Mitogênese escrita por Braga Primeiro


Capítulo 2
Capítulo II




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É estranha a relação que tenho com o corpo de Zheng; é como se eu o controlasse em terceira pessoa ao mesmo tempo em que vejo através de seus olhos e sinto através de seus sentidos. Noto até as tentativas do cérebro não desenvolvido de montar ideias enquanto eu continuo pensando como antes. Percebo também que, à medida que as semanas passam, minha percepção e meus sentidos vão se misturando lentamente aos de meu novo corpo, por isso deduzo que quanto mais desenvolvido Zheng se torna, mais propício para me abrigar completamente ele fica. Nesse ritmo, quando a maioridade deste corpo chegar, provavelmente não existirá mais limites entre eu e o corpo; eu serei Zheng.

Não consigo me afastar da carne, mas pelo menos ainda consigo conversar com Zhong nesta situação, e peço a ele todos os dias para que vá consultar alguém sobre minha situação. Uns quatro outros deuses foram convidados para vir aqui e me ver com os próprios olhos, mas nenhum tinha uma explicação ao final da visita.

Não parece que ninguém destas bandas tem qualquer informação útil, por isso vou esperar até que esse corpo possa se mover e então irei eu mesmo procurar uma resposta.

Provavelmente por causa de minha intervenção divina, Zheng nunca tem problemas de saúde e cresce bem rápido. Agora que já é criança, apenas interfiro em suas ações, pois se ele fosse eu por completo, suspeitariam que ele está possuído ou qualquer coisa do gênero, afinal, os mais novos não se portam como adultos. Mesmo assim, ele não deixa de ser eu, e eu não deixo de ser ele. Somos uma criança bastante educada, comportada e esperta.

Gosto bastante de meus pais, mesmo que sua maneira de me criar seja diferente de onde me cultuam. Agora com uns onze anos, começo a ajudar meu pai e servos nos campos de arroz, o qual sempre fica orgulhoso no final do dia ao ver que seu filho conseguiu colher ou preparar mais terreno do que qualquer outra pessoa. Há um templo próximo daqui aonde vou durante todas minhas folgas e durante boa parte do inverno para estudar as letras deste povo. Foi lá que descobri que este país, a China, está em processo de revolução e que por isso muitos templos estavam com medo do que aconteceria com eles, agora que a religião não seria bem vista. Onde nasci, a religião quase foi abolida pelo governo revolucionário, e parecia que os chineses temiam que o mesmo acontecesse com eles.

Acabo de completar catorze anos, e ficou ainda menos distinto onde eu termino e onde Zheng começa. Logo não nos chamarei mais de “nós”, mas de eu. Não me esqueci ainda de meu objetivo de procurar explicações, mas não posso abandonar minha família. Não tenho pressa também, pois acho que este corpo viverá mais do que qualquer humano, uma vez que é habitado por um deus ao invés de uma alma.

Ao final de um dia de trabalho, estou voltando para casa quando percebo uma movimentação estranha e depois gritos que me fazem correr para ver o que se passa.

- Mas esta fazenda é de nossa família há gerações! – gritou meu pai.

- Senhor, para criarmos uma nova China, uma China onde ninguém passa fome, devemos distribuir a terra para todos! Olhando para vocês, dá para ver que mesmo durante a tirania dos governos anteriores vocês não passaram fome.

- Claro! Porque trabalhamos duro todos os dias!

- Não. – interveio outro militar – É porque vocês têm todas essas terras de algum lorde que há muito morreu só para vocês. Nasci numa vila perto daqui e conheço as histórias locais.

- Pai, o que está acontecendo? – finalmente intervi.

- Esses homens querem tomar quase toda a nossa terra! Esta terra que protegemos e cuidamos há gerações com suor!

- Vocês não podem fazer isso, senhores! – deixei-me levar pelos instintos juvenis.

- Nós temos ordens. – o que parecia ser o líder continuou – Todos aqueles que resistirem deverão ser mortos. Esta é sua última chance de entregar as terras pacificamente. – disse friamente.

- Nunca!

Meu pai foi um tolo. Ele estivera todo aquele tempo segurando uma lança antiga que mantínhamos em casa. Quando disparou aquela última palavra, ele avançou sobre os invasores. Lanças, porém, não podem vencer armas de fogo, e em poucos segundos o chão ficou encharcado de sangue que jorra de vários pontos de meu pai.

Mais uma vez meu sangue ferve; dessa vez não é apenas por exaltação. Eu sinto ódio, ódio que não fui programado para ter. Sinto o sangue humano sobrepujando o deus sem causa que eu era. Então escuto a primeira prece que fizeram, pedindo algo a mim:

- Eu só queria poder vingar a morte de meu pai. – desejei a mim mesmo.

- Meu poder é seu, pode usá-lo – respondi a mim mesmo.

Meu cabelo se tornou loiro e meus olhos azuis, como em meu corpo antigo; estico o braço para pegar algo e quando percebo já estou com minha alabarda das lendas para mim criadas, a Justa, em minha mão. Com uma fúria que apenas humanos conseguem ter, avanço sobre os homens que tentam me impedir, mesmo surpreendidos, com balas, mas estas apenas batem inofensivamente em minha pele que reluz dourada a cada impacto.

Girei a alabarda para cortar a garganta de um. Estoquei para perfurar o coração de outro. Destripei mais três com cortes na barriga e ao final de dois minutos de carnificina, eu apenas esperava o líder deles morrer enquanto dilacerava seus órgãos com a lâmina.

- Não tinham me contado que isso poderia acontecer... – foram suas última palavras.

De dentro de casa ouço mais um grito e corro novamente; agora com a aparência normal. Uma de nossas servas tinha gritado ao achar o corpo de minha mãe perto da entrada da casa, a qual estava repleta de furos causados por tiros perdidos. Aparentemente minha mãe estivera olhando o conflito até ser atingida por uma bala perdida e agora é tarde demais: eu não tenho poder para trazer os mortos de volta à vida.

- Não. Não, não! – minha parte humana chorava incontrolavelmente, o que foi o suficiente para comover minha parte divina a se juntar aos lamentos.

- Eu tentei curá-la... Mas meus poderes que nunca foram muito grandes agora são minúsculos sem seu pai...

- Eu só queria ter o poder de trazê-los de volta! – pedi a mim mesmo.

- Desculpe-me – respondi-me entre as lágrimas – mas não sou um deus da vida ou da morte.

Depois de todos os rituais típicos de funeral que Zhong me pediu para realizar, falei com meus antigos servos e lhes deixei as terras; nada mais me prendia ali. Apenas antes de vir para a estrada, tirei uma lasca da pedra que honra meu ancestral e a transformei em um pingente que levo em meu pescoço, o que o permite me acompanhar em minha jornada. O pouco que sei me faz achar que talvez eu encontre alguma resposta na terra onde dos deuses mais antigos que há:

Índia.


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Notas finais do capítulo

Admito que talvez seja um pouco clichê algumas partes deste capítulo... Mas espero poder trabalhar bem os frutos disso nos próximos capítulos de modo a tirar bom proveito!
Obs.: imagino a forma da ponta da alabarda, a Justa, como sendo igual à imagem da capa da estória; o formato é que é importante de se saber, mas os detalhes podem ficar para a imaginação de cada um ;D



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