ELE escrita por Mordock


Capítulo 2
Reviravolta




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-1-

Havia algumas poucas nuvens, algumas grande o bastante para cobrirem o brilhar das estrelas, outras não; mas não tão grandes a ponto de bloquearem a forte luz do luar cheio. Trabalho era o que não faltava para Tony. Agora cavava o buraco aonde os gêmeos Tim e Tyler--que se acidentaram algumas horas após a festa; foi uma baita tragédia que nem o Chefe Walter teve coragem de passar alguns minutos perto da cena horrenda--descansariam pela eternidade. Nessa época do ano a terra ficava molhada por causa da neve, sendo mais fácil cavar. Demoraria em torno de 45 minutos para cavar uma cova, ams agora meia-hora ou até menos era o máximo.

As duas covas estavam prontas e o funeral marcado para a manhã seguinte (sexta, 24 de dezembro). Que belo natal a família Foggell vai passar... O cansaço já tomava conta principalmente das pernas, mas também do corpo em geral, de Tony; que estava encostado ao pé de uma árvore, lembrando de alguns rápidos momentos em que passou com os gêmeos. Levantava a cabeça em direção às estrelas e a abaixava em direção ao chão coberto de neve e folhas mortas em decomposição. Há alguns anos atrás estaria tragando um cigarro de seu maço; mas isso era passado e já havia deixado o vício. Graças a Deus! ele exclamava. Era bem religioso, o que ia ao contrário de seu ceticismo.

O vento estava forte, e o topo das coníferas em volta do Sul dançavam. A maçã de cor forte e vermelha estava prestes a ser abocanhada pela última vez quando foi jogada no chão pelo coveiro. Ela não estava estragada, nem nada. Estava suculenta. Mas jogou-a no chão pois a mesma figura negra que havia visto no parquinho no dia anterior rondava a cerca do cemitério, como se estivesse à procura de algo. Dessa vez ele não soltou um grito; levantou devagar e foi sorrateiramente até a criança. Mesmo pensando que ia assustá-la, deixou algumas palavras saírem.

- O que está fazendo aqui? - perguntou.

- Já te disse que ele não me deixa dormir - a garota respondeu.

- E já te disse que quero te ajudar, mas preciso que me ajude antes. Vamos, me diga: quem é ele?


A resposta não foi a que esperava. Não foi palavra alguma. Foi apenas ver a garota desaparecer no escuro da floresta. Tony estava preocupado demais com ela.

“Ela não pode ficar nesta floresta à essa hora da noite. Tenho que procurá-la, e vou procurá-la.” O coveiro também entrou na escuridão, guiando-se apenas pelo som das folhas sendo jogadas ao ar pelos pés da garota.

“Ei, volte aqui! Vamos conversar!” ele gritava sem nenhum sucesso. O barulho dos passos da garota foram enfraquecendo aos dos muitos outros sons da floresta. Era como um breu, mas os olhos do corredor já estavam se acostumando. Logo se encontrou perdido. Pra lá, ou cá? Havia somente duas opções relevantes: ou ficar vagando pela floresta até o sol nascer ou encontrar o Sul, ou ir até a cabana do fazendeiro Stew. Essa tal cabana era última opção e a menos desejada. Queria, pelo menos, voltar para o cemitério; não que lá seria melhor do que sua aconchegante cama e seu quarto quentinho e confortável.

Vou para a cabana e que se dane ele pensou.

A cabana ficava numa clareira, e não demorou muito para ser achada pelo coveiro. De longe podia-se ver que a porta estava aberta, e entrando percebeu que não havia lâmpada nenhuma; estava escura como o interior da floresta. Uma cabana tanto quanto estranha para um rico fazendeiro. Dentro havia somente um armário, quebrado e com pregos enferrujados, e uma cama dura mas que serviria para noite, e na qual ele desabou pensando que poderia encontrar o dono na manhã seguinte. Olhando ao redor viu muitos quadros de detalhes finos. Haviam retratos de pessoas nesses quadros; pessoas que encaravam o coveiro torcendo seus rostos em olhares de ódio. Uma coisa inesperada aconteceu; realmente inesperada. Um frio e um arrepio subiram pela espinha de Tony. Ele estava sentindo medo; um baita medo. Era uma sensação quase nova para ele. Uma sensação que havia sentido só uma vez na vida: a vez em que a cobra de estimação de sua classe (chamada pelo nome de Sirina) escapou do seu casulo e rastejou até a carteira do menino, aonde subiu pelas suas pernas até fazê-lo molhar as calças.

