Shalom - As Memórias de John Sigerson escrita por BadWolf


Capítulo 5
Capítulo 5: Montpellier


Notas iniciais do capítulo

Sem descanso, vamos a mais um capítulo, esse mais longo.
A história está progredindo. Mais adiante vocês verão os rumos, e verão também um pouco da Esther.



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No dia seguinte, os dois estariam embarcando em um trem para Montpellier, onde certamente ela resolveria sua vida, e Holmes daria continuidade a seu plano de desmantelar o que restou de seus inimigos.

A viagem foi rápida, e logo a movimentação de cidade portuária de Marseille foi sendo abandonada, dando lugar a paisagens bucólicas e calmas. Havia pelo caminho campinas e pastagens, e também algumas plantações que cortavam o horizonte. A brisa, calma, contribuía para tornar o local gracioso.

Quando desembarcaram na estação, Holmes gentilmente a ajudou a desembarcar.

-Mas por que Montpellier, Mr. Sigerson? Pelo que posso concluir, os músicos geralmente escolhem cidades como Paris, Londres...

Holmes negativou com a cabeça. – Ah, mas essas cidades já estão lotadas deles! Além de quê, preciso de sossego... E também...

Ele parou, lançando um suspiro. Esther o observava, sem entender.

-Eu faço uma coisa ou outra de Química. – ele disse. – E Montpellier é uma cidade muito interessante por seu centro acadêmico.

-Você é um químico?!

Holmes concordou. Será que fiz certo em contar-lhe isso?

-Sim, eu sou. Quero dizer, sou só um mero estudioso, um químico amador, não um cientista. Mas gosto de acompanhar as novidades do ramo.

-Hum... Você não parece um químico...

Holmes a encarou, surpresa. – Ah não? E os químicos têm cara?

-Convenhamos, você não parece mesmo um químico... Um músico, sim, você parece...

-Você vê, mas não observa, minha cara. Poderia ver as manchas em meus dedos, e também os calos, e concluir as duas coisas, não apenas uma. Aliás, você está deduzindo que sou músico por puro preconceito, sem uma base relevante.

-Bem, qualquer um diria que você é músico, pelo case que você leva pra todo lado.

-Ah, agora temos algum avanço... Mas é óbvio que tenho que leva-lo, é a coisa mais valiosa que tenho.

Esther concluiu. – Você não tem um kit de química.

Holmes lembrou-se de seu kit de química, em Baker Street, que não devia nada aos localizados nos grandes centros acadêmicos, e foi de grande valia a muitos casos e também à Scotland Yard. Ah, em outros tempos...

-Não, eu não possuo. Mas agora, vamos parar de conversa, porque estamos chegando à estalagem que mencionei.

Era uma estalagem simples, onde os dois se hospedaram. Porém...

-Puxa, mas tudo isso por cada quarto!

-Isso mesmo, senhor. – disse a mulher. – É a alta temporada. Está havendo um Seminário na Universidade, com professores de todos os cantos da Europa.

Holmes olhou rapidamente para Esther, que deu de ombros.

-Há pelo menos um quarto com duas camas?

-Sim, há um quarto com duas camas. Beliche.

Holmes resmungou. Odiava beliches.

-Tudo bem. – ele respondeu, olhando para Esther, que acenou como se não se importasse.

Holmes colocou sua mala sobre a mesa, contemplando a beliche de madeira que jazia sobre um canto do quarto, que deveria ter menos de quatro metros quadrados. Ao menos, ele pensou, ela parece mais apropriada a um homem e mulher solteiros.

-Você vai ficar com qual cama? – ele perguntou.

-A de baixo, se você não se importar.

-Certo. Er, eu creio que você deve estar com fome. Acredito que daqui a pouco a estalagem servirá o almoço.

Esther parecia envergonhada por ter, mais uma vez, suas despesas pagas por Holmes. – Er, Mr. Sigerson... Eu acho que amanhã bem cedo irei procurar um emprego. Qualquer coisa.

-Você é quem sabe, Miss Katz. Mas deixo claro que isso não é necessário. Posso perfeitamente me arranjar por aqui com uma ocupação, mas... Para uma mulher, você deve imaginar, é sempre mais difícil...

