A vendedora de guarda-chuvas e o filho do coveiro escrita por tamirsalem


Capítulo 9
Capítulo 8 -E no oitavo dia, fizeram-se os dilemas




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Como rubis, safiras e esmeraldas etéreos e maravilhosos, apaziguadores e ao mesmo tempo tão conflitantes, fomentadores de tão dilaceradora cobiça e ganância inconcebível, brilham os magníficos vitrais de várias catedrais medievais, fascinantes e incríveis. Tal era o brilho selvagem porém galante que se apresentava nos olhos de Hannah e, de forma muito mais discreta e suave, também nos de Isaac; de uma forma abrasadora, envolveu Hannah uma chama  fulgurante, que pareceu-lhe transbordar a sua mente, apagando todas as sensações prévias, delineando seu corpo novamente, reforçando-lhe as curvas; o sentimento de poder cru e lascivo entranhou-se no recôndito de sua complexa consciência, e com o incomensurável poder percebeu finalmente  as mudanças que a lenta passagem do tempo havia sulcado em seu corpo e em sua mente. Era não mais uma menina inocente; na realidade, nunca o fora; a solitária orfandade não lhe concedera tal privilégio tão sonhado, sendo alguém no corpo de uma menina, mas incapaz de agir correspondentemente, sempre carregando o fardo eterno da maturidade precoce, combinado com o miserável estorvo da infantilidade, combinação essa estranhíssima e bastante problemática. E agora, percebera finalmente, havia sido gradualmente despida de seu corpo antigo e amadurecido tanto mental quanto fisicamente; devido a sua extensa leitura, desenvolvera seu estilo único de pensar e definira-se quanto ao que esperava da vida humilde que levava, conseqüentemente livrando-se das angústias existenciais que acometem todos em algum fatídico momento de suas vidas, seja durante a breve velhice ou até durante a enérgica adolescência. Com um ritmo lento, emancipara-se psicologicamente, vivendo constantemente, como Isaac, em seu introspectivo mundo, tão isolada dos outros por barreiras incorpóreas, barreiras de pensamentos rapidíssimos e reflexões sensatas porém concisas, permanecendo isolada e, de certa forma, indiferente aos acontecimentos do mundo que lhe cercava até durante as horas em que trabalhava para ganhar um mísero dinheiro, talvez até mais isolada do que nunca durante estes momentos, tomando conclusões  sobre os passantes, que poderia um dizer, de fora, demasiado precipitadas, porém certíssimas e espantosas quando analisadas com mais cuidado.

Porém, finalmente, encontrara alguém que, inopinadamente, rompera com facilidade tais barreiras, da forma mais despropositada e pitoresca possível; com sua simples presença melancólica, atraiu-a, e, com um mero olhar de esguelha despropositado, conquistara-a por completo; de alguma forma inexplicável, ao maximizar a barreira que ela mesma erigia constantemente ao seu redor, naquele sóbrio momento de pesar, Isaac forçara-a a interagir com ele, ao reproduzir seu estranho comportamento e lançara-lhe um desafio tentador e irresistível: vencer sua postura austera e sua distância inexorável. Antes de sentar-se, perscrutou Isaac por um momento, sem que percebesse; observou a silenciosa figura por longos instantes ocos e, por um belo instante memorável, largou mão de todas as suas reflexões momentâneas e simplesmente admirou Isaac, sua bela figura, em todo o seu esplendor, o filho do coveiro de quem já ouvira falar e cujo excêntrico trabalho lhe criava uma certa vontade de algum dia conhecê-lo; fora a primeira vez que realmente se interessara por alguém somente com um olhar, apesar de serem infrutíferos seus esforços para tentar decifrá-lo tão rapidamente, de tão imperscrutável que era seu rosto viril.