Incrível! Uau!

Tentando não pensar nas imagens virou de lado e caiu no sono. Um sono profundo e lúcido. Era tudo perfeito. Tinha um emprego melhor, estava financeiramente melhor, e o melhor: havia finalmente encontrado a tal garota e adotado-a. Ela era agora parte da família Barmont, e não havia nenhum “ele”.


O sol batia forte (mas não quente) em sua cara. Eram raios de luz que se fortificavam mais ainda quando atravessavam o vidro das janelas. O coveiro acordou já pensando nas pinturas, e assim que levantou para vê-las novamente percebeu que não havia pintura alguma no quarto; somente as mesmas janelas em que os raios atravessavam. O arrepio atravessou seu corpo mais uma vez, mas não foi tão pior como o da noite passada. Sentia-se seguro com a luz. Deu uma de Sherlock Holmes e investigou o armário quebrado. Não havia nada que chamava sua atenção. Saindo da cabana viu que o cemitério não estava a mais de 200m dali.

Putz.

As dores na coluna eram muitas. Depois de cavar dois túmulos alguém merece uma macia e comfortável cama para passar a noite. Afinal a menina não pediu para que Tony a seguisse e passasse a noite naquela cama dura. Azar o dele.


Chegando um pouco mais perto do cemitério podia-se ver as mesmas faces do dia da festa agora tristes, algumas molhadas com lágrimas, outras simplesmente transmitiam a tristeza do momento pelo olhar. Todas estavam inclinadas observando os dois caixões, de Tim e Tyler, sumirem dentro das covas. Jacky também era uma das pessoas, e foi a primeira em que Tony se aproximou.

- Cara, preciso conversar com você - Tony murmurou.

- Agora não dá, poxa - Jacky respondeu. - Tenho que prestar um pouco de respeito aos dois, e você também.

- Eu sei. . . mas aconteceu a coisa mais estranha de toda a minha vida,

Como Jacky tinha boa memória para coisas que o intrigavam, ele descobriu instantaneamente do que se tratava.

- Tem a ver com a tal coisa paranormal que Jimmy te contou, certo? - Jacky perguntou mostrando um súbito interesse ao assunto.

- Sim - Tony respondeu com um longo suspiro.


Numa rápida conversa Tony contou sobre a cabana e a menina. Jacky não estava com medo, apenas chocado. “Isso é um caso normal de paranormalidade.” ele disse. “A coisa está começando a te assombrar, Tony. E ela vai continuar até o fim.” ele acrescentou. Jim Bob também entrou na conversa.

- Viu! - ele exclamou não muito alto pois ainda estavam em volta do sepultamento. - Te disse que alguma coisa anormal estava acontecendo por aqui.

- Nunca teria acreditado se não tivesse visto - disse Tony com um olhar suspeito.

- E agora, o que me diz? - perguntou Jim. - Vai me chamar de louco? Ha-Ha.

- Preciso descansar - disse Tony espreguiçando e estralando as costas. - Se não tenho mais nenhum trabalho por hoje, prefiro ficar em casa.

- Não vejo problema nisso - respondeu Jim. - Quero que descanse por uma semana, e não volte antes disso! - ele disse saindo do cemitério e entrando em seu carro.

- Sim, vá descansar - disse Jacky.

- Tá preparado para o encontro? - perguntou Tony.

- Meio nervoso, mas preparadíssimo! - Jacky respondeu. - Puxa! Olha só a hora. Tenho algumas coisas para fazer. Amanhã talvez passe em sua casa, Tony.

- Tudo bem - Tony respondeu, - e boa sorte!


As pessoas foram indo embora e Tony, com fome, fez seu caminho até o restaurante aonde almoçou, bebeu e papeou até as quatro horas da tarde. Nesse dia não sentia nenhuma vontade de correr; nenhuma mesmo.


-2-

A tarde daquela sexta estava mais fria do que os outros dias.. Tony chegou até porta do seu apartamento às 16h30. O prédio atingia três andares. No primeiro vivia a Sra. Birdman, uma velhinha de 80 anos. Uma velhinha muito ativa para sua idade, mas que havia pegado uma forte gripe na semana anterior. No segundo andar vivia o síndico, o Sr. Groom. Sr. Groom, já estava na meia-idade, era rabugento e avarento. Não perdoava um dia de atraso no aluguel. “Se o meu bolso não ficar cheio no dia do pagamento, a rua te espera!” ele dizia. Finalmente no terceiro andar vivia Tony. Todos os três moradores se davam bem--a não ser no dia do pagamento.

