A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 33
Uma festa de ódio


Notas iniciais do capítulo

Big fucking Capítulo, mas muita coisa acontece nele



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Passaram a segunda-feira pós-escola preparando-se para o dia seguinte. Após pensar muito, Sabrina convencera-se de que seria uma boa festa, uma chance de descansar. Receberia finalmente a Lágrima Escarlate direto em suas mãos. A sensação de dever cumprido era tão grande que achara pouco a comemoração e as congratulações por parte dos outros.

Benfred prometera estar no baile. Apesar de que muitos não acreditavam que ele poderia conseguir vestes de gala a tempo. A menos que roubasse. O que vestia no dia em que se encontraram dava a dizer que não era um homem muito rico.

Sorah tinha sumido de novo. Mas essas idas e vindas já se tornavam rotina. Sabiam que na hora certa ela apareceria então pouco se importavam.

Dart não foi junto aos demais ajudar a escolher as vestes que usariam. Estava, provavelmente, mandando vir de seu reino suas próprias roupas. Mirian pagaria as roupas de Sabrina e dos guerreiros. Queria agradecer pelo que Lia lhe fizera, acolhendo-a como uma filha.

Andaram por todo shopping, indo de um lado para o outro, consultando preços, experimentando vestidos, dando palpites, trocando de roupa. Belthor escolhera rapidamente um smoking não muito caro. Não gostava de depender do dinheiro de outra pessoa. Íris já tinha se decidido por um determinado vestido, mas Belthor não permitiu que comprasse.

- O decote está muito grande. Não é digno. – aconselhou.

Íris deu risada. Pareciam marido e mulher, com duas filhas e uma tia.

Seguiram andando até os olhos de Sabrina pararem num vestido inteiro vermelho, de tecido fino, com um pano de ceda mais escuro amarrado na cintura, deixando-se cair até o joelho da manequim.

Mirian sorriu ao ver o brilho nos olhos da amiga. O grupo entrou na loja e saiu com a vestimenta, deixando lá dentro quatrocentos e cinqüenta reais.

O vestido que Mirian escolheu era azul escuro, muito fino, cheio de detalhes e renda no decote. Ela tinha realmente um ótimo gosto, afinado por anos de muito dinheiro. Era o vestido mais caro e belo da loja. Cerca de meros mil e duzentos reais gastos sem o menor ressentimento.

A única coisa que Íris e Belthor concordaram foi na beleza e delicadeza de um vestido branco, muito bem costurado, em lugar de destaque numa das lojas. Não saíram de lá sem ele.

Mia não tinha muita dificuldade em escolher suas roupas. Acabou optando por um bom vestido lilás que ia até a altura dos joelhos.

E estavam todos prontos para a festa.

Dormiram naquele mundo mesmo. O tal baile só ocorreria de noite e ainda tinham de ir à escola naquela terça-feira que prometia muitas coisas.

 

                                                 ***

 

- E por falar em festa… onde vai ser essa coisa mesmo? – teve a curiosidade Mirian.

- É numa belíssima construção a cinco quilômetros ao norte do estádio. Honestamente, estou pra ver lugar mais belo. – admirou-se Belthor – Lifings são assassinos impiedosos, mas devo admitir que fizeram um ótimo trabalho naquele lugar. Tudo muito bem folhado a ouro, iluminação perfeita, engenharia bem trabalhada. Parece um templo grego com decoração budista.

- Uma bela festa… belas roupas… hoje parece que será um ótimo dia. – comemorou Sabrina.

Terça-feira. Apenas mais um início de semana para milhares de estudantes. Mas para duas humanas, aquele dia prometia muito mais. Tempo promissor tanto à felicidades quanto a intrigas.

Já se preparavam para se arrumar. Usavam da eletricidade daquele mundo para tomar um banho quente. Ainda era duas da tarde e a festa começaria às oito. Mas estavam tão ansiosas que desde já se arrumavam.

Quando o relógio acusou seis da tarde, partiram carregando suas roupas e maquiagens. Atravessaram o caminho até a torre lentamente. Além de terem bastante tempo, já tinham tomado banho e não queriam suar. Belthor era o único despojado que ficava apressando as “noivas”.

Quando chegaram na entrada da torre, depararam-se com Dart, de braços cruzados, encostado na imensa construção de pedra que era a “masmorra”.

