A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 4
O mago




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         A grama gelada batia nos tornozelos de Sabrina fazendo-a tremer de frio naquela manhã. Mirian sentia o mesmo. Pareciam reféns, andando entre duas criaturas estranhas e sem dúvida poderosas. A floresta ficava mais densa conforme se embrenhavam por ela. O medo também só tinha aumentando. Ninguém as impedia de fugir. Nada as prendia ali. Mas estavam mais seguras com aqueles lifings do que com qualquer outro.

         Sabrina quis fechar os olhos, na esperança de que quando abrisse, tudo aquilo não passasse de mais um de seus sonhos malucos. Desejou novamente acordar cedo e reclamar da vida, do Almôndega e de seu cabelo. Desejou até mesmo ir pra escola e tomar bronca do professor por não ter feito a tarefa. E por fim, ouvir o sermão que ele daria para todo o resto da classe, dizendo que não podia continuar do jeito que estava e que se assim fosse, só teriam a piorar.

         “Lia” Lembrou-se Sabrina “ A uma hora dessas, deve estar todo mundo atrás da gente.”

         Mirian também não tinha mãe nem pai verdadeiros. Fora adotada por um senhor e uma senhora ricos que não podiam ter filhos, quando tinha três anos. No entanto, eles faleceram e deixaram toda a herança a Mirian. A mansão, os carros, os empregados... Tudo pertencia agora a uma garota de treze anos que só desejava ter seus pais de volta.

         “Queria saber como a Lia está” Pensou Sabrina.

         - Eu também. – Disse Mirian como se Sabrina tivesse falado diretamente com ela.

         - Também o que, humana? – Perguntou Sorah.

         - A Sabrina disse que queria saber como a professora que a adotou estava, eu só disse que também queria.

         - Mas eu não disse nada! – protegeu-se Sabrina – Eu só pensei!

         - Mas eu ouvi claramente você dizer: “ Queria saber como a Lia está”

         - Não, você não me ouviu dizer, me ouviu pensar.

         - Existem lendas – começou Dart – que contam que a guardiã da água pode penetrar na mais protegida mente, torturá-la e destruí-la. Não vá se empolgando não, humana. Não leve isso ao pé da letra. Se você souber usar seu poder de ler mentes corretamente, poderá derrotar seus adversários só usando esse poder, mas a luta levará um tempo que você, no caso, não terá se o inimigo for um tanto mais forte que você.

         - Eu... Posso ler mentes?

Dart fez que sim com a cabeça sem muito entusiasmo.

– Isso é… MUITO LEGAL!

         - Cale a boca, humana! Vai atrair lifings! – disse Sorah.

         - Desculpe.

         Continuaram a caminhada em silêncio. Passo por passo de uma caminhada sem fim. Ninguém sabia ao certo pra onde estava indo, simplesmente andavam. Quem sabe algum sinal ou pista aparecesse. Talvez sim, talvez não. Não era possível dizer. O poder de Sabrina não havia aflorado ainda e ninguém sabia de que elemento ele seria. Se de gelo, terra ou fogo. Mas para o bem de todos, era melhor que fosse fogo, pois só a guardiã deste elemento pode sentir a presença da Lágrima e indicar o caminho certo para se seguir.

         Já passavam das duas da tarde e a paisagem ao redor permanecia a mesma. Apenas árvores e mais árvores cercando-os e gotas de carvalho geladas encostando-se nos tornozelos. Apesar de que agora, esse friozinho era bem vindo pois o Sol ardia como nunca no topo do céu, clareando até a mais densa floresta e queimando a mais protegida pele. E a esta altura, a pele alva de Sabrina já começava a ficar vermelha. No dia seguinte, sem dúvida iria arder e descansar. Já os pés começavam a criar bolhas. Os tênis de Sabrina que já eram gastos antes de tudo, agora estavam enlameados, molhados e furados. Não estavam diferentes do de Mirian, apesar de ser de marca cara e ter sido comprado há poucas semanas. Naquele momento, não passava de lixo. E não impedia o aparecimento de bolhas, como era prometido na propaganda. Já Sorah e Dart andavam descalços e pareciam estar bem confortáveis assim, sem se importar muito com os galhos pontiagudos e pedras que lhes cortavam os pés.

         A camiseta do uniforme escolar de Sabrina e Mirian, antes brancas, agora pareciam panos velhos e gastos, com uma única utilidade: pano de chão. As calças tinham rasgos nas pernas e o que deveria ser um azul escuro, estava marrom de barro.