De forma talvez inconsciente, era exatamente isto que Isaac desejava; havia trazido seu luto silencioso para a praça propositalmente, ao invés de se trancafiar em casa e sofrer sozinho e, naturalmente, esperava algo deste gesto aparentemente involuntário. Sim; havia ido até lá com um único propósito absurdo e egocêntrico: receber a ambrosiáca pena dos outros e o inesgotável carinho dado aos que acabaram de sofrer tão grande perda; ele, que sempre fora bastante auto-suficiente, porém não despido de sentimentos, simplesmente bastante apático devido ao invisível e inominável trauma que havia sofrido com a partida de sua mãe e a falha relação que tinha com o pai, muda e incompreensível, pontuada por longos momentos de silêncio e incompreensão mútua, somente se aproximando quando havia trabalho a ser feito e o contato era necessário e inevitável; justo ele, pois, sentia que neste momento, precisava urgentemente de carinho e amor, uma compreensão que não lhe havia sido dada antes. Ruía gradualmente o pilar de apatia que o havia sustido a vida toda e, sem o insensível pai que havia amparado a louca tentativa de ambos de viverem sem razão e motivo e, após o fracasso emocional do pai de manter seu esdrúxulo casamento vivo, não se envolverem mais emocionalmente com ninguém, nem em uma mera relação entre pai e filho, sustida por amor incondicional. Era tal acordo mórbido que haviam ambos selado sem palavras: o pai, martirizar-se-ia e Isaac tomaria, num gesto altruísta, a dor do pai e martirizar-se ia também, sendo esse pacto o substituto do amor familiar que deveriam sentir, então.

E agora, com a morte de Jacó, era não mais preciso que seguisse qualquer determinação daquele contrato, tão inebriante como aquele que havia selado Fausto; assim sendo, apressava-se loucamente para que pudesse experimentar o calor humano finalmente, sentir o que era, realmente, a convivência com alguém e o compartilhamento mútuo de sentimentos e idéias com alguém que não ele mesmo. Animava-lhe imensamente a idéia de poder, junto a quem quer que fosse, ler um de seus livros ou até mesmo ponderar sobre eles em um saudável debate, mesmo nos instantes terríveis subseqüentes a indelével descoberta.

Na realidade, com a tempestade veio, secretamente, a bonança inegável; na manhã casual, foram-se as amarras e zarpou o Pequod de Isaac. Com a inesperada morte de Jacó, o déspota indolente, Isaac viu-se subitamente livre de um fardo que fora sempre encarregado de levar, livre como uma borboleta ao vento primaveril. Os grilhões que o prendiam haviam derretido e podia ele ser... feliz.

No breve instante antes de começar a chorar e lamentar a morte de seu próprio pai, algo estranho se passou:

Isaac sorriu, satisfeito.

Não lhe fora necessário mexer sequer um músculo e estava realizada a sua horrível vingança insolente.

Sim, Isaac sorriu; e pela primeira vez em alguns anos, fora verdadeiramente feliz o contraditório rapaz.

*Johnosimbolodeseparaçãohoho*

Enfronhados em múltiplas camadas de piedade e carinho, abraçaram-se os dois amantes hipócritas. Um sentimento oco e estranho tomara conta de Isaac; sentia-se perdido e vazio no momento em que saíram, quase que correndo, do hospital e por longos instantes inexistentes, seus pés afundando na neve aparentemente incorpórea, nada sentiu ou disse. De súbito, tremendo, atirou-se nos braços de Hannah e começou a balbuciar palavras débeis e incompreensíveis, de trechos de rezas até extensos pedidos de desculpa direcionados a um ser invisível.

“Não sentir culpa é normal.” Disse-lhe Hannah, incondicionalmente serena.

Os olhos de Isaac encontraram os seus e pode ela perceber que ele tentava, infrutiferamente, decifrar seus pensamentos do mesmo modo que fazia ela; sentiu-se tocada pela candura espectral e contraditória do assassino e notou a cor de seu rosto habitualmente pálido, que agora estava, literalmente, alvo como a neve e espantou-se: Isaac estava a ponto de desmaiar de tão faminto e exausto que estava.

