ELE escrita por Mordock


Capítulo 1
O Corredor




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–1-

Não há, até hoje, muitos aspirantes a serem maratonistas célebres na pequena cidade de Bridgewater, Connecticut. Mas na época deste conto havia Tony Barmont. E como era de se esperar Tony estava correndo. Estava correndo porque era isso que fazia diariamente. Seu amor pelo esporte vinha de seu tempo de criança, quando nem computador existia e ele gostava de lembrar desse tempo. Era a época que as crianças subiam nas árvores, brincavam de pega-pega e praticavam esportes; diferente das dos dias de hoje que perdem seu tempo e atrofiam seus neurônios em redes sociais--só em redes sociais.

A noite de inverno daquele 20 de dezembro de 2009 (uma terça-feira) estava fria e com poucos ventos na cidade de Bridgewater. A cidade é pequena, cidade de interior. Ela reflete os costumes da pequena população que não passa de 2.000. O parque aonde Tony corria fica à direita da Rua Central, no Centro de Recreação. Não é lá grande coisa mas agrada a população. Tem campo de baseball, tênis, basquete, um parquinho para as crianças, e uma trilha. O parque estava enfeitado com bolas, luzes e cartazes desejando um “Feliz Natal”, tudo natalino como em toda a cidade. Era essa trilha que Tony Barmont usava para praticar seu esporte favorito. Sempre haviam corridas ou maratonas de Bridgewater a New Milford, a cidade vizinha--que é maior e serve como fonte de entretenimento para os habitantes da menor--, e vice versa; e Tony sempre marcava presença fazendo seu caminho ao 1º, 2º ou 3º lugar, mas nunca abaixo disso. Era sua meta.

Com chuva ou sol Tony fazia a mesma coisa que estava fazendo naquela noite fria de inverno. Não devia estar correndo a essa hora do dia, não. Ele era um cara organizado, ou seria melhor dizer que sofria de TOC? Acho que sim. Sim, ele sofria de TOC. Sua obsessão não passava de fazer tudo em horas exatas e redondas. Como por exemplo suas corridas diárias: Tony só sai de sua casa às 15:30 para chegar ao parque às 15:40 aonde espera até as 16h00 para correr às exatas 17h00.

Mas nesse dia Tony estava de folga do trabalho e decidiu correr às 18h00. Como em todo o inverno demorou para escurecer e o corredor decidiu ficar mais um pouco: até as 20h00. Agora sim estava escurecendo. O parque estava deserto e ninguém em Bridgewater, além de Tony Barmont, é louco de correr no escuro a -3 Cº. A cidade não tinha nada de perigoso. Quem roubaria uma cidade de 1.800 habitantes afinal de contas? Seria como roubar o mesmo mercadinho de esquina dez vezes ao dia pela semana inteira.

Tony não tinha medo de nada.

“Eu não tenho medo de besteira nenhuma;” ele exclamava quando questionado. “exceto cobras!”

Sua profissão requiria um indíviduo com medo, pelo menos era isso que todos pensavam. Mas o coveiro da cidade--sim, Tony Barmont--quebrava esse estereótipo. Servia de lição e exemplo para os mais jovens e só não era chamado de lenda porque ainda estava vivo. Até que ele gostava de seu emprego; conseguia auto-sustentar-se com o salário, exigia esforço físico--e isso era com ele--, e também se divertia um pouco. Pena que era conhecido como o coveiro, mesmo sendo o coveiro. Não queria isso; não queria ser lembrado pelos familiares e amigos do defunto como o cara que enterrou o caixão do morto na cova em que cavou.

Agora estava um breu. Tony decidiu tirar seus fones do ouvido (ouvia Clapton), diminuir o passo e andar até o bebedouro. Estava desligado, fora da tomada, é claro, a -5ºC não era necessário congelar água alguma. Houve um pouco de dificuldade para puxar alguns goles, a máquina estava com pouca pressão, mas os poucos goles da água que acertava os dentes sensíveis de Tony como marteladas em uma tábua dura foram suficientes. Mesmo congelante foi refrescante e com um suspiro olhou para cima e depois desviou o olhar para a sua esquerda, para o parquinho de onde vinha um barulho de metal rangendo, um barulho arrepiante aos ouvidos de Tony. Foi arregalando os olhos (mas não se assustando; ele não tinha medo de nada) e fazendo um esforço para tentar descobrir o que aquela pequena figura escura ofuscada pela leve névoa, que agora havia tomado conta do lugar, fazia sentada ao lado do balanço.