         Os cabelos das duas estavam tão sujos e despenteados que pareciam querer gritar por água.

         - Se a Lia me visse assim, teria um treco. - disse Sabrina quebrando o silêncio.

         - Pode apostar que cairia durinha no chão. – Concordou Mirian.

         - Quem é essa tal de Lia? – Se interessou Dart.

         - De onde viemos, as crianças e adolescentes tem que estudar e a Lia era minha professora. Era também um pouco minha mãe, pois me adotou. Lá na escola, todos a adoram.

         - Você tem mais professores?

Sabrina sentiu seu rosto corar. Não imaginava que Dart estivesse realmente interessado na história de sua vida. E se estivesse, era a primeira “pessoa” a estar. E logo ele, quem gostara tanto pela aparência... Com certeza não muito típica, mas que faria muito sucesso na escola junto a Lucas.

         - Tenho. Um pra cada matéria.

Eles conversavam sem olhar um no outro. Dart caminhava a sua frente e não se virou pra falar com ela. Sorah andava por último, cercando-os. Não pareceu muito entusiasmada com a conversa dos dois.

         - Você gosta deles?

         - De alguns sim. O divertido mesmo é zoar com a cara deles.

         Dart parou e virou pra ela com cara de dúvida. Obviamente ele não entendera o significado da palavra “zoar”.

– Eu quis dizer que é legal provocá-los e rir disso.

         - E você luta com eles?

         - Claro que não!

         - Não entendi. Por que alguém provocaria outra pessoa se não pra lutar? – Virou-se novamente e continuou andando.

         - Por que é engraçado.

         - Não vejo graça nenhuma em provocar e não lutar.

         - Se você vivesse lá me entenderia. – suspirou, lembrando das amigas que deixara pra trás, e das brincadeiras com Roberto e Viviane. – Só espero que ninguém mais tenha vindo parar nesse lugar. Sem proteção seriam mortos rapidamente.

         - Haha – Riu Sorah – E quem disse que VOCÊS tem quem as proteja?

         Sabrina sentiu o estômago embrulhar. Teve a sensação de que a qualquer momento, Sorah e Dart se virariam e as matariam. Não queria de forma alguma morrer naquele lugar. Queria agora estar rindo de mais uma gracinha dos meninos da classe ou até mesmo no meio de uma prova dificílima. Qualquer situação era melhor do que aquela.

         - Pare de aterrorizá-las, Sorah! – Disse Dart, dando uma dose de alívio a Sabrina.

         - Que foi? Eu não disse nada de mais. - inocentou-se Sorah – E você aí defendendo e protegendo essas humanas! Não estou mais te reconhecendo, Dart. Há tempos atrás, você seria o primeiro a devorar um bom pedaço de um humano. Vai dizer que os tempos mudaram – por mais que parecesse estranho, o tom de voz da garota permanecia o mesmo, nem aumentava nem baixava, sempre calma e serena, mas com uma ira relevante misturada.

         - Não, Sorah, os tempos não mudaram. Acontece que essas humanas carregam nosso futuro nas mãos. Destruí-las significa nos destruir também.

         - Está errado, Dart. Nosso futuro foi quebrado em três partes. Elas apenas o protegem, ou melhor, deveriam proteger. No entanto, aqui estamos nós protegendo essas coisas fedorentas que você chama de futuro.

         - Vejo que não adiantará de nada tentar convencê-la do contrário. Eu me rendo, como sempre.

         - Não seja tão dramático. Conheço-te muito bem, senhor espertinho. E você também me conhece, eu sei disso. Sei o que tens em mente e você sabe que eu sei. Mas isso não nos vem ao caso. As humanas que você tanto gosta provavelmente estão com fome. Por que não vai pescar alguma coisa pra elas? E quem sabe amanhã não esteja lhes dando de comer na boca.

         - Lá vem você com suas dramatizações.

         - E você com suas desculpas. Olha, quer saber? Estou farta.

         - E eu, cansada. – Mirian entrara na conversa de repente. - Estamos andando há horas e sequer paramos para comer.

         - Não sei como é no seu mundo, humana impertinente, mas se não reparou, estamos no meio de uma floresta. Se vir um banquete, me avise. Se bem que não se costuma ter uma mesa com comida grátis NO MEIO DO MATO! – ironizou Sorah.

