para registrar que a voz vinha de baixo. O anão disse: - Vai entrar ou não?

De alguma forma, a frase soou muito mais profunda do que era para ser. Vai tentar essa última chance de escapar? Vai aceitar seu destino? Vai mudar sua vida voluntariamente ou aceitar seu fardo de exilado e vagar pela Espinha sem rumo até o fim de seus dias?

- Sim - respondeu - Eu vou.

Kogar entrou na tenda.

***

A primeira impressão, como quando se acaba de nascer, foi o cheiro. Fumaça para todos os lados ardiam nos olhos e nariz de Kogar. A tenda cheirava a ervas e coiro em diversos estados de cura.

Logo depois viria o som, porém o lugar estava quieto como a floresta durante a tarde.

Na falta deste, veio a cor: era de um marrom acinzentado maciço, quase opressor, que parecia sugar qualquer outra cor alegre do ambiente.

Não, não toda cor. No centro do cômodo havia dois pedestais com almofadas em veludo vermelho, sobre as quais repousavam dois ovos polidos e ovais. Ambos eram azuis, com a mínima diferença de tons de verde em um e branco em outro. Kogar só então notou a dúzia de fêmeas em volta da tenda, em um semicírculo ao redor dos ovos. Ele levantou o pescoço para elas, que abaixaram os chifres em alerta: se fizer besteira, não vai acabar bem para você.

Certo, pensou. Vamos ver o que o destino me reserva.

Kogar lembrou-se da primeira vez que fora mandado à floresta. Entrara na mata, estático de medo, mal pondo um pé na frente do outro. Ele voltou dois dias depois, coberto de cortes, manchado de lama e sangue, completamente exausto e quase catatônico de pânico.

Agora esse mesmo pênico ameaçava tomar conta de sua mente. Simplesmente não suportaria sustentar o desgosto do pai se fosse exilado. E quanto à própria sobrevivência? Mal conseguia passar algumas horas na floresta sem virar almoço de lobo...

Nada disso o ajudaria, contudo. Limpou a mente desses pensamentos e concentrou-se no ovo mais próximo a ele, o verde-água.

Ao tocar a casca, imaginou que seria fria como a água de um riacho, por isso quase recolheu a mão ao encontrar calor, forte e firme sob sua palma. Esperou por um momento. Tentou sentir algo especial, como um calor do ovo para ele, um calafrio ou até mesmo uma mensagem: parabéns, você é o mais novo Cavaleiro da Alagaësia!

Apesar disso, nada lhe veio, e Kogar tirou a mão. Ele chegou perto do outro ovo, e captou um vulto com o canto dos olhos. Ocorreu-lhe que faltavam dois Embaixadores de fora da tenda, mas não se incomodou em ponderar sobre isso. Mas algo estava errado, ele podia sentir no ar. Algo extremamente ruim estava prestes a acontecer. E não parecia ser da preocupação das Herndall.

Se não era delas, não era seu também. Voltou-se para o último ovo e tocou-o. Kogar esperou, e a cada segundo, seu coração se apertava mais. Ele não conseguira. Não era o novo Cavaleiro.

***

O mundo de Kogar parecia ter caído. Ele era, não oficialmente, um exilado. Ele recuou do pedestal, perfurado pelos olhares de fogo das fêmeas. Seu peito doía, e não por hematomas de seus treinos.

A fêmea que estava no meio do círculo encarou-o. Ela apontou para o lado da tenda, onde uma dobra de tecido grosso escondia uma saída para a aldeia. Kogar levantou o pescoço e saiu o mais rápido possível.

Sua visão pareceu nublada, suas mãos frias e suas pernas moles. Quando passou pelo tecido da tenda, em vez de encontrar ar puro, que seus pulmões claustrofóbicos tanto precisavam, encontrou uma outra seção da tenda, menor e mais abafada, se bem que sem tanta fumaça. Num canto, estavam um elfo, um Urgal e um ovo de dragão. O elfo estava ajoelhado perto de um banco de madeira que segurava o ovo. O Urgal estava mais afastado, nas sombras da tenda, e Kogar surpreendeu-se ao constatar que era menor que os outros de sua aldeia, quase de seu próprio porte. Assim que pisou no recinto, o elfo virou-se e encarou Kogar. Levantando-se, ele revelou o ovo branco que repousava no banco acolchoado. Era branco como imaginara ser Ënurfala, mas parecia infinitamente mais frágil. Apesar da cor, era meio transparente, como se a casca fosse fina demais. Veias rosadas corriam sob a superfície.

- Você é o filho de Krongru?

O elfo tinha a expressão séria e dura, como se fosse uma fria estátua de mármore.

- Sim, e-eu o sou – conseguiu gaguejar. O elfo olhou de soslaio para o Urgal, e este assentiu.

- Disseram-me que você precisava de uma segunda chance – ele disse – Um jeito de te ajudar a não ser exilado – Kogar assentiu, surpreso de terem contado isso a um Embaixador. O elfo acenou com a cabeça – Pois então são dois.

Ele fez um gesto para o ovo.

- Ele está doente, mal consegue aguentar a Seleção. Precisa da força de um Cavaleio para que possa sobreviver. Mas não consegue mais estender sua mente para tocar a de um candidato – Kogar pensou ver os olhos do elfo brilharem – Só conseguiá fazê-lo mais uma vez.

Ele entendeu. O filhote precisava de um a chance tanto quanto ele, mas no caso dele, era questão de vida ou morte.

No segundo seguinte, Kogar estava ajoelhado na frente do pedestal. Ergueu a mão para o ovo.