-Eu sei, mas eu quero tentar. Posso arranjar um emprego pequeno, como faxineira, cozinheira...

Holmes ergueu uma sobrancelha. – Cozinheira? Mas você é judia. Seus conhecimentos culinários são um tanto limitados para os... Gentios.

Os dois riram. – É, ao menos que quem queira apreciar minha comida tenha uma alimentação bem restrita, porque eu sequer sei como cortar um bife.

Holmes soltou uma leve risada. – Posso imaginar.

Os dois almoçaram, e Holmes pediu para que ela continuasse na estalagem, pois ele procuraria um emprego. Uma grande mentira. A intenção era conhecer o terreno, onde seu inimigo estava instalado.

Ele chamava-se Clarence Chevalier.

Holmes lembrava-se da última vez que vira Clarence Chevalier. Ele estava disfarçado, claro, nada muito extravagante. Bastou colocar roupas mais simples para passar-se facilmente como um pastor ou algo assim em Meirigen, quando ele e Watson estavam perto das Cataratas. Era ele o jovem que entregou a Watson o falso recado de que havia uma idosa inglesa que precisava de médico. Holmes o conhecia de antes. Ele estava em terceira posição, na poderosa hierarquia de Moriarty, um feito e tanto para alguém de sua idade. Ele era jovem, de cerca de vinte e três anos, e embora fosse um francês nato, seu inglês era perfeito, podendo se passar por um nativo. Sua habilidade não era o assassinato, como o Coronel, mas a falsificação. Ele ajudou Moriarty no esquema lucrativo que Holmes desmantelou, que quase custou a perda irreversível de obras de arte estimadas. Seu ramo, portanto, o tornava ainda mais oculto, uma vez que ele deveria ter, segundo Holmes, uma identidade falsa para cada dia do ano.

Ele tinha que pensar em algo para pegá-lo.

Diariamente ele fazia isso, revezando suas idas ao Instituto de Química de Montpellier entre andanças pela cidade, para saber se ele estava sob alguma identidade falsa.

Para sua surpresa, não.

Clarence Chevalier estava tão convencido de que tinha escapado da Justiça que agora gozava de todos os lucros do tempo de Moriarty, usando sua própria identidade. Afinal, tinha praticado todos os seus crimes sobre identidades falsas, e agora ele podia ser ele mesmo.

Ele morava em uma residência elegante, uma das mais elegantes na cidade. Holmes soubera que ele tinha um irmão que trabalhava como professor de Química em Montpellier, uma coincidência espantosa e bem-vinda àquela altura.

-Monsieur John Sigerson!

Holmes conversava o tempo todo em francês impecável com os conhecidos, embora alegasse ser norueguês. Seu artigo publicado na Universidade de Roma tinha chegado até Montpellier, e reconhecido no meio acadêmico.

-É um prazer finalmente conhece-lo, monsieur. – disse Pierre Tissou, professor que tinha lido o trabalho de Holmes e o que mais tinha tecido elogios.

-O prazer é todo o meu.

Os franceses costumavam simpatizar com estrangeiros que falavam francês, e isso favoreceu a inserção de Holmes no seleto meio acadêmico. Em poucos dias, ele já estava frequentando o laboratório e a biblioteca do centro.

Ele soube, entretanto, que o irmão de seu inimigo, um pesquisador chamado Edmond Chevalier, estava em uma viagem à Paris.

-Você conhece o irmão dele? – perguntou Holmes, enquanto almoçava no restaurante da Universidade, com Pierre.

-Ah, eu já o vi de vista... Ele é um homem muito reservado. Coisa típica de um homem de negócios, completamente ignorante de nosso trabalho. – ele disse, com desdém. – Soube que ganha muito dinheiro na Bolsa, que possui investimentos na Inglaterra... O irmão, assim como nós, não recebe muita coisa, e por isso vivem juntos. Edmond acaba por tolerar muita coisa por isso.

-Sei.

Era perto das sete quando Holmes chegou na estalagem. O que ele recebia por suas pesquisas era simbólico, e ele ganhava algum dinheiro tocando à noite, em um cabaré sujo perto da estação de trem.