         - Se não me engano, tem um rio que passa aqui perto. – lembrou-se Dart. - Podemos parar e dormir lá mesmo. Andando assim não vamos achar nada.

         Mudaram de rumo e seguiram por onde acharam que era certo. Todo o resto do caminho foi percorrido em silêncio absoluto. Sabrina permanecia a observar Dart, mal sabia ela que sob os olhares curiosos de Sorah. Mirian fazia de tudo para se livrar dos insetos que a atacavam mais que aos outros. Dava tapas pelo corpo e agitava as mão na tentativa de espantá-los ou matá-los.

         Quando chegaram ao pequeno rio que mais parecia um córrego, jogaram-se na grama verdinha da margem. Havia um espaço sem árvores de pelo menos cinco metros onde se estiraram e descansaram.

         Sabrina viu Dart se levantar de onde estava e caminhar na direção oposta ao rio até sumir no horizonte. Notou que Sorah o seguiu com os olhos mas pareceu não se preocupar sobre o assunto pois permaneceu deitada, apoiando a cabeça nas mãos, olhando para o céu. O mesmo pensamento de Sabrina passou também por Mirian.

         “Se Sorah quiser nos matar a qualquer momento, quem irá impedi-la? “

         As duas tremeram e procuraram não passar os olhos pela lifing. Qualquer coisa parecia deixá-la irritada.

         “Essa daí reclama de barriga cheia. Se eu tivesse um cara daqueles atrás de mim o dia inteiro, seria a garota mais feliz do mundo” pensou Sabrina. Para seu azar, Mirian lera seus pensamentos e caíra na risada.

         - O que foi, humana estúpida? – estranhou Sorah.

         - Nada! – Sabrina tapou a boca de Mirian que começara a chorar de rir. – Ela é assim desde que nasceu, não liga não...

         Sorah fez uma cara demonstrando nojo das duas e voltou aos seus próprios pensamentos, com aquela mesma expressão vazia que não deixava a mostra qualquer sentimento a não ser uma leve ira.

         - Façam uma fogueira – ordenou ela sem deixar de observar o céu.

         Obedeceram sem reclamar, afinal o custo disso poderia ser a vida.

         Já era noite quando Dart voltou, carregando quatro grandes peixes e uma espécie de carne estranha e escura. Após espetar os peixes com gravetos e colocá-los para assar, o belo lifing se sentou ao lado de Sorah e lhe entregou a carne estranha.

         - Eu não sei fazer comida de humanos então é melhor vocês tirarem do fogo quando acharem que está bom. É porque na minha opinião, nem precisava fritar mas, fazer o que, não é?

         As duas humanas ficaram olhando a carne que Sorah já comia de pedaço em pedaço, arrancados com as presas. Um sangue muito escuro, quase marrom, escorria pelo canto da boca a cada mordida. Logo, Dart também pegaria um pedaço e faria o mesmo. Permaneceram paradas observando-os até Dart notá-las e parar de mastigar o que estava em sua boca para engolir e responder a pergunta que ninguém fez, por medo.

         - É um lifing. Lifings comem lifings, entenderam?

         - Humanos comem humanos?- estranhou Mirian.

         - Não, lifings comem humanos.

         - Pra ser mais exata, - começou Sorah – nós, enquanto lifings, estarmos falando com vocês, é a mesma coisa que vocês falarem com um peixe. Ou seja, conversarem com o próprio jantar.

         Sabrina não pode negar que a visão dos dois tendo sangue escorrendo pelo canto da boca era repugnante. Mirian simplesmente ignorava e observava enquanto o peixe estava fritando. E como estava faminta! Nunca passara tanto tempo sem comer. À uma hora dessas, se estivesse em casa, pelo menos uns cinco empregados já a estariam servindo um enorme banquete como se ela fosse uma rainha. Nunca prepara comida na vida e não fazia a mínima idéia de como saber se o peixe estava pronto. Sorriu ao sentir o cheiro que a comida exalava. Seu estômago roncou.

         - Não acha que já está pronto, Sabrina?

         - Acho que sim.

         Cada uma pegou um peixe e começaram a comer. A fome superou a falta de tempero. Talvez nem estivesse tão bom assim, mas sentiram que foi a melhor refeição de suas vidas.

