Abro meus olhos devagar, ainda mal acostumados com a luz que vinha de fora de meu templo. Eu deveria ter adormecido pelo menos duzentos anos desde então. Os murmúrios do cosmo de Hades me diziam: tudo começaria novamente. Aos poucos, minhas penas e forma de pássaro dourado desaparecem, enquanto minha forma humana volta a dominar¹. Sento-me ainda preguiçoso na borda da cama, enquanto algumas ninfas me trazem frutas e pães, e preparando meu banho.

Entro naquelas águas límpidas, afundando por alguns segundos ali, pensativo. Minha mente precisaria trabalhar cada vez mais, já que Hades se tornava cada vez mais experiente com a guerra...o que me motivava a continuar e esquecer o medo era o fato de tudo ser pelo meu bem e de meu irmão. Volto à superfície, recostando minha cabeça em uma das margens daquela gigante banheira, deixando escapar um leve suspiro, quando ouço uma voz conhecida:
_ Conheço esta expressão....mal se levanta e já está pensando em trabalho....eu poderia ter um irmão melhor.... – Thanatos ria, entrando na água também – Pensei que você não acordaria mais....- se estica, colocando as mãos por detrás da cabeça, com a postura relaxada. – Mais algum plano em mente, senhor estrategista?

_ Humpf...não estou pensando em trabalho....-cruzo os braços, fingindo irritação – apenas espero que o senhor apressadinho não meta os pés pelas mãos desta vez....sabes que desta vez iremos reencarnar na terra, não? – o olho, sério.
_ Não me conformo que me rebaixarei ao nível de um humano imundo....-diz, com desdém, sentando-se ao meu lado, e enxugando seus cabelos em uma toalha – Você deve estar adorando a ideia, já que protege aqueles malditos!

_ E quem disse que os protejo? – cruzo os braços, indiferente, arqueando uma sobrancelha para ele – Aliás, e se eu dissesse a você que realmente os protejo por que precisamos deles para manter nossas vidas divinas? – precisava tentar...apenas mais aquela vez.

_ Ora, ora....então quer dizer que está amolecendo, Hypnos? – sua feição demonstrava todo o desprezo que ele começava a sentir por mim – Seria uma vergonha ter um irmão assim....eu preferiria acabar com você com minhas próprias mãos do que vê-lo sucumbir como Athena perante aqueles vermes! – eu podia sentir o cosmo de meu irmão se elevando às minhas costas, mas mantive minha postura firme, sem olhar para ele.

_ Está certo, está certo....-forço um sorriso, saindo da água e indo até onde minhas roupas limpas estavam. – Estava apenas brincando para saber qual a tua reação...nada mais.... – termino de me vestir com aquelas roupas humanas de sacerdote.

_ Nunca mais faça uma brincadeira de mau gosto desta, meu irmão....eu posso levá-la a sério....- comenta, mal humorado, terminando de se vestir e saindo dali.

Dou um sorriso conformado e de derrota....não adianta...Thanatos jamais iria aceitar aquela idéia, e, apesar de conhecê-lo bem, temia que ele pudesse se precipitar e atrapalhar meus planos: melhor deixar tudo como está....teleporto-me à catedral que seria a minha casa por alguns anos, antes que Hades nascesse em uma mansão próxima dali, como irmão de Pandora....tudo começaria de novo...

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Admito que a cada dia que passava, mais me admirava com as construções humanas....a capela era perfeitamente construída, com figuras de anjos que pareciam nos seguir com os olhos....ao fundo, a pintura gigante da “salvação”: o retrato do senhor dos mortos, ninguém menos que Hades, libertando as almas infelizes das pessoas que sofrem na terra....Comovente....muito comovente....

Saio à porta, a fim de esperar Thanatos e respirar um pouco de ar fresco...aquela floresta me trazia um pouco de paz, auxiliando-me a por as idéias no lugar. É neste momento que ouço a voz fraca de alguém, aproximando-se de mim: uma velha senhora.....parecia muito contente em me ver, abraçando-me e beijando as minhas mãos. Confesso que fiquei um pouco sem reação quando ela agiu daquela maneira....não estava acostumado com contato “humano”. Tentei afastá-la, delicadamente, sem sair de meu personagem, sorrindo para ela.
_ Padre, como é bom vê-lo aqui! – apesar de me afastar dela, ela continuava a beijar minhas mãos repetidas vezes – é o meu filho....preciso que reze por ele!A moléstia está tomando conta dele.....o senhor precisa fazer algo!!Tenho certeza que conseguirá um milagre! – nisto, ela me abraça, chorando desconsoladamente. Por Hades....eu poderia ter escolhido uma profissão melhor....
_ Está bem, minha senhora....não se preocupe...os céus irão tomar conta dele e logo estará melhor.... – forço um sorriso. Apesar de dizer aquelas palavras por mera interpretação, não deixei de sentir pena daquela mulher...os humanos, em seu desespero, chegam a qualquer ponto, não importando o preço que devem pagar para isto.

_ Ah, muito obrigada, Padre!!Não sabe o quanto estou sofrendo com isto eu....- de repente, os olhos dela se tornam sem vida, desfalecendo em meus braços. Eu podia sentir aquela energia tão conhecida emanando de dentro da floresta.
_ Parece que quanto mais andamos, mais vermes grudam em nós....você tem sorte por eu ter aparecido aqui e dado um jeito nisto.... – com seus poderes, ele faz a velha senhora se desintegrar, restando nada em seu lugar. – Humanos imundos....como ousam tocar em nós, deuses? Terá de tomar outro banho, meu irmão.... – começa a rir, cruzando os braços.

_ Você não deveria ter feito algo assim!!! – olho para ele, tentando me acalmar, mas a raiva se apossava de mim – estamos aqui disfarçados, Thanatos!!!Matar pessoas só nos trará mais suspeitas!! – mordo meus lábios a ponto de feri-los, virando as costas para ele, antes que pudesse me retrucar.

Entro na catedral em silêncio, ainda pensando no que a velha senhora me pedira. Apesar de ser um deus e não ter de fazer nada para ninguém, atendi o pedido daquela senhora, curando o filho dela naquela noite.