Estava na minha sala de estar, de boa, comia alguns amendoins (que são meu lanche preferido depois de jujubas) e vendo American Idol. Minha mãe tinha saído para o trabalho (ela é enfermeira) e eu ficaria sozinho o resto do dia (dancinha feliz). A casa estava bem silenciosa, o que era estranho pois eu tenho dois cachorros, dois rottweilers, Proteu e Nereu (porque eu gosto de mitologias, e lendas). E como nosso apartamento era minúsculo, tinha sempre aquele vizinho mala.

Por mais que eu seja um adolescente meio emo assumido, eu não curto muito esse silêncio total... Aumentei o volume da televisão, pus uma água para ferver (pra fazer miojo já que não sei nem fazer arroz) e joguei a bolinha azul dos meus cachorros para eles fazerem certo barulho. Agora, eu me sentia melhor. Busquei um cobertor, e quando já me sentia mais quente, ouço a tampa da panela se mexer. Fui na cozinha fazer meu miojo, ainda assistindo a televisão (já que meu apartamento é micro e a cozinha é americana) e quando cruzei o portal: a Morte.

Não preciso nem dizer que tive um ataque do coração, né? Cara, toda vez que ele vem aqui, ele faz questão de vir quando é de manhã, e tá tudo escuro. Bom, tudo bem, a casa sempre está escura quando minha mãe não está, mas... Sei lá. Ele podia aparecer na varanda.

—Um dia, você me mata! - disse eu com a mãe no coração. Por mais que ele apareça quase todo dia, eu não me acostumo... Você se acostumaria, com a Morte vindo na sua casa? Pois é. Mas ele não vai só na minha casa, ele também vai na minha escola.

—Jacob, você um fracote. - ele disse. Bom, antes que você fique achando que ele vai ceifar minha alma, aqui vão umas coisas que você precisa saber:

1. A "Morte" é meu irmão. Na verdade,  ele é homem. Seu nome é Lúcio, mas ele prefere ser chamado de Ceifador (apesar da Morte moderna usar uma arma).

2. Ele não "ceifa" minha alma.

3. Você deve estar se perguntando porque Lúcio foi tão grosso comigo. Bom, quando uma pessoa se torna a Morte, ela tem que passar por um processo, certo? Bem, o que ele me disse que ele teve de passar foi tirarem seu coração. Acho que está meio confuso, vou explicar melhor:

Quando uma pessoa morre, o que te dizem é que você passa por um julgamento, e que você pode ir ou pro Inferno, ou pro Céu. Mas depende de quem ir te buscar primeiro. Se aparecer um anjo, é porque se preocupam de te salvar, você é legal. Mas se a Morte aparecer primeiro... Fodeu.

Mas sim, meu irmão morreu como uma pessoa normal, quero dizer, ele morreu num acidente de carro. Ele bebeu demais, saiu da balada e derrubou o carro num rio, e a Morte foi buscá-lo. Lúcio até na hora de morrer, nunca foi uma pessoa normal, quando ele viu a Morte, ele perguntou "porque você usa uma foice? Seria mais prático uma arma. E mais estiloso, também." É. Aí, a Morte viu que ele não era normal, e o indicou para seu "chefe" para ser substituído por ele, e Lúcio foi aceito. Acharam-no ideal por seu nome, e jeito. Disseram-no que ele tinha a morte dentro de si, e que ele não tinha pena nem com a própria vida, e que isso eram características interessantes para um ceifador. Meu irmão aceitou pois ele sempre leu essas coisas sobre Inferno, e Céu, e essas coisas. E ele já tinha lido, que a Morte era livre de sofrimentos, virtude e culpas, e era uma zona neutra. Traduzindo, ele sabia que poderia manter contato com a família. Mas pessoalmente, ele só mantém contato comigo, minha mãe (católica) ficaria arrasada se o visse daquele jeito, e soubesse que ele era um servo do inimigo de Deus. Eu não ligo muito pra essas coisas, eu vou pra um lugar maneiro...

O ritual da Morte, é basicamente a retirada do coração do escolhido. No lugar, Lúcio tem um pano cheio de sangue coagulado. E também, um corte na parte emocional do cérebro. A retirada do coração, é puro simbolismo, o que importa mesmo, é o corte no cérebro que o impede de sentir qualquer coisa. Porque ele ainda me visita? Meu irmão pode não sentir, mas lembra do que é sentir.

—Lúcio, porque está aqui? - perguntei recuperando-me do mini ataque cardíaco.

—Bom, amanhã é seu primeiro dia de aula. - ele disse mudando seu manto horroroso e esfarrapado (sabe a figura, a imagem da morte? aquela caveira, com um manto com capuz? meu irmão é na verdade um homem normal, com tatuagens de caveira, com um furo pingando de sangue e um manto que parece feito de fumaça, mas quando muda, ele fica de terno mesmo) pelo seu terno preto.

—E daí? - perguntei assustado por ele ter se lembrado daquilo. Provei meu miojo, estava horroroso. Eu não sabia fazer nem miojo...

—Vim te desejar boa sorte. Lembro de quando eu entrei no primeiro ano do Ensino Médio. - ele disse fixando seu olhar no chão frio.

—Lembra se foi bom? - perguntei meio que já sabendo a resposta.

—Não lembro. Mas lembro-me de... Eu era um encrenqueiro. Minhas memórias são de risos, sim. - disse ele sorrindo pra mim. Como eu desejava que ele pudesse rir de verdade. Eu sabia que esse fardo não fazia bem pra ele.

—Ah. - eu disse. - Bom, eu já conheço geral. Estou lá desde meu 6º ano, sei quem são as pessoas. Acho que vou me dar bem.

—É. Tomara. Como está a mamãe? - ele perguntou.

—Trabalhando. Lutando, como sempre. Mas está feliz. Está namorando. - minha mãe é a Dona Lindsey. Ela é uma verdadeira guerreira, e Lúcio tinha uma relação especial com ela.

—Namorando? - ele perguntou.

—É, Lúcio. Namorar. Lembra? Lembra de você e Helen? - Helen foi a primeira e única namorada de meu irmão, ele pretendia casar com ela. Mas ela morreu, no mesmo dia que soube que meu irmão havia morrido. E até hoje, meu irmão não sabe onde ela está. A morte separa sim, as pessoas.

—Eu... e Helen? - ele perguntou.

—Talvez você não se lembre. A imagem dela está muito relacionada com o seu emocional. Você pode ter esquecido dela quase que totalmente. - falei.

—Nunca. - ele disse sorrindo.