         Sorah estava sentada a uns dois metros dali olhando as estrelas, com o olhar perdido e a expressão mais serena do que nunca. Dart ao seu lado, deitado com antes ela estava, com a cabeça apoiada nas mãos, a observava. Pareciam dois primos, talvez irmãos ou simplesmente amigos. Quem sabe até algo mais. A grama perto deles, vermelho escuro, manchada pelo sangue do lifing que devoraram começara a soltar uma leve fumaça, como que estivesse prestes a pegar fogo.

         Sorah se levantou. Dart ergueu os olhos para ver aonde ela ia. Sabrina viu ela entrar no rio e ficar de joelhos dentro dele, deixando a água lavar-lhe. Mirian também a observou curiosa, tentou ler sua mente. Mas dentro dela, não viu nada mais que uma completa escuridão. E gritos. Gritos agonizantes de socorro. Assustou-se e voltou a simplesmente observá-la.

         - Aonde vai? – perguntou Dart.

Sorah não respondeu. Levantou-se e seguiu a correnteza, deixando todos ali sem saber de nada. Dart pareceu não se preocupar muito com isso, afinal, apenas deu um longo suspiro de cansaço e fechou os olhos, para abrir novamente fitando as estrelas.

         - Por que ela é tão... – Sabrina tentava puxar assunto só pra desmanchar o silêncio.

         - Vazia? – Terminou Dart recuperando-se da surpresa por Sabrina não ter medo de falar com ele. – Por que outras pessoas foram vazias com ela. É muito simples. Quem cresce com carinho e atenção por todos os lados, será uma pessoa boa e pura. Quem cresce odiada e maltratada, será uma pessoa vazia.

         - Vocês são... irmãos?

         - Não. – respondeu ele rapidamente, sem deixar de fitar as estrelas.

         - Amigos?

         - Quase isso. Não sei se o que temos é amizade. Conheço-a há quarenta anos. Sei exatamente como ela é. Perdeu pai e mãe com dez anos, o equivalente a um ano humano. O resto ela conta se quiser. Não tenho permissão de contar.

         - Você… Gosta dela?

Dart sorriu docemente, pela primeira vez.

         - Não da forma que você está pensando. Eu tenho um carinho especial por ela, mas… Não passa de amizade. Nunca tive outros amigos. Tê-la como amiga já é muita coisa.

         - E ela gosta de você?

         Ele riu com desdém

         - Se você vir algum sentimento no rosto dela me avise.

         - Mas ela parecia ter bastante ciúmes de você.

         Ele riu novamente e não disse mais nada. Permanecia a olhar para as estrelas.

         - Quando te vi pela primeira vez, achei que odiasse os humanos mais do que Sorah.

         - Os humanos são fracos, sujos e corruptos. Pisam uns nos outros para conseguirem o que querem. Eu sei disso por teoria. A Sorah sentiu essa crueldade na pele. É isso que nos diferencia.

         Mirian já estava dormindo naquela hora, alheia a toda conversa que os dois tinham.

         - Você sabe onde ela foi?

         - Não.

         Sabrina se calou. Dart também. E assim permaneceram até o sono chegar e levá-los ao abismo dos sonhos.

                                               ***

 

         Sorah voltava cautelosa para junto do grupo. Um tanto decepcionada, mas, com certeza não voltara de mãos vazias. O dia estava para nascer ainda. O vento tinha cheiro de terra molhada. Quieta, andava a passos leves até ver que Dart e as outras humanas bem mais longe do que o esperado. Parou e suspirou. Não pensou que tivesse andado tudo aquilo. Entrou na água e sentou-se, cruzando as pernas. Fechou os olhos e sentiu a leve correnteza passar por cada parte do seu corpo a não ser pela cabeça, que estava fora da água. Respirou fundo e emergiu por completo, deitando-se lá dentro. De olhos fechados, começou a meditar. Não era por que duas humanas a esperavam que iria deixar de fazer o que queria, não é? Mas... “E Dart?” Pensou ela. Notou que estava se desconcentrando e voltou a meditar.

         Longe dali, Sabrina acordava devagar e explorava o mundo ao seu redor. O rio a sua frente, a floresta atrás, a grama verdinha onde passara a noite e Dart, em pé numa pedra, procurando algo.

         - Ela ainda não voltou. -ele murmurou, alheio a Sabrina.

         - A Sorah?

         Dart se assustou com a humana que ele pensava não ter despertado ainda.

         - É.

         - Por que não vai procurá-la?

         - Ela fica melhor sozinha do que vocês. Ela pode lutar. Se eu as deixar e um lifing aparecer, serão mortas.