Enfraquecido, tentava comunicar-se Isaac, enquanto que Hannah, solenemente ignorando o que quer que tivesse ele a dizer sobre o recente episódio, arrastava-o pelo braço, o mais rápido que podia levando-se em conta a relação de tamanho e peso entre eles, até a mercearia, onde poderia dar a Isaac um mísero pão para que mantivesse-se até que pudessem apreciar uma refeição mais completa.

Com pressa inédita, comprou-lhe um pão com o dinheiro que guardava para o inverno, época de vendas e performances esparsas, e partiu-o desajeitadamente, imediatamente dando o pedaço a Isaac, quase que forçando-o goela abaixo.

Sim, a mesma Hannah que conservara-se galante porém carinhosa também sabia demonstrar-se extremamente preocupada e não somente amável; sabia perfeitamente reconhecer a situação que ali se dava e tomava somente para si a culpa da fadiga de Isaac.

Sob os olhos consternados do vagabundo, saciaram sua fome da melhor maneira que puderam os dois fugitivos; fugiam da própria sombra os tolos, e utilizar-se-iam de inúmeros subterfúgios para que não fossem encontrados e não sofressem a óbvia retaliação subseqüente a cura que haviam proporcionado ao tísico.

A condição deplorável de Isaac gerara em Hannah um nervosismo tal que ela passara a acreditar piamente que, apesar de se consistir em um ato divino o que haviam feito, era perfeitamente natural se esperar uma retribuição imediata, como um acerto de contas universal; supostamente, dar-se-iam conta da morte suspeita do tísico e logo fariam a conexão entre  a seringa abandonada e os dois jovens que lá haviam estado, e, como era de se esperar atribuir-lhes-iam a culpa. Irracional era tal temor, pois como aquele tísico haviam muitos, e para tal hospital, a morte deste ou daquele paciente em nada afetar-lhes-ia; na verdade, era muito provável que eles não somente não lhe dessem pela falta, como também ficassem felizes em terem menos um paciente, um paciente e não uma pessoa, pois para eles os pacientes eram vistos como seres repugnantes, despido de sua humanidade habitual. Em uma forma distorcida era, obviamente, um pensamento narcisista aquele que passava pela cabeça de Hannah naquele momento: achava que logo os perseguiriam inexoravelmente e tornar-se-iam lendas; milhares de histórias entremear-se-iam com os fatos e suas próprias presenças seriam algo extraordinário e assustador; boatos de suas localizações correriam pelas bocas de todos assim como supostos encontros e ameaças com os próprios; a estranha profissão de Isaac seria tomada como base desta nova seita e acreditar-se-ia rapidamente que tinha ele conexões com o próprio Mefistófeles e, mesmo após as suas mortes, continuariam vivos no imaginário popular por anos a fio, tornando-se parte permanente do rico folclore europeu.

Hans observava-lhes, curioso, porém também preocupado com Isaac e sua desconhecida companheira; assistia com que avidez comiam o pão e notou o nervosismo que transparecia por de trás dos rostos de ambos, porém absteve-se de fazer qualquer comentário ou pergunta a eles. Algo estava notadamente errado; jamais havia visto Isaac junto a ninguém que não fosse o pai e subitamente adentra ele, pálido, junto a uma bela menina? Decidiu Hans, com a preguiça casual, não se intrometer no assunto; se o coveiro decidira repentinamente buscar um relacionamento, era melhor deixar que o fizesse, afinal, nada daquilo lhe dizia respeito e a única forma como poderia afetar-lhe era se parasse de vir comprar seu chocolate lá; de nada adiantaria buscar uma explicação, qualquer que fosse.

Trataram de irem o mais rápido possível para a casa de Isaac, onde complementariam sua rudimentar refeição com o que pudessem.