- Se vão se arrumar, - avisou o lifing – usem meu quarto. Ou o de Mirian.

- E por que não o de Sorah e Sabrina? – estranhou Mia.

- Porque lá tem uma equipe de nove pessoas arrumando Sorah para festa. Vindas todas do reino da Noite. Mandados por Kiev. – Dart não escondeu a repulsa ao pronunciar esse nome.

- Nove pessoas? – espantou-se Sabrina – E eu achando que seria ótima a ajuda de Íris, Lia e Mirian…

 

Sete horas. Horário em que todas as mulheres estão se arrumando, decidindo os pequenos detalhes, como cabelo, maquiagem. Os vestidos ainda estavam estendidos na rede. As garotas ainda tentavam ajudar Sabrina a arrumar uma forma de controlar seu cabelo. Era simples, muito simples. Tinha crescido nos últimos tempos por falta de cuidado, mas mesmo assim não tinha como prender, e solto era muito normal. Depois de muito tentar, Íris, a que mais cuidava da garota, sugeriu presilhas. Todas as outras olharam para ela, quase perguntando por que não dissera aquilo antes.

Enquanto elas já se decidiam sobre como iriam ficar, Belthor e Dart ainda conversavam sobre qualquer banalidade à porta da torre. E a maioria das banalidades girava em torno das mulheres. Mesmo que o humano odiasse a presença do lifing, eram os dois homens, e como sempre, concordavam nesses assuntos.

Belthor olhou em seu relógio de pulso e suspirou.

- São sete e meia… vou subir e me aprontar. Desço o mais rápido que puder e você sobe.

Dart concordou com a cabeça, sem muita emoção. Em seguida voltou a fitar o céu e admirar a forma com que a luz abandonava o dia, dando lugar à escuridão da noite. Mas no momento, não estava nem claro nem escuro. Era como se luz e trevas dançassem e se misturassem numa grande aquarela.

Baixou a cabeça suspirando alto. Sorah já não tinha motivos para estar entre eles, uma vez que o torneio acabara. Aquela noite podia ser a última que a via.

Em impressionantes dez minutos, Belthor desceu trajando seu smoking. Apesar de que passava tanto tempo com aquele manto negro que nem fazia muita diferença.

Dart subiu sem muita pressa. Tinha conseguido que um mensageiro de seu reino trouxesse as trajes de gala de rei. Não que necessariamente tivesse pedido roupas muito especiais. Mas parece que sua mãe tinha feito questão de lhe enviar aquelas.

Uma espécie de smoking. Ombreiras com chamas azuis davam um toque de classe jovem. Um cinto desta mesma cor – que predominava nos pequenos detalhes – separava a parte de cima das calças simples. Uma parte em especial da qual gostou foi de uma espécie de capa, presa na cintura, com os mesmos adornos de chamas azuis das ombreiras, não chegava aos joelhos. Dava um toque de requinte.

Uma roupa daquelas não merecia seu penteado, como logo imaginou. Seus cabelos estavam sempre na direção que o vento indicava. Mas daquela vez, fez questão de arrumar água para jogar sobre eles e dar um jeito de fazê-los parar no lugar, sem perder seu ar de rebelde, pois mesmo assim, alguns fios caíam sobre a face. Estava tão acostumado com isso que nem percebeu.

Já as mulheres desceram uma a uma quando o relógio anunciou oito e dez.

Belthor parou os olhos em Íris e ali os deixou. Estava realmente muito bela, com o vestido focando a delicadeza de seus traços. A maquiagem, simples e bem escolhida dava leveza ao rosto.

- Está belíssima. – elogiou Belthor.

Dart aproximou-se de Sabrina, admirado. Estava muito diferente da menina normal que aparentava. Uma dama, assim a julgar. O vermelho caíra muito bem com seus cabelos e nos olhos, uma sombra ressaltava o verde brilhante.

- Está muito bonita. – elogiou o rapaz, fazendo-a ficar da cor do vestido.

Na verdade, provavelmente Sabrina foi quem mais admirou Dart, e não ao contrário. Se havia sido possível ou não, o rapaz esta muito mais bonito naqueles trajes que com vestes normais. Seus olhos azuis brilhavam e ele parecia uma fotografia. O smoking diferente caía-lhe como uma luva e lhe dava um ar mais adolescente, porém sem perder a classe.