         - Mas você não está preocupado com ela?

         - Não, eu só… estou estranhando o fato dela não ter voltado. Tenho certeza de que está bem.

         - Você sabe pra que lado ela está?

         - Sei sim.

         - Então eu acordo a Mirian e seguimos viajem. Assim, encontramos ela no caminho e continuamos a caminhada.

         - Tudo bem. Pode acordá-la.

         E assim, Sabrina despertou a preguiçosa Mirian, que acordou dizendo:

         - Hoje tem prova de matemática?

         - Não, Mirian!

         - Então eu vou faltar. -se virou e voltou a dormir.

         Dart, nervoso, aproximou-se e retirou a espada que carregava numa bainha. Fincou-a no chão a no máximo dois centímetros do rosto de Mirian.

         - VAI ACORDAR OU NÃO VAI!?

         Assustada, Mirian se levanta num pulo, dá um jeito no cabelo e diz:

         - Estou pronta, estou pronta!

         O grupo seguiu a correnteza do rio até chegar no ponto em que Sorah meditava. A lifing ainda estava deitada e de olhos fechado. Ao perceber a presença dos outros, se sentou, em seguida se levantou, jogando a cabeça de um lado para o outro para secar o cabelo encharcado.

         - Onde você foi? – perguntou Dart com rispidez.

         - Senti uma presença benigna próximo daqui e fui ver se não era a Lagrima.

         - Por que não nos avisou?

         - Porque não tinha certeza de nada.

         - E era a Lágrima?- Mirian metera-se na conversa.

         - Não. Mas encontrei um mago que poderá nos ajudar a fazer o poder da humana inútil aparecer.

         - Me chame de Sabrina.

         - O que?

         - Sabrina – ela repetiu – é o meu nome. Não gosto que me chame de humana.

         - E eu não gosto que você exista. – retrucou Sorah, imitando toscamente a voz de Sabrina - humana inútil! Além do que, você é uma humana, por que se ofenderia por eu chamá-la assim?

         - Eu tenho um nome e quero que o use!

Sorah, pela primeira vez, perdera a expressão de serena e calma e passara a mais pura raiva. Levada por esse sentimento, puxou a espada e a encostou na garganta de Sabrina.

         - Você está muito abaixo de mim pra exigir alguma coisa, HUMANA!

         - Me mate – provocou Sabrina – e nunca terá a Lágrima que tanto deseja.

         Sorah grunhiu e colocou a espada novamente na bainha.

         - Vou fazer você sofrer muito, humana. Não é só matando que se faz sofrer.

         Sabrina engoliu um seco. Suas pernas tremeram enquanto desviava o olhar para Mirian que também tremia.

         - Deixe-a em paz, Sorah! Ela nunca te fez nada! – bradou Dart.

         - Mas a raça estúpida dela fez! Ninguém é inocente, Dart. NINGUÉM! Como um MAGO pode tratar uma criatura mal a ponto de desejar sua morte se um dos principais conceitos deles é amar a todos mais do que a si mesmo? Não existem seres humanos puros neste mundo e jamais existirá!

         - Acalme-se, antes de tudo, pelo que me lembro, você está nos levando para a casa de um mago, certo? – Dart desviara o assunto antes que virasse briga.

         - Sim – respondeu ela mais calma – mas este é realmente forte e nos será útil.

Mais alguns metros a frente, viram um casebre de madeira como o de Zieg, mas com detalhes em vermelho nas paredes e parte do telhado. Uma estátua representando vários elementos ficava em frente a casa de modo fazer-se entender que quem morava ali era humano e ainda por cima mago, assim não corria riscos de ser confundido com um inimigo, quem quer que morasse ali.

         - O que exatamente faremos? – perguntou Dart.

         - Nos tornaremos mais fortes – respondeu Sorah com um quase sorriso.

         - Então ele é um treinador?

         - Não. Só um velho mago.

         Dart não conseguiu entender as intenções de Sorah. Pensou que ela fosse matar o velho e de alguma forma se fortalecer com isso. Não seria idiotice pensar numa coisas dessas quando se referia a Sorah. Assim, manteve essa hipótese até que ela chamou o mago e lhes apresentou com expressão de sono.