Batendo na porta ele entrou no apartamento da Sra. Birdman e a comprimentou. Mesmo doente a velha teve hospitalidade; preparou chá mate com bolachas. Que delícia, Sra. Birdman! Lá Tony ficou por mais uma hora. Cansado como nunca subiu as escadas e foi direto para sua cama. Sentia-se feliz com a maciez do colchão e dos lençóis. Dormiu por mais duas horas, e acordou com o síndico lhe chamando.


- Senhor Groom? Estava me chamando?

- Sim - ele respondeu numa voz aguda.

- Está aí em baixo, Senhor Groom? - Tony perguntou.

- Sim - ele respondeu na mesma voz.


Sentindo que ele o chamava, Tony desceu as escadas. Mais uma vez ele o chamou e o mesmo “Sim” veio da porta mais distante. O corredor estava escuro, só a luz da lua dava alguma claridade. Mesmo desconfortável (e com receio de que o síndico fosse pedir o aluguel) o coveiro foi caminhando em direção ao quarto com um forte desejo de descobrir o que o síndico tinha a lhe dizer. Mas quando estava prestes a abrir a porta do quarto, a porta de entrada no primeiro andar foi aberta. Tony correu até as escadas e viu o Sr. Groom, que devia estar naquele quarto, entrar com uma sacola de compras.

- Oh, Tony! - ele disse numa voz alegre e num tom totalmente diferente da que vinha do quarto. - Em que posso lhe ajudar? Parece assustado. - ele subiu as escadas.

Tony se sentiu um pouco melhor, mais o mesmo arrepio da noite anterior tomou conta de seu corpo. O síndico entrou naquele mesmo quarto daonde vinha sua mesma voz. “Quer jantar aqui, Tony?” ele disse acendendo as luzes que se apagaram no mesmo instante. Um barulho de metal bater e de uma faca deslizando veio do quarto.

Ai!

- Senhor Groom! - Tony gritou.

Tony agora se encontrava imobilizável. Não conseguia fazer nada além de piscar os olhos. A porta do quarto, que havia fechado antes dos barulhos, agora abriu sutilmente. Por um momento Tony viu algo estranho lá dentro. Uma cara pálida, olhando para ele.

Era Ele. Tony não tinha a mínima ideia de que era Ele. E afinal, que porra é Ele?

O monstro saiu correndo do quarto, em direção à Tony. Num relance pôde ver os detalhes. Era pálido como a névoa do parquinho, suas veias sobressaiam da pele pelo corpo inteiro, os olhos escuros e agudos como as trevas e as mãos vermelhas de sangue. Sangue do Senhor Groom.

Tony vendo que a coisa vinha em sua direção também correu. Correu mais rápido do que corria nas maratonas que competia. Desceu às pressas pelas escadas, quase tropeçando. O apartamento da Sra. Birdman parecia seguro, e foi para lá que ele foi. Tony abriu a porta abruptamente e a trancou com a chave, com o trinco e com uma estante cheia de livro que estava ao lado. “Senhora Birdman! Você está aí?” ele gritou sem sucesso. O apartamento também estava escuro; ou mal iluminado seria a melhor palavra. Andando, ainda nervoso, pelo quarto o coveiro sentiu algo estranho vindo do quarto da Sra. Birdman. Ele já conhecia o apartamento, e já que a velhinha estava donte, o quarto seria o lugar mais provável para ela estar. Ela não respondia aos gritos pois provavelmente estava dormindo--isso era o que ele pensava. O que vinha do quarto era um cheiro fétido; um cheiro que o coveiro conhecia bem: cheiro de cadáver. Ele correu até o quarto, e lá estava a Sra. Birdman: morta como--o que Dickens diria--um prego de porta. Esquartejada. Ensanguentada.

Morta.