Mirian olhou para Mia. As duas riram olhando os dois casais. E ainda fizeram graça:

- Está muito bonita, Mirian. – brincou Lia, tentando fazer os dois rapazes lembrarem que também existiam.

- Você também Lia. – agradeceu em tom de teatro, fazendo reverências.

 

Foi longa a viagem da torre até o local da festa. E demorada porque ninguém queria suar. Apesar do frio da noite que ameaçava todos com uma forte chuva, iam devagar, aproveitando o vento. Quer dizer, os homens aproveitavam o vento. As mulheres constantemente reclamavam que ele iria desmanchar sues penteados. Não demorou muito e o cabelo de Dart já estava conforme a brisa os deixava.

Avistaram um ponto brilhante ao longe. Era uma luz dourada, bela. Conforme se aproximavam, ela ia tomando forma de uma imensa e magnífica construção. Havia pessoas muito bem vestidas à frente. A grama recém cortada e muito verde que rodeava o local dava a impressão de ter sido cuidada só para aquela noite.

Só chegando muito mais perto é que dava pra notar algumas orelhas pontiagudas, garras, presas, olhos diferentes e amedrontadores, mas que sorriam cheios de poder, comemorando a belíssima noite.

Vestidos caros, bem feitos, cheios de pedras preciosas incrustadas apenas para combinar com os extravagantes colares, brincos e anéis. As mulheres lifings não eram muito diferentes das humanas que conheciam.

Reconheceram a garota que ficava na entrada analisando quem podia e não podia entrar. Era a juíza Fi, com um vestido curtíssimo e um penteado feito às pressas. Além de muita maquiagem no rosto.

Ela olhou bem para Dart e mandou que entrasse. Mas parou os demais.

- E então, humanos, por que devo deixá-los entrar? – perguntou sem muita emoção.

- Por que eu sou a vencedora do torneio. – orgulhou-se Sabrina.

Fi olhou bem para Sabrina, dos pés a cabeça. Certamente a reconhecia, mas mesmo assim não dava muito valor.

- E onde está Sorah Ketsu? – perguntou estranhando a não presença da parceira da humana.

- Acho que já vem… - respondeu incerta.

- Então entre. O prêmio será dado em breve, lá pelas nove.

Sabrina passou por ela e deu a mão para Dart.

- E quanto a vocês? – perguntou a juíza aos que ainda restavam.

- Eu participei do torneio. – avisou Mirian, já entrando sem ser impedida.

- Não há regras que impeçam nossa entrada, certo? Estamos bem vestidos, não estamos? – sugeriu Belthor.

Fi bufou e fez sinal para que entrassem. Provavelmente desejava estar lá dentro aproveitando a festa.

 

Era um imenso salão com entalhos dourados, chão de mármore, pilastras decoradas, flores vermelhas em alguns suportes. Uma sala circular com cerca de quarenta metros de raio, como calculou Sabrina, tendo seus olhos preenchidos de luz e admiração. Uma musica era tocada numa espécie de piano, numa elevação que era o palco. Outros instrumentos estranhos permaneciam sobre cadeiras. Provavelmente os músicos todos ainda não haviam sido requisitados. De qualquer modo, a musica era melódica e bem tocada. Não dava pra acreditar que era de um lifing.

Algumas mesas eram ocupadas por lifings da nobreza dos três reinos. Podiam ser facilmente reconhecidos por suas vestes. Nas do reino Antigo predominava a cor azul. Reino da Noite prevalecia as cores preto, vermelho e branco, com algum azul realmente escuro. E do Fogo, como não podia deixar de ser, a cor vermelha.

Dart olhou para Sabrina, com seus olhos encantadores. Sorriu pra ela, que corou um pouco.

- Vamos dançar? – pediu ele, estendo-lhe a mão.

A humana nunca tinha dançado. Não fazia a menor idéia de como fazê-lo. Mas não podia recusar a aqueles olhos.

Belthor também chamou Íris pra dançar. Já eram mais experientes e se aventuraram no meio dos lifings.

Enquanto isso, Mia e Mirian riam de algumas figuras, sentadas numa das mesas.

Sabrina cometeu apenas alguns poucos erros, mas acabou relaxando e aproveitou a música, a dança e o rapaz. Era uma boa noite na qual iria se concretizar sua vitória ao receber a Lágrima Escarlate.