–2-

O sol batia nos galhos raquíticos das árvores, que sempre nessa época deixavam uma paisagem morta à cidade. Os passáros mais corajosos (não passavam de 10 ou 20) saíam para procurar algumas minhocas para seus filhotes e sentar nos galhos dessas mesmas árvores raquíticas para gorjear um canto tranquilo, nobre e agudo. Tony estava acordando ao irritante beep-beep do seu alarme programado para despertar o trabalhador às dez da manhã. Ele sempre acordava tarde. Cavar a madrugada afora até as 6h não é para qualquer um, mas era para ele.

Nesse dia havia acordado mais cedo. Era aniversário de seu melhor amigo: Johnathan Slowills, ou Jack do Trailer; ou só Jacky, que estava passando sua manhã curtindo as felicitações de seus amigos em seu mural da rede social do momento, o Facebook. Até o prefeito, Morgan James, havia lhe mandado um belo depoimento, elogiando sua personalidade e agradecendo seus feitos pela cidade, como fazia todo ano. Jacky havia fundado o primeiro ferro-velho da cidade e foi uma ótima ideia, fez com que lucrasse muito; agora ninguém precisava ir até a cidade vizinha para jogar fora suas carcaças de carros ultrapassados, utensílios quebrados e mais. Além disso havia começado a pagar o empréstimo de quatrocentos mil dólares que estava usando para terminar a construção da primeira loja de penhoras da cidade.

Agora Jacky só estava esperando Brodi, como chamava Tony, chegar para irem celebrar com muita cerveja, fritura e gritos no restaurante da cidade.

A campainha tocou.

– Oi, Jacky! - disse Walter Hamsfield, o delegado.

– Haha, olha quem veio me ver! - respondeu Jacky com um sorriso na cara.

– Como vai, bicho? - perguntou Walter. Ele gostava da cultura hippie, e se vestia, conversava e agia como um quando não estava trabalhando.

– Vou bem, broto! - brincou Jacky rindo.

– Isso é bom - disse Walter. - Só vim lhe avisar que detemos um intruso no seu ferro-velho, por incrível que pareça. Eram duas ou três da madrugada então resolvemos não incomodar você já que era a madrugada de seu aniversário.. espera, seu aniversário?! Quase me esqueci! Meus parabéns!

– Ora, muito obrigado seu delegado. Sobre o intruso.. ele levou alguma coisa?

– Não, não levou nada. Foi por sorte que o Cabo Jenkins viu o desgraçado pulando a cerca bem quando passávamos. Dei um bom tapa em sua cara, alguns chutes na barriga e deixei-o no parque perto do lago, lá em baixo. Só não o joguei na água por--

– Haha, tudo bem, chefia! Sinto pena pelo moço por ter sido encontrado por você, mas ao mesmo tempo.. não.

O delegado deu uma risada, se despediu de Jacky e voltou para sua camionete. Deu uma buzinada e um aceno para tanto Jacky como Tony que estava chegando. Tirando a lama de suas botas no alpendre olhou em direção para a porta com um sorriso.

– Brodi! - disse Jacky. - Que felicidade em te ver; sei que não faz muito tempo desde que falei com você... foi ontem né?

– Sim, foi ontem - respondeu Tony. - Mas que diferença isso faz? Feliz aniversário! - Tony agarrou Jacky e o apertou num abraço de urso.

Jacky soltou um sorriso e com dificuldade na respiração pela força do abraço deu um alto riso.

– Ah.. - exclamou Tony entrando no trailer e olhando para a janela do Facebook aberta num notebook, um notebook bem sofisticado para quem mora em um trailer. - Você está famoso no Facebook, em?

– Você viu? - perguntou Jacky retoricamente, sentado-se na cadeira e virando para seu laptop. - Uau, espera! Olha só, Brodi! Hannah me mandou parabéns também!

– Ooh! - riu Tony.

Jacky estava a fim de Hannah, isso era certeza. Todos já sabiam disso, até ela mesma. “Os dois formam um belo par.” diziam as pessoas. Não havia um porquê de não gostar dela, ela era bonita, muito bonita.

– Chega de internet por hoje, Jacky - disse Tony abrindo a porta. - Vamos, estou com fome de cerveja!

Os dois foram caminhando até o restaurante. Havia bastante neve nas calçadas e nas ruas, mas o removedor de neve (que é sempre o mesmo caminhão, só mudando a ferramenta e a utilidade) da prefeitura já estava cuidando disso. O motorista do caminhão acenou para Jacky desejando-o um feliz aniversário. A comunidade inteira se conhece. Os moradores recém chegados são recebidos por uma Comitiva de Boas Vindas com uma bela torta de maçã confeccionada pelo mestre-padeiro Frank Lazzarati. O que Jacky não esperava era o susto que levaria ao abrir a porta do restaurante.