         - Meu nome é Darius. Vocês devem ser Sabrina, Mirian e Dart, estou correto? – o velho sorriu carinhosamente. Tinha os cabelos já brancos mas ainda assim, cumpridos o suficientes para amarrá-los num rabo. A veste era o comum hábito de mago, laranja claro no geral, mas com um tecido mais escuro da mesma cor amarrada da altura do ombro direito. Parecia mesmo com um vestido. Ele tinha uma expressão sábia e bondosa, com rugas de quem está sempre sorrindo. Devia ter lá pelos sessenta anos.

         - Sim. – respondeu Sabrina receosa.

         Olhou-o da cabeça aos pés, buscando algum sinal de que ele pudesse vir a ser um lifing. Mas os olhos eram azuis claros, além de que ele não possuía nem garras nem presas.

         - Eu não sou poderoso, muito menos um guerreiro. Mas posso ajudá-las a fortalecer a mente. – Mirian logo imaginou que ficaria horas sentada, de olhos fechados fingindo que mediava. – É um processo muito simples. Faço um liquido de ervas e vocês tomam. Dormirão imediatamente. Suas mentes criarão um pesadelo para que vocês enfrentem. Algo que sempre temeram. Também pode acontecer de vocês terem que lutar contra alguém que gostam muito. A decisão no sonho será muito importante, portanto, façam o mais sábio. Se morrerem durante esse pesadelo, jamais acordarão, pois suas mentes terão sido destruídas.

         Sabrina, assim como Mirian, tremeu. Não queria passar por nada daquilo. Não estava preparada. Era só uma adolescente de treze anos comum e banal. Nada disso deveria estar acontecendo. Mirian, talvez não fosse ainda só uma adolescente comum e banal, pois seus poderes já foram revelados e agora ela tinha que lutar contra algo que não fazia a mínima idéia do que era. Mas Sabrina não tinha poder algum e só queria voltar pra casa.

         - Também fará a inútil se tornar um pouco menos inútil. – disse Sorah.

         Sabrina fez uma careta. Não gostou daquilo.

         - Então entrem – o mago abriu a velha porta e, sorrindo, mostrou que eram bem vindos.

         A casa cheirava a mofo, o ar era úmido e incomodava demais. Era ainda pior que a casa de Zieg. Havia apenas estatuetas e símbolos sagrados. A cama também era um monte de palha num canto.

         - Espero que não notem, mas minha casa é muito humilde. – disse ele como que adivinhando os pensamentos de Sabrina. – Podem se sentar na palha. Acho que tenho um pouco da poção guardada.

         Ele andou até um armário que Mirian não tinha nem notado existir e abrindo uma gaveta, tirou uma garrafa comum líquido verde musgo de dentro e se virou para seus convidados que já estavam todos sentados. Esticou o braço e ofereceu a Dart. O rapaz pegou e bebeu um gole percebendo bem o sabor. Fez uma careta e desmaiou, caindo pesadamente contra o chão. Sabrina observou as diferentes reações de todos. Sorah pareceu que engoliu tudo de uma vez e logo desmaiou também. Mirian tentou fingir que tinha bebido e permaneceu com aquilo na boca, mas o gosto era amargo demais e ela engoliu. Também adormeceu instantaneamente. Era a vez da jovem. Darius sorriu docemente e esticou o braço, oferecendo-lhe o restinho do líquido verde. Ela o pegou e abriu a tampa. O cheiro era pior que a aparência e, com certeza, o gosto era ainda pior. Sabrina olhou para o mago que permanecia sorrindo e bebeu tudo o que restava logo após fechar os olhos. Tinha gosto de mato misturado com coisa podre. Sentiu vontade de vomitar e faria isso, não fosse que perdera a consciência antes.

 

         Sorah se levantou devagar. Seus olhos estavam vermelhos da mais pura raiva. Exibia seus caninos por instinto de intimidação. E funcionava. Sabrina sentiu suas pernas travarem cada vez mais, à medida que a criatura se aproximava – lenta e calmamente, aproveitando o doce sabor do medo – e sorria meléficamente. Sabrina quis gritar, mas sua voz não saiu. Se arrastou para trás o que de nada adiantou. Sorah retirou a espada da bainha pouco antes de correr em disparada na direção da humana indefesa.” Eu vou morrer? Então é assim que termina?”– Sabrina pensava em seus últimos instantes” Não, aqui não! Lia, eu não vou morrer aqui!”. Sabrina se levantou e correu finalmente, determinada a não perder a vida naquele lugar. Não se virou para saber se Sorah a seguia. Simplesmente correu como nunca correra antes. E a sua frente, nada via. Não sabia se era noite ou dia, não sabia onde estava ou pra onde estava indo. Simplesmente corria”.