Passaram-se quinze minutos de descanso e mais dança até que a música fora interrompida. Os lifings entreolhavam-se ansiosos. Mirian e Sabrina olharam para os guerreiros, que também pareciam não saber o que estava acontecendo.

Dart também se mostrou ansioso. Olhou para a porta, mesma direção na qual todos os outros presentes olharam.

Uma musica de guerra começou a ser tocada. Os humanos encheram-se de medo.

- Habitantes do Reino do Fogo! – anunciou a juíza, tendo como resposta a movimentação de grande número de lifings com vestes vermelhas – Aclamem vosso rei!

Todos do local que pertenciam a este reino agitaram-se e foram até a entrada, formando duas filas que davam passagem a quem ia entrar. Os demais lifings se sentaram em grande desapontamento.

A música ficou mais alta, com a ajuda de tambores e outros instrumentos, tocados com grande fervor.

A figura altíssima e imponente caminhava com a postura ereta. Ele era enorme. E de humano só tinha as formas básicas. Sua pele era negra e dura. Tinha algumas escamas. Vestia uma armadura vermelha e era puro músculo. Devia medir cerca de dois metros e trinta. De um ombro ao outro eram mais de um metro. A face carrancuda parecia ser impedida de sorrir. Não sabiam se tinha cabelo, pois o capacete que usava impedia qualquer visão. Não vestia uma roupa de classe, pois seu corpo havia sido moldado para a guerra. Ficaria horrível trajes de festa em tal criatura. Sua energia preencheu o lugar e instalou-se no coração de todos. Era poderosíssimo. Não havia a menor dúvida.

Ele foi caminhando lentamente no corredor que os grandes generais de seu reino formavam, ajoelhados e de cabeça baixa.

Olhou para todos com enorme desdém. Foi até uma área reservada, onde havia um enorme trono. Sentou-se ali. Os generais voltaram a seus lugares e a musica normal recomeçou.

O coração de Sabrina pareceu se livrar de correntes de medo quando a festa voltou ao normal.

Porém não demorou muito, a música parou novamente. Cerca de cinco minutos da entrada do rei, a melodia voltou-se ao tom de guerra. Todos os presentes, menos os do reino do Fogo voltaram-se à entrada novamente. Mirian pode ver certa arrogância na face do rei que já estava ali.

- Habitantes do reino Antigo! – anunciou ela, deixando todos os demais que não estavam com roupas azuis sentarem-se desapontados – Aclamem o representante de teu rei!

Dart puxou Sabrina, confusa até a entrada. Ela não fazia a menor idéia do que ele queria. Na verdade, imaginava que ele fosse o rei daquele reino.

Os generais fizeram a mesma fileira, metade de um lado, metade do outro, ajoelhados.

Dart não se incluiu nestes. Estava sorrindo, cheio de ansiedade. Sabrina quase podia ouvir seu coração batendo rápido.

Muitíssimo diferente do rei do reino do Fogo, adentrou no salão uma criança. Um jovem pequeno, de aproximadamente dez anos. Já tinha alguns traços de desdém digno de um rei em seu olhar, mas parecia mais com receio disfarçado. Atrás dele, vinha uma mulher alta, de cabelos azuis, de meia idade. Não era muito bela, mas expressava coragem e dignidade no olhar.

- Veja, - pediu Dart – aquele é meu irmão, e a mulher é minha mãe.

Sabrina ficou encantada em conhecer os parentes de Dart. Sorriu satisfeita. Ele se distanciou dela e foi até o fim da fileira que os generais formavam. Ficou de pé esperando que os dois caminhassem até ele.

A mãe de Dart deu um longo sorriso ao vê-lo. Não apressou o passo, mas era claro sua vontade de fazê-lo. Teve de segurar o jovenzinho para que este não corresse até o irmão.

Para os outros parecia mais uma demonstração de rebeldia. Mas era ótimo reencontrar os parentes.

Quando ficaram realmente próximos, Dart abraçou a mãe e despenteou o irmão.

- Estou muito feliz de te ver de novo, meu filho. – disse a mulher, quase chorando.

- Irmãozinho! – felicitou-se o jovem representante de rei.

- Sabe que deveria ser você a entrar, e não seu irmão. – lembrou a mãe de Dart.

- Sabe que nunca gostei muito de chamar atenção. – desculpou-se Dart.

- E quanto à garota pela qual disse que teria de voltar quando foi nos ver. Quero conhecer nossa futura rainha.