– Surpresa! - gritaram todos que estavam ali. - Parabéns pra você, nesta data querida...

Jacky estava envergonhado. Sua cara que estava pálida pelo frio agora estava vermelha como um pimentão. Para diminuir a estranheza daquele momento brincou fazendo de conta que estava com medo se escondendo debaixo de uma mesa. A canção terminou. Alguns parabéns individuais vinham de vários cantos do prédio. Havia muitas pessoas importantes no recinto junto com o prefeito. Jacky foi agradecendo mesa por mesa.

– Jacky, meu rapaz! - exclamou o prefeito aproximando-se - Feliz aniversário novamente! Não sei se viu o que lhe mandei naquele Facebook. Espero que tenha, não sou muito familiarizado com aquela porcaria e demorei bastante para inventar uma declaração tão bonita como aquela.

Jacky riu.

– Sim, prefeito, eu vi sua declaração - zombou Jacky. - Fico muito agradecido!

– Você é muito especial para a cidade, Jacky - disse o prefeito -, e espero que faça muito mais pela comunidade! - É claro que Jacky era especial, ele trazia mais lucros para a cidade, ora.

A festa continuou, e Jacky não precisava arcar com as custas. Era tudo por conta da casa como disse o chef Jean Gaspart desejando felicidades ao empresário. Enquanto Jacky recebia congratulações de todos os tipos de rostos da cidade, Tony achou seu lugar na mesa aonde estava seu chefe e mais dois amigos. Conversou normalmente até os seus dois amigos, os gêmeos Tim e Tyler irem embora. Foi quando seu chefe, Jim Bob, ou Jimmy, soltou algumas palavras.

– Tony, hoje e amanhã não preciso que vá trabalhar. Passe o dia celebrando com Jacky hoje e amanhã vá correr ou visitar sua mãe.

– Tudo bem, Jim - respondeu Tony. - Mas por que não preciso ir? O ladrão do ferro-velho não vai ser enterrado no cemitério? - zombou.

– Não - respondeu Jim olhando para os lados como se procurasse por algo suspeito. - Me foram relatadas algumas atividades anormais no Sul (o apelido para o Cemitério do Sul), e já que não tem que cavar nada por enquanto quero que descanse.

– Anormais como? - perguntou Tony. - Você sabe que não tenho problemas com nenhuma dessas coisas patéticas.

– Eu sei que não. Mas você verá do que se trata da próxima que for trabalhar. E não se preocupe com dinheiro, não será descontado nada do seu salário final.

O coveiro concordou com seu chefe e num assuto diferente conversaram por alguns minutos.

A diversão já havia tomado conta de Jacky. O tilintar do sino da porta do restaurante pareceu entrar em sua cabeça e não sair mais. Em um relance viu quem entrava pela porta: era Hannah. Jacky não precisava de mais cerveja para sentir o que sentiu quando viu o brilho dourado e avermelhado saindo dos cabelos ruívos de Hannah Balts. O delegado, que também estava comemorando com seu pelotão, deu um tapa nas costas de Jacky e disse: Uau, que broto!

A primeira pessoa para quem a mulher olhou foi Jacky. Ela foi se aproximando, sorrindo afetadamente, e como se precisasse provocar o empresário, encostou-se no balcão pedindo uma cerveja. Jacky babava; seu queixo caía até o chão. Ficou observando a ruíva beber o copo de cerveja, só prestando atenção em seus lábios que estavam cobertos por uma fina camada de batom vermelho.

– Posso ajudar, aniversariante? - perguntou Hannah. Ele não havia percebido, mas de algum modo havia andado até o banco ao lado de Hannah, como se estivesse hipnotizado. Não muito longe do balcão Tony caiu aos risos.

– Suponho que sim - respondeu Jacky ainda tentando descobrir o que havia acontecido.

– Meus parabéns então! - exclamou Hannah envolvendo o alucinado em um suave e delicado abraço. Ele rolou os olhos numa sensação de vitória.

– Muito obrigado, donzela - disse Jacky. - Fico feliz em te ver, e puxa, como está bonita!

– Ah, muito obrigado, mestre - ela riu. - Mas você sabe que essa palavra não vem ao uso quando se refere a mim.

– Eu sei - ele respondeu. - E isso não vem ao caso, hoje é dia de esquecer do passado e celebrar o presente!