         Viu algo se mexendo a frente e forçou os olhos para ver melhor. Era Mirian, sentada de pernas cruzadas.

         - Ainda bem que te encontrei!  A Sorah quer me matar! – disse Sabrina ofegante.

         - E ela não é a única. – completou Mirian num tom de voz sombrio que a amiga nunca usara na vida.

Levantou-se num pulo e pôs a mão no pescoço de Sabrina que estava paralisada com a situação. Começou a apertar enquanto a vítima implorava para que parasse.

         - Por fav... Or me sol...te!

         - Só quando estiver sem ar, fria e morta!

         Sabrina olhou para os lados enquanto sentia que sua consciência novamente se esvaía. Lia estava perto dali observando a cena.

         - Me… ajude… - No entanto, Lia permanecia quieta olhando. Com o mesmo cabelo castanho escuro penteado para o lado que a vira pela última vez. Com o mesmo uniforme de professor com o emblema da escola costurado. O rosto sereno e despreocupado indicava que era sua morte que ela desejava.

Sabrina chorou fragilmente. Estava a ponto de desistir. Não adiantava seguir em frente se quem ela mais gostava tentavam lhe matar. “Não vou deixar tudo acabar aqui!” Concluiu.

         Fechou as mãos e forçou os olhos. Sentiu que tinha uma força dentro de si. Quis usá-la. Percebeu que era capaz de controlar essa energia. A fez crescer a ponto de explodir dentro de si um enorme poder que se transformou nas chamas. Estas atingiram Mirian e Lia.

         - Você não é minha amiga! E você também não é Lia! Por que elas nunca fariam isso comigo! – bradou Sabrina.

         As duas criaturas que se passavam por amigas sumiram no ar após estas palavras. E ela estava novamente envolta num breu profundo. Sentiu-se engolida por ele. Fechou os olhos e quando os abriu, a realidade a abraçou.

 

         - Finalmente acordou, humana inútil! – Sabrina assustara-se com Sorah devido ao pesadelo. – Você foi a última a acordar e, vejamos…

         A lifing puxou o colar da Sabrina para conferir se ela havia despertado seus poderes. Mas ele permanecia igual, sem nenhuma mudança aparente.

         – Continua sendo apenas uma humana patética e comum. Estou começando a achar que você roubou esse colar.

         - Eu não roubei nada!

         - Prove!

         - Hei, hei! Parem as duas! – interveio Dart. – Sorah, ela é inocente até que se prove o contrário.

         - Ninguém é inocente, Dart. Quando você vai aprender?

         Sabrina deixou os dois conversando e foi falar com Mirian que estava sentada no meio da palha pensando.

         - Sabrina… Me promete uma coisa?

         - Claro, Mirian. O que é?

         - Nós nunca mais vamos brigar.

         - Por que está me dizendo isso?

         - É que no meu sonho, eu lutava contra você. E foi a pior coisa que eu já fiz na minha vida.

         Sabrina quis contar seu sonho, mas simplesmente ficou ouvindo os relatos da amiga. Em determinados pontos, Mirian quis chorar, mas segurou o choro e continuou contando cada coisa que “Sabrina” havia lhe dito no sonho.

         Notaram que Darius não estava presente somente quando ele chegou trazendo consigo uma caixa de madeira parecida com uma caixinha de música, daquelas que se abre e uma bailarina dança ao som de uma musiquinha.

         Ele sorriu como sempre, ao ver todos acordados.

         - Acho que estão procurando por isso. – ele abriu a caixa e mostrou a todos seu conteúdo. Era uma parte da Lágrima Escarlate. Os olhos de Sorah brilharam.

         - Nos dê isso!

         - Duas de vocês são guardiãs. Deveriam proteger isso, no entanto agora ela está dividida em três pedaços inúteis. Não acho que a mereçam. São novas demais para carregarem essa responsabilidade. Por isso, devem provar que podem protegê-la. São um grupo agora. E como tal devem agir. Não são apenas quatro pessoas andando juntas. São um grupo. Apesar disso vocês brigam e isso só causará problemas. Provem que podem viver em harmonia e eu darei a Lágrima.

         - Por quanto tempo? – perguntou Dart.

         - A pergunta correta seria “Em quanto tempo”. Têm um dia para se tornarem pacíficos uns com os outros.