- Calma mamãe. Tudo em sua hora.

Ela sorriu em concordância. Prosseguiu até seu lugar reservado com seu filho menor.

 

Dart voltou-se a Sabrina e os dois se sentaram à mesa junto à Mirian e Mia.

- O reino da Noite não terá representantes, não é? – indagou Mirian.

- Não sei… - respondeu Dart verdadeiro – Acho que Sorah vai querer entrar como todos os outros.

- Ela deve ser estranha trajando vestes de classe. – murmurou Belthor.

E no momento em que disse isso, a musica parou novamente.

Os olhos se voltaram à entrada. Ninguém imaginava que o reino da Noite também estaria presente. Sabrina podia ver os olhos dos habitantes desse reino se encherem de brilho e orgulho com a voz de Fi ecoando pelo local. Dart também se assustara. Ele e os humanos se levantaram, juntamente os demais.

- Habitantes do reino da Noite! Saúdem teu rei e tua rainha.

Dart sentiu algo em seu estômago revirar e dar uma cambalhota. Seus olhos adquiriam expressão incrédula.

Os generais e povo em geral deste reino pareciam estar esperando há séculos por este momento. A volta do rei e da rainha. Era inacreditável.

Houve grande movimentação por parte desse reino. Todos se curvaram, orgulhosos e cheios de esperança.

Sorah entrou primeiro. Tinha um brilho próprio radiante. Não parecia uma lutadora assassina. Seu cabelo estava preso com uma presilha de brilhantes. A pele mesmo de longe se notava estar macia e bem cuidada. A maquiagem era simples, porém muito bem feita. Os brincos eram de duas pedras consideravelmente grandes de diamantes. O vestido, belíssimo, parecia ressaltar a própria beleza de Sorah. Todas as mulheres presentes pareciam maltrapilhas comparadas à magnificência que emanava da lifing. Seus olhos cheios de desdém olhavam a todos de cima, vasculhando o local em busca de qualquer olhar que a desprezasse. Se por acaso encontrasse, o destruiria imediatamente, num único piscar de olhos. Dart não conseguia pensar que aquela podia ser a última vez que a via…

Kiev veio em seguida, com um tipo de smoking cheio de chamas em vermelho. Só que estas chamas eram feitas de rubis. E iam clareando até serem feitas de diamantes em suas pontas. Usava uma capa negra, desenhada com o que seria a bandeira de seu reino. Um dragão nas cores preto, que significava a noite, vermelho, que significava o sangue, e branco, provinda da neve.

Kiev levou Sorah com o braço entrelaçado até a parte reservada aos dois.

E a música recomeçou.

 

Dart não conseguiu esconder o desgosto em vê-la com aquele Kiev. Mas chamou Sabrina para uma nova dança, a fim de esquecer a existência de Sorah. Não conseguiu.

Viram a juíza se aproximar do palco e olhar para todos que dançava. Limpou a garganta, fazendo os presentes prestarem atenção nela.

- É com muito prazer que entrego o prêmio de vencedor do torneio que se passou à Sabrina e à grande rainha do reino da Noite, Sorah Ketsu!

O local encheu-se de aplausos, mesmo por parte dos habitantes de outros reinos.

Sorah levantou-se de onde estava e subiu ao palco. Belthor mandou que Sabrina fizesse o mesmo.

As duas era vencedoras. As duas lutaram. Mas tinham olhares tão diferentes! Sorah olhava com desdém, não querendo estar ali. Enquanto Sabrina desviava-se dos olhares dos demais lifings, com receio.

A juíza Fi aproximou-se das duas com três caixas.

- A Lágrima foi partida e não pode ser remontada. Creio que saibam disso. – avisou às duas – Portanto cada parte está dentro de uma caixa.

Sabrina fez questão de conferir o interior de todas elas. Sabia que estavam ali, pois podia sentir sua presença. Sorriu, com uma ótima sensação de trabalho cumprido.

Sorah voltou a se sentar. Mas Kiev logo a chamou para dançar. Sabrina voltou-se a mesa e entregou as coisas a Belthor. Estava feliz. Conseguiu fazer o impossível. Vencera! Por mais que ainda houvesse Zigor em seu caminho. A surpresa ao ver Sorah dançando como se fizesse aquilo à anos, e com tamanha leveza nem a abateu muito.