Um pensamento absurdo lhe ocorreu.

Kogar acreditava em deuses. Ora, tinha de acreditar! Em que mais podia ele crer senão em seres que podiam com um aceno de mão fazer com que todos os problemas do mundo desaparecessem? Era o simples fato de que eles podiam e ele não. Ele estava preso àquela terra, àquela vida. Por isso rezava para que fosse escolhido. Pelo menos essa bênção – a única – poderia ser-lhe concedida.

Seus dedos tocaram o ovo.

Poderia ser somente sua imaginação, e provavelmente era, contudo era tudo no que poderia se agarrar. Os deuses sabiam o quanto precisava de uma bênção.

Mas ele pensou que ouviu, e queria com todas as forças que fosse verdade.

Sob o efeito dos incensos ele sentia-se tonto, leve, imaterial. Ele não sabia dizer ao certo, mas pensou ouvir uma voz, como um sussurro que o vento levou.

...Rahna o abençoa...

O calor da casca, ainda que fraco, aumentou contra sua palma.

Por um momento, ele deixou-se ter esperança.

Mas então o calor enfraqueceu, como se não tocassem mais um ovo, e sim uma pedra das margens do lago Woadark. O coração de Kogar acelerou. Ele estava morrendo! Ele olhou em desespero para o elfo ao lado dele, mas tudo que ele esboçou foi uma expressão pesarosa e uma tristeza indescritível no olhar.

Em desespero, pegou o ovo no colo e envolveu-o com os braços, tentando passar qualquer calor dele para o dragão.

- Não! Não depois de tudo o que você passou! – ele dizia – Você consegue! Não morre; só precisa de um pouco mais de tempo... – o ovo parecia somente ficar mais frio a cada instante, e Kogar podia quase sentir a vida escapando da casca.

Ele teve vontade de fugir. Somente virar as costas para o problema e se esconder. Ele era pequeno, caberia em qualquer lugar. Mas algo o manteve preso ao chão, com o ovo ainda em suas mãos, que pela primeira vez lhe pareceram grandes. Sentiu a visão falhar, então um formigamento na face esquerda. Uma lágrima caiu na casca branca. Só então percebeu que chorava.

Ele estrou num transe de letargia e luto, do qual só lembrava-se de se mover para que o elfo retirasse o ovo inerte de suas mãos e apoiar a cabeça no pequeno banco. A fumaça e os tons de marrom e cinza da tenda deixavam o humor ainda mais negro.

O empo passava, e a esperança acabava. E Kogar não mais pensava no próprio destino.

Kogar ouvira falar que a esperança é a última que morre, e daquela vez realmente acreditara que, de fato, a sua morrera. Porém, as bênçãos de Rahna não são facilmente esquecidas.

Toc!

Foi um som alto e claro, como o soar de um sino. Kogar mal pôde reconhecer a origem do ruído de primeira, mas encarou incrédulo a superfície do ovo enquanto esta se dividia em inúmeros fragmentos. De repente, tudo parou, e Toc! Estilhaços do ovo espalharam-se sobre o veludo vermelho, assim como o líquido dentro deste. Tinha uma cor vermelha como sangue, misturado com a membrana que envolvia o filhote. Este parecia inerte no meio da bagunça, de costas para ele, mas Kogar percebeu que pequenos espasmos o sacudiam de vez em quando.

Estendendo uma mão trêmula, ele tentou ajudar o filhote, mas o elfo a deteve. Ele estendeu a própria mão e pegou um pedaço de casca, com o qual empurrou as costas do pequeno. O filhote espasmou e produziu um som como o de engasgamento, logo depois arfou. Ele se remexeu, então se virou para Kogar com enormes olhos vermelhos.

O dragão fazia um barulho com a garganta toda vez que respirava, estava fraco, com certeza, mas mesmo assim ele arrastou-se para perto de Kogar e estendeu o pescoço. O elfo soltou a mão dele. Ele levou a palma para tocar o filhote, e uma onda de choque correu por seu braço, até chegar a seu peito e perfurar seu cérebro.

Sua visão falhou. Os membros ficaram pesados e a mente lenta.

Quando, depois do que lhe pareceu uma eternidade, finalmente conseguiu abrir os olhos, um pequeno peso descansava sobre seu peito. Tentou sentar-se, mas mal conseguia mover os braços. As pálpebras estavam secas e a boca com um gosto metálico. Mãos o amparam por trás e Kogar conseguiu ficar sentado. O pequeno peso deslocou-se para suas pernas. Lá, o pequeno ser começou a ronronar. Olhou para baixo e encontrou olhos vermelhos mirando-o com intensidade. O zunido aumentou.

Algo em sua palma ardia. Ao verificar, encontrou uma marca prateada em sua mão esquerda. O dragão tocou com o focinho a mão de Kogar e rosnou para ele. Alívio fluiu por suas veias. Ele se salvara, e salvara o dragão. De alguma forma, isso lhe pareceu mais importante do que salvar a si mesmo.


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Notas finais do capítulo

Entãaao... surpresos com minha escolha? Se sim, eu também. Comecei a escrever um cap sobre um elfo, mas simplesmente não saía. Nada mesmo. Então eu tentei uma abordagem bem contrária, e quando comecei não consegui mais parar. Apesar do trabalho, foi muito bom escrever esse cap. E espero que tenham gostado também!

Gostaram? Digam-me aqui em baixo e eu farei meu melhor para melhorar a fic!

Obrigada por ler,

— T. I. Wright