“Por que?” perguntou Isaac finalmente, seguindo-a enquanto ela preparava a pequena porção de comida restante do dia anterior, conservada no sal.

“Se se refere à culpa, é fácil de entender: não há razão para culpa se acredita que o que fez é certo.” Respondeu-lhe docemente, enquanto preparava uma sopa improvisada.

Realmente, era exatamente isto que acontecia com Isaac; encontrava-se ele preso em um complexo dilema, onde sentir culpa era sua obrigação impreterível para com todos, mesmo sendo ele como um soldado que não sente culpa ao matar um soldado inimigo, sendo ele uma mera engrenagem na complexa máquina inútil da sociedade; havia feito o certo a seu ver e, mesmo assim, preocupava-se desnecessariamente com o fato de não sentir culpa alguma. Importava-se em demasia com o que havia de cumprir com a sociedade e, quanta ironia, culpava-se por não se sentir culpado! Como um ignorante que chora ao ouvir sobre desastres que nada lhe dizem respeito porém nada faz a respeito além de dramatizar o momento com uma máscara  ilusória de dor e sofrimento torturante, Isaac descabelava-se, afugentado pela ideia que lhe haviam imposto de que seria então ele um assassino, frio e sanguinário, cujos próprios crimes não lhe inspiravam o menor terror. Tinha ele, apesar da inglória profissão, uma estranha necessidade de se enquadrar nos padrões de normalidade e apenas por sua sobriedade e sua idade não sofria, ao menos não tanto, o preconceito por conviver constantemente com a morte desde a mais tenra idade, por ter de enterrar os mortos, sujando suas mãos com a terra e com a odiosa e perigosa essência invisível da morte.
“Eu.. Eu matei, Hannah! E, mesmo assim... Mesmo assim, eu... Não sinto culpa.” Respondeu-lhe Isaac, seus nervos a flor da pele.

“Não houve morte em momento algum, Isaac; só renascimento. Isaías- digo, o tísico, morria lentamente e estava à beira da insanidade. Mas foi-se feliz e permanecerá feliz em sua próxima encarnação. Fizemos algo bom.”

Angustiado, Isaac mal notara a menção do nome do tísico, que, supostamente era desconhecido por ambos; perplexo com a compostura de Hannah, olhou a longamente.

“Senti-me bem; não culpado.” Afirmou, convicto, fazendo com que Hannah interrompesse a bela melodia indecifrável que cantarolava.

“Eu sei; não esperava nada diferente. Cresceu tendo de se adequar; é somente natural que buscasse sentir culpa como todos os outros. Como uma doença.”

“E tem cura?”

“Claro!”

“E qual seria?”

“Eu mesma.”

“Pessoas não podem ser a cura para nada, Hannah.”

“Então o que fomos para o tísico? Seguindo esta lógica, estou curando-te.” concluiu, segurando-lhe a mão despropositadamente.

“Mas para que curar-me?” ele perguntou, ansioso para que pudesse extrair dela uma declaração amorosa.
“É, sem duvida, uma boa pergunta.”

“E...?”

“Estava se estragando; és interessante e seria prejudicial a todos se se transformasse em alguém comum. Quanto as minhas razões... se eu lhe contar, estraga.”

Tomado pela óbvia e satisfatória conclusão, abraçou-lhe fortemente, controlando-se para não beijar aqueles belos lábios escarlates.

“Fique, por favor.” Sussurrou.

“Eu não moro aqui, então? É assim que me retribui?” respondeu-lhe Hannah, beijando cordialmente seu rosto.

“Somos... Somos, sabe, amigos,não?” perguntou-lhe, infantil, o coveiro, a sua primeira e única amiga.

“Claro que não! Somos um pouco mais próximos que isso.” respondeu-lhe, tão afável e contente consigo mesma!

E naquele momento, fizera feliz Isaac; e haviam os dois inconscientemente concordado em tentarem-se um pouco mais com aquela amizade incerta e indefinida.


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