         Sorah transbordava em raiva. Por ela já teriam matado aquele velho e pego a pedra. Mas agora teria que ser “amiga” daquelas humanas que tanto odiava. Sabia que seria impossível. Nunca teve um amigo sequer.

         - Dart, vamos sair logo daqui. Esse cheiro é insuportável.

E os dois saíram.

         Antes de Sabrina e Mirian os seguirem, chamaram por Darius. Tinham uma dúvida martelando-lhe a cabeça.

         - Mesmo depois disso tudo, meus poderes não apareceram.

Darius sorriu.

         - Tudo tem seu tempo, não se preocupe com isso. Agora vá. Um grupo sempre anda junto.

 

                                               ***

 

         - SABRINA, CUIDADO!

         Dart saltou por cima de Sabrina e atingiu com sua espada, um imenso lifing gordo e corpulento que a ameaçava. Ele não morreu, apenas cambaleou e soltou um rugido incrivelmente alto de raiva. Sorah se preparou para lutar também. Mirian foi ajudar Sabrina a se recuperar do susto.

         O lifing era muito forte. Tanto que nem Dart e Sorah juntos conseguiam muito efeito em seus ataques. Com golpes simples, ele os arremessava longe. Numa dessas quedas, Sorah parou para brigar com Mirian antes de voltar a lutar.

         - Você tem poderes pra quê, sua inútil!? Vai lutar ou ficar aí vendo a gente morrer? E se nós morrermos, lembrem-se que as próximas serão vocês!

         Mirian se levantou apesar de não saber o que fazer. Foi até o lifing e fez a força dentro de si explodir como fizera quando descobriu esse seu dom. Era algo bom e viciante. A vontade de fazer a energia queimar até o fim vinha junto com o poder de controlá-la. A concentração era essencial para que nada fugisse ao controle. Tudo isso para que a ilusão de uma onda atingisse a mente do lifing, fazendo-o pensar que estava se afogando. Pena que durou pouco e ele se recompôs, pronto para outra.

         Sorah saltou e levou um soco em pleno ar. Caiu violentamente contra o chão impossibilitada de se levantar. O lifing aproveitou e foi em sua direção.

         - SORAH!- gritou Dart. No entanto, é Sabrina quem chega primeiro, a tempo de salvá-la.

         E novamente aquela sensação de poder. O controle sobre a força que emanava dentro de si e a vontade de usar essa energia. O corpo foi esquentando até que de suas mãos saíram labaredas de fogo fortes o suficiente para machucar o lifing e salvar Sorah.

         - Por que fez isso, humana?

         O lifing, raivoso, vinha na direção de Sabrina enquanto ela, virada de costas para ele, pensava numa resposta.

         – CUIDADO! – gritou Sorah levantando-se e retalhando o monstro a tempo de retribuir o favor de Sabrina.

         Ela se virou novamente na direção de Sabrina enquanto os outros se aproximavam.

         – Por quê?

         - Pelo mesmo motivo que você, eu acho. - respondeu a humana.

         - Não, não, – riu Sorah. - não foi pelo mesmo motivo que eu, tenha certeza disso. Só te salvei por que seus poderes finalmente apareceram. Assim fica mais fácil achar a Lágrima. E também por que quis saber seu motivo.

         - Acho que por que… Somos um…grupo?

         Sorah olhou com expressão de deboche para Sabrina. Sua face mudou automaticamente para uma surpresa muito grande quando baixou os olhos. Sabrina assustou-se, pensando haver algo em seu pescoço. Apenas de baixar a cabeça, notou um brilho especial na bolinha de vidro. Havia uma chama queimando incessantemente dentro dela.

- Eu nunca vou entender os humanos. – concluiu Sorah se virando na direção de Dart, que já chegava perto delas, junto à Mirian.

- Estão bem? – perguntou o rapaz.

- Parece que os poderes da humana finalmente apareceram.

Dart deu uma boa olhada no colar. Sabrina se sentiu como um projeto de ciências, tendo tantos a analisando.

- Aêêê! – comemorou Mirian – Parabéns, Sabrina!

Passada toda a comemoração, e toda a felicidade também por parte de Sabrina, que se sentia um pouco mais útil ao time, Dart se pronunciou, mostrando-se enjoado de conversar.

- Vamos voltar. Está anoitecen…

         Dart interrompeu-se e parou para ouvir um som que vinha de trás das árvores.

         - Quem está aí!?


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