 

Levaram grande susto quando, como se surgido do nada, um homem cutucou Íris. Ela se virou assustada e espantou-se ao reconhecer o rapaz muito bem vestido.

- Benfred?

- Sim, sou eu, minha doce Íris. – cumprimentou Benfred, ajoelhando-se aos pés dele e beijando as costas de sua mão, exatamente como fizeram antes.

- Onde roubou esse terno? – acusou Belthor, irritado com a intimidade dos dois.

- Eu tinha algum dinheiro guardado em minha cidade. Foi o que consegui comprar. – explicou-se o rapaz.

 

Só Dart podia saber o conflito interno que rodeava sua cabeça. Sorah estava estonteante. Mais bela do que nunca. Sua vontade era fugir dali com ela e esquecer tudo que havia acontecido. Mas sabia que isso não era possível.

Não suportando mais, assim que a viu sentando-se de volta em seu lugar, quando Kiev voltou-se a conversar sobre política com alguns homens de alto posto em seu exército, levantou-se e ia caminhando até lá, quase que instintivamente. Mas Sabrina o parou.

- Onde vai? – quis saber, estranhando a movimentação.

- Eu… vou falar com Sorah. É só uma dança, eu prometo. – avisou Dart, quase numa desculpa.

Sabrina não tentou impedir. Sabia que de nada adiantaria. Mas temeu pelo pior.

O rapaz se aproximou dela, olhando-as nos olhos. Kiev não tinha notado. Estava virado para o outro lado.

Sorah olhou bem para a figura de Dart. Suspirou. Sua face de desdém sumiu e deu lugar a uma expressão de tristeza, desapontamento. Ficou esperando o que ele diria.

- Quer dançar? – pediu o rapaz – Em nome dos velhos tempos.

Sorah pensou alguns segundos, suspirou e se levantou, olhando para Kiev. Este se virou na direção dela naquele momento. Ao contrário do que Dart imaginava, ele apenas fez uma cara de quem diz “esteja ciente do que faz”, mas sem puni-la, nem criticá-la.

Dart podia sentir o olhar de Sabrina pesando sobre sua cabeça. Mas Sorah dançando perfeitamente em seus braços o fez se esquecer de todo o restante do mundo.

Mais da metade da música foi dançada sem dizerem nada. E para a surpresa dela, ele finalmente tomou coragem para começar um assunto.

- Como vai? O que tem feito? – perguntou de forma cotidiana, fingindo cordialidade.

- Muito bem. – respondeu ela no mesmo tom – Tenho treinado com Kiev. E você?

- Um tal de Benfred apareceu… disse que pode nos ajudar a derrotar Zigor.

- Benfred? Eu me encontrei com ele. Disse que precisava falar com Íris… De qualquer forma, aceitaram a ajuda dele?

- Não tínhamos mais opção. É melhor do que não ter esperanças.

Ficaram em silêncio alguns segundos, até que Sorah recomeçou a conversa.

- Quanto tempo Sabrina vai durar?

Dart não compreendeu muito bem o que ela queria com aquilo, e apesar dela dar a impressão de estar tomando coragem para dizer isso a muito tempo, ele foi tomado de surpresa pela pergunta.

- Estou apaixonado por ela. – respondeu, após pensar um pouco.

- Disso não tenho dúvidas. Mas eu não me esqueci do seu conceito de paixão. E dizer estar apaixonado é o mesmo que incluí-la a tantas outras mulheres.

- Tem razão, como sempre. Paixão vem e vai, é passageira, mas não quer dizer que não seja verdadeira. Sentimento forte, porém repentinamente acaba e se esquece. É sim, eu já sabia que Sabrina era apenas mais uma paixão.

- Quanto tempo ela vai durar?

- Por que quer saber?

- Quero saber a intensidade dessa paixão.

- O quanto for necessário. E você? Pretende voltar a seu reino?

- Logo depois que tudo isso acabar.

- Vamos então nos separar de vez?

Sorah não respondeu. Repousou a cabeça no peito de Dart, cheia de tristeza. Ele a acolheu, seguindo os passos da dança ritmada e automática.

 

E no instante seguinte, ele levantou a cabeça de Sorah com dois dedos, olhou-a nos olhos, e cheio de pré-arrependimento, a beijou.

 

Kiev olhou os dois e não se moveu. Sua face só adquiriu expressão de extrema raiva quando notou que Sorah tentava empurrá-lo.