Os dois foram dançar.

Já passava das três horas da tarde quando a festa chegou ao fim. Todos estavam satisfeitos e cansados. Houve muita dança, risadas e gafes; foi uma festa que permaneceria na cabeça dos convidados por alguns meses. Jacky se dirigiu à sua casa com Tony. Foram conversando durante o caminho, e Jacky só falava de Hannah e como estava se sentindo realizado por conversar com ela durante a festa e por também marcar um encontro na sexta-feira à noite. Mesmo sendo quarta-feira não conseguia parar de pensar e imaginar o momento. Sabendo que não precisaria trabalhar nem naquele dia e nem no seguinte, Tony decidiu passar a noite com o aniversariante do dia. Ele contou sobre sua conversa com Jim Bob, sem mudança no tom da voz. Diferente de Tony (cético como um velho teimoso), Jacky já acreditava facilmente nas coisas que ouvia, e era esse o motivo da perda de vários outros negócios que perdera.

– Quem sabe se é verdade? - disse Jacky com um olhar pensativo em direção ao aquecedor, que já estava caindo aos pedaços, na parede do quarto. Ele já estava um pouco acima do seu limite de embriaguez. Jacky nunca ficava bêbado, mas quando ficava. . .

– Eu sei. E sei que não é - respondeu Tony friamente.

A quinta-feira seguinte foi normal, e não hesitando em vestir seu par de tênis (novo em folha), seu shorts de corrida e a leve camisa estampada com a bandeira americana, Tony dobrou a esquina e correu até New Milford para comprar um refrigerante de guaraná, uma especiaria.

–3-

Ele não estava com medo. Só estava curioso pra ver o que aquela figura negra estava fazendo. Era meio anormal uma criança, o que parecia ser, estar brincando no parquinho, ainda mais a essa hora da noite. Ir ou não ir, eis a questão pensava o coveiro tentando trazer um pouco de humor àquele estranho momento. Em um Ei! tentou chamar a atenção. Não teve resposta. A curiosidade era tremenda que fez com que ele, involuntariamente, fosse adentrando a vasta opacidade da névoa. Era fina, mas mesmo assim era difícil de enxergar três passos à sua frente. O ranger do balanço continuou. Nhec-Nhec. Agora, chegando um pouco mais perto, uma voz suave de criança voava no ar. Era isso que Tony esperava. Ele jogou algumas perguntas contra a suave voz enquanto andava, agora num passo mais rápido, até o lugar. Com os olhos arregalados, as pupilas dilatadas e uma respiração pesada o coveiro chegou até o balanço. Lá sentada com as pernas cruzadas estava uma garota. Uma garota de cabelos loiros com tranças que usava um belo--mas sujo de lama--vestido azul xadrez e sapatos vermelhos e brilhantes. O ranger agora havia parado, e a cadeira do balanço não balançava mais. Foi como um alívio aos tímpanos de Tony.

– O que você está fazendo aqui numa hora dessa? - perguntou Tony ainda respirando pesado.

– Você o assustou - respondeu a criança de cabeça abaixada.

– Assustei quem? - insistiu o conveiro. - Alguém estava aqui com você? Seu pai, sua mãe. . . um amigo?

– Assustou ele - ela respondeu.

– Ele quem?! - exclamou o coveiro. - Olha, estou tentando te ajudar, e pra fazer isso preciso que me ajude. Por que você está aqui?

– Ele não me deixa dormir - a criança respondeu apontando para a cadeira do balanço.

Tony deu uma rápida olhada para a cadeira. Não havia nada lá. Ele voltou seu olhar para a criança que, como num requintado passe de mágica, também havia desaparecido. Ele soltou mais um Ei! e como na primeira vez não recebeu resposta. Ele engoliu a saliva que tomava conta da sua boca aberta. Estava frio demais para ficar filosofando sobre o que havia acontecido e era hora de ir embora. Mesmo após uma coisa tão assustadora--para pessoas normais--, Tony foi calmamente andando até seu apartamento, pensando e remetendo o acontecido às atividades anormais do Sul. Se essa for a mesma coisa que está acontecendo no Sul. . . não. . . besteira!

Mas o que nunca veio à mente de Tony Barmont, o cava-cova de Bridgewater, que esta tal besteira fosse a responsável por todo o horror e pânico que o assolou durante um pequeno--pequeno, mas que pareceu durar uma eternidade--período de sua vida, que também foi curta. Ele não tinha a mínima ideia; não sabia de nada.

Nadinha.


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