As partes do seu corpo estavam espalhadas pelo quarto. O tronco na cama, os braço pendurados na janela, as pernas encostadas no criado-mudo e a cabeça pendurada por um fio de nylon no ventilador que girava lentamente. A cena era horrível. Pior do que a que o Chefe Walter havia visto no acidente dos gêmeos. Muito pior. Tony nunca havia visto coisa parecida. Não tinha dúvida de que Ele havia brutalmente assasinado a pobre senhora. A Coisa não era mais espectro; era carne e osso. E Ele estava observando Tony pela janela do quarto escuro. Tony sem hesitação saiu correndo até a cozinha aonde ficava a porta que dava saída ao quintal.

Abriu a porta em um chute. Incrivelmente, mesmo exposta ao mundo exterior, a Coisa ainda corria atrás do coveiro. Olhando ao redor percebeu que não havia ninguém nas ruas. Estavam desertas. Ele correu até o restaurante--que parecia aberto. Abrindo a porta do prédio percebeu que os poucos (três ou quatro estranhos) que estavam ali banhavam-se em seus próprios sangues. Estavam mortos. Olhando para trás viu Ele se aproximando. Tony sentia um medo pior do que sentiu na cabana; estava quase desmaiando.

Não foi uma ideia inteligente, mas correu até o cemitério. Chegando lá viu que não podia se esconder do monstro--que já dobrava a esquina.Tony precisava pensar e fazer algo, e rápido. Ele pensou em subir na árvore, mas o tronco era muito comprido e não havia aonde se apoiar para chegar aos galhos. Além disso não havia folha nenhuma, estava seca, sendo assim mais fácil para Ele ver Tony molhando suas calças na copa. Na grade lá longe estava a menina, acenando adeus. Tony a ignorou.

O monstro estava chegando. Faça algo, Tony. Pense, rápido! A pá que sempre usara para cavar as covas estava deitada no pé da árvore, e foi com essa pá que ele cavou um buraco no chão. Lá se escondeu numa esperança de nunca ser achado pela Coisa. Antes de pular no buraco deu mais uma olhada em volta e percebeu que o monstro já não estava mais correndo atrás dele.

Ufa.

Ufa nada. Tony sentiu uma mão fria agarrar seu ombro com firmeza. Era a mão Dele. E Ele repentinamente puxou Tony para o buraco. Tony se machucou ao cair. Quebrou o pé, no máximo. Lá em cima podia-se ver Ele desaparecendo, como a fumaça de um cigarro. Em desespero o coveiro gritou por socorro. Ninguém atendeu. Gritou mais forte e ninguém veio. Sentindo-se derrotado ficou balançando no chão molhado e frio da cova, apertando o seu doído pé. Lá em cima não se ouvia nada além dos coaxares e os cantos dos grilos. O vento batia frio em seu corpo desprotegido. Após algumas horas pode-se ouvir alguns passos. Sentado ele gritou novamente. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima.

- O que foi? - o bêbado perguntou.

- Jacky?! - Tony exclamou. - Você está bêbado? Vamos, faça algo de útil e me tire daqui. Acho que quebrei o pé e estou com um frio danado.

- Ora bolas! - Jacky gritou. - Mas é claro que está com frio. Quem foi o safado que te descobriu, meu morto querido?

- Morto? - Tony exclamou surpreso. - Não estou morto seu imbecil. Chegue mais perto e estique o braço para que eu possa agarrá-lo e subir.

- Você tem que voltar a dormir, morto safado! - Jacky retrucou. E, pegando a mesma pá que Tony usou para cavar o buraco, encheu-o de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente. Houve ainda alguns gritos abafados vindo do buraco, mas nada que intrigasse Jack do Trailer. “Meu trabalho aqui está feito.” ele exclamou indo embora cambaleando. Pelo jeito seu encontro não tinha dado muito certo.


O ar foi se acabando. O coveiro agora respirava terra; terra que pesava em cima. O pé doía mais ainda, mas não mais preocupava o coveiro. Ele ficou refletindo sobre o que havia acontecido. Não ficou se debatendo como alguém normal ficaria numa situação dessa; ficou lá, imóvel, respirando as últimas moléculas de oxigênio que dançavam no buraco. Quem diria que Tony Barmont fosse capaz de cavar sua própria cova, como diz o velho ditado--que dessa vez foi levado ao pé da letra--, e ser enterrado pelo seu melhor amigo. Pelo menos fez o que mais gostava de fazer antes de morrer: correu como fazia diariamente; mas correu em direção ao seu próprio túmulo.


O FIM.


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Notas finais do capítulo

E então? Encontrou as creepypastas escondidas por aí? Vou dar uma dica: são duas.

Agradeço a sua leitura!



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