Holmes encontrou Esther na estalagem. Para sua surpresa, ela estava terminando de servir uma mesa. Por um instante, ele percebeu o ambiente: quase uma dezena de homens, uns trabalhadores, outros vagabundos de rendimento questionável. Ele sentiu certa raiva eclodir de dentro de si, ao perceber um homem olha-la maliciosamente, enquanto ela lhe servia um copo.

Furioso, ele perdeu até a fome, e subiu para o quarto. Sentou-se em uma cadeira, que ele fazia de poltrona, e acendeu seu cachimbo. Ficou pensando, enquanto soltava algumas baforadas.

Mulheres! Ele já tinha lhe dito que não era necessário pegar qualquer trabalho, que ele era capaz de sustentar a ambos, até que ela conseguisse um emprego razoável e em seguida moradia. Ele lembrava-se do Capitão no navio, lançando o corpo de David ao mar, e dos comentários dos marujos sobre o que fariam com Esther. Não. Ela não podia se colocar em situação tão vulnerável.

-Mr. Sigerson, eu posso entrar?

Por que ela sempre aparecia quando ele pensava nela?

-Sim, pode entrar.

Esther entrou no quarto, e ficou diante dele.

-Você não vem jantar? Aproveite enquanto a comida ainda está quente.

-Não quero, obrigado.

Ela bufou, um tanto impaciente. – Porque você não sente fome como as pessoas normais, hein? Não é possível que tabaco alimente alguma coisa.

Ele quase deixou escapar uma risada. Watson pensava a mesma coisa. Ele deu mais uma baforada, em resposta, e ela abanou o ar. Embora ela nunca tivesse reclamado de seu fumo, Holmes costumava provoca-la com a fumaça do tabaco. Esther forçou uma tosse, e insistiu de novo.

-Vamos lá... Lucy se esforçou e fez uma sopa decente hoje. Ainda tem pedaços de carne na panela, e eu deixei um pra você.

-Hunf. Tá bom. – ele disse, deixando o cachimbo em um canto.

Ela sorriu, e ele não pôde deixar de fazer o mesmo.

-Podemos ir?

-Sim, mas... Eu gostaria de trocar uma palavra com você, Miss Katz.

-O que é? – ela perguntou, puxando um banquinho.

-Miss Katz, eu sei que você não quer ser um peso para mim ou qualquer coisa dessa natureza, mas... Entenda, trabalhar nessa estalagem, servindo esses homens...

Ela fechou o semblante. – Eu sei me defender, Mr. Sigerson.

-Eu sei disso, mas... Esses homens não respeitam as mulheres que trabalham... Nestas posições. Eles são maldosos, e eu pude ver isso com os meus próprios olhos.

Esther parecia irredutível com sua reação. – Mr. Sigerson, eu preciso de um emprego! Não posso ser sustentada por um homem que não é meu parente, e nem meu... Aliás, você faz alguma idéia do que pensam a nosso respeito?

Holmes baixou a cabeça. Ela estava certa. Mulher teimosa.

-Achei que pensassem que somos irmãos...

-Claro que não. Olhe para nós dois. Vê alguma semelhança física? Eu sou loira, tenho os olhos verdes, e a pele mais clara que a sua, e você tem o cabelo preto, os olhos azuis...

-Cinzentos. – interrompeu Holmes. – Meus olhos são cinzentos.

-Que seja. – decretou Esther. – E nossos sobrenomes... Eu te trato como “Mr. Sigerson” e você como “Miss Katz”... Fora os comentários que Lucy lançou para mim, dizendo que poderíamos usar o quarto... Com cama de casal, ao invés de beliche...

Holmes bufou um tanto envergonhado com isso, e bastante indignado. Iria soltar alguns palavrões a respeito da dona da estalagem, mas se conteve ao olhar para Esther.

-Você sabe que eu não tenho condições de alugar dois quartos aqui...

-Então, deixe-me trabalhar na estalagem.

-Não. – disse Holmes, aborrecido. – Eu acho que posso tentar arranjar algo pra você no Centro de Pesquisas... Não sei...

Esther ficou radiante. – É mesmo?

-Posso tentar.


oooooo


-Monsieur Sigerson, há apenas vaga como secretária, mas é necessário fluência em Inglês. Sua...?

-Prima. – ele disse. – E ela tem fluência em Inglês, pode sossegar.

-Ela também precisa ser um tanto flexível, porque Monsieur James Johnson é um tanto complicado de se lidar.

Holmes concordou. – Eu tenho certeza de que ela saberá lidar com isso, Professor.

Pierre aceitou, então, Esther no cargo de secretária.



ooooooo


Esther estava nervosa naquela manhã que acordou para dar início ao seu primeiro dia de trabalho. Holmes a acordou às seis, um pouco mais cedo que o habitual, uma vez que as mulheres tinham o hábito de demorarem para se arrumar. Enquanto ela se arrumava no quarto, Holmes desceu para tomar café, sentando-se em uma mesa. Pediu pão e café, e como sempre, não o terminava.

Na mesa ao lado, sentou-se um vagabundo qualquer, que costumava fazer suas refeições por ali. Lucy, a estalajadeira, aproximou-se para servi-lo, e ele perguntou.

–Cadê aquela garota, Lucy?

–Ela não trabalha aqui, só me ajudou noite passada.

–Mas que pena...Ela iria tornar minhas manhãs mais encantadoras. E as noites, então...

Holmes levantou-se um tanto irritado, ainda mais com as risadas maliciosas do rapaz. No fundo, Holmes estava aliviado, por livra-la daquele trabalho. Ele subiu as escadas, e ficou na porta esperando Esther por alguns minutos.

Para sua surpresa, Esther arrumou-se rápido, e estava vestindo sua melhor roupa, um vestido azul escuro com o cabelo loiro preso em um coque formal.

–E então?

–Está... Ótimo. – foi a melhor palavra gentil e pouco indelicada que Holmes encontrou. Lidar com o sexo oposto realmente não era sua especialidade. Do que ouvia dos relatos de seu amigo Watson, as mulheres eram complicadas. Uma palavra, por mais bem-intencionada que fosse, poderia adquirir um sentido completamente diferente. Eram irracionais, emotivas, esquisitas, enfim. Um ser complicado que ele sempre quis distância. Esther era uma exceção. Era uma boa companhia. Não oscilava de humor, não tinha crises de personalidade ou qualquer outra característica feminina que lhe fizesse correr dela. Se o mundo tivesse mais Esther Katz, certamente seria um lugar melhor de se viver.

Sherlock Holmes, é você mesmo?

É, era estranho de se pensar, ele sabia, mas era um fato. Ela era diferente, e estava belíssima, e não "ótima" naquele vestido. E como ele queria dizer isso a ela! Por dentro, Esther passou sobre si a impressão de que estava maravilhosa, mesmo com uma postura formal. Claro, ele pensou, ele estava surpreso porque não costumava vê-la daquela maneira. Ela era sempre tão prática em tudo... Ele podeira contar nos dedos as ocasiões em que ela estava bem arrumada como naquele dia. Esther era um pouco diferente das mulheres que ele conhecia. Não tinha a aparência como prioridade. Não que fosse descuidada. Quando ambos caminhavam na rua, Esther costumava ignorar as vitrines e todos os luxos que ela poderia oferecer. Seu principal defeito era o gasto com livros - argh! Para piorar, livros de poesia, e a França, infelizmente, era um reduto de poetas.

Deus, como ela está bonita...

Esther sorriu, aparentemente satisfeita com o elogio formal de Holmes. Menos mal, ele pensou.

–Então, vamos.



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Notas finais do capítulo

O que acharam desse Chevalier? Sempre quis saber quem era o tal rapaz que entregou o recado falso a Watson e o fez se afastar de Holmes antes da queda da catarata.

Parece que Holmes está cada vez mais perto de começar a derrubar seus inimigos. Chevalier está na mira dele agora. O francês que se cuide...

E Esther, hein... Ela está um tanto sem-graça por ter suas despesas pagas por Holmes, mas não vai deixar isso quieto. Ainda vai render muita dor de cabeça para Sherlock, vocês vão ver.

Mais à frente, um personagem muito importante dos livros de Sherlock Holmes vai entrar. Alguém pode imaginar quem seja? Só o que posso adiantar é que irá trazer muitas reviravoltas.


Thanks,
BadWolf



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