 

Quando notou, Dart já estava sendo arremessado contra algumas mesas vazias, com um lado do rosto dolorido.

 

As cores pareceram se apagar. Não havia mais música, nem pessoas. Nem cores nem ações. Só tristeza e ódio.

De onde estava, Dart procurou imediatamente por Sorah. Mas esta estava em estado traumático, com olhos vagos, fixos no nada. Uma lágrima desceu fugindo de sua confusão. À sua frente estava Kiev, com um pulso ameaçando outro golpe.

De seu lado direito estava Sabrina, já em prantos, correndo até a saída.

Ao bater os olhos em Dart, Sorah se assustou e correu. Saiu do salão e fugiu na direção oposta à de Sabrina.

A movimentação fez os demais presentes estranharem o que ocorria. Mas nada tinha sido devagar o suficiente para que acompanhassem. Quando viram, havia um rapaz caído no meio das cadeiras, o rei do reino da Noite de pé no meio do salão e nada de mais que fosse estranho. A festa dos demais presentes ainda se estenderia até a madrugada.

Mas para aqueles três, a noite terminava ali.

 

Dart se levantou e correu até a saída, aproveitando os curtos momentos em que não precisava escolher um caminho.

Lá fora, sendo preenchido pelo ar da noite, notou que já chovia. Olhou para os dois lados. Sabrina ou Sorah? Atrás de qual das duas deveria ir primeiro?

Ele olhou novamente para o interior do salão. No meio de todas aquelas pessoas que dançavam alheias, Kiev o observava como uma coruja prestes a voar sobre um rato. Isso, e o fato de que era com Sabrina seu compromisso, o fez correr para o lado da humana.

A chuva cortava seu rosto como agulhas geladas. Talvez fosse devido a esse frio, mas Sabrina não tinha ido muito longe.

Na verdade, quando o lifing a encontrou, ela ainda corria sem se importar com a lama que já sujava grande parte de seu vestido. A maquiagem escorria por sua face um pouco pela chuva, um pouco pelas lágrimas. E o cabelo já estava completamente molhado. Corria sem lugar pra ir, sem senso de direção, sem a menor vontade de olhar pra trás.

Dart gritou seu nome, mas fora abafado por um trovão. Mal podia enxergá-la no meio da escuridão da noite. Chamou-a novamente, a plenos pulmões. Então percebeu que era ela quem ignorava.

Apertou o passo e segurou o braço da humana. Todo esse esforço o fez pensar no que estava fazendo. Correndo na chuva cheio de culpa por causa de uma simples humana? Porém, esses pensamentos o abandonaram assim que olhou em seus olhos, que desviavam dos próprios.

Foi preciso segurar a face da humana com as duas mãos para que ela o encarasse diretamente. Apesar de que não havia nada a dizer. Eram apenas quatro olhos no meio da confusão de milhões de gotas geladas caindo do céu acusador.

- Deixe-me em paz! – berrou Sabrina, querendo se livrar, porém era óbvio que ele seria mais forte.

- Ouça! – pediu Dart – Se isso tem alguma importância pra você, não quero terminar tudo agora!

- Sorah já me avisou sobre essa sua forma de encarar paixão! Não quero ser só mais uma!

- Sabrina… não há amor ou atração natural entre humanos e lifings. E mesmo assim, não é possível que disso nasça uma criança… É algo sem o menor futuro. Você só gostava de mim porque apareceu aqui há relativamente pouco tempo. Eu sou apenas um humano à sua visão. Mas sou apaixonado por você e quero aproveitar enquanto isso dura.

- Eu sei que a culpa é minha por levar isso a sério demais… mas… não quero continuar com isso… prefiro dedicar meu tempo a te esquecer do que ignorar o que aconteceu hoje!

Dart abraçou Sabrina. Não havia mais o que dizer. Ela já havia se decidido.

- Volte para a torre… se seque… ou vai pegar um resfriado nessa chuva. – aconselhou Dart.

Ela afirmou com a cabeça, ainda chorando. Correu até retomar a trilha pela qual veio. E só parou sob as paredes frias da torre.

 

Já Dart tinha mais coisas a resolver ainda naquela chuva.

Correu na direção oposta, com as roupas nitidamente mais pesadas devido à água. Foi seguindo o rastro de energia de Sorah, temendo que Kiev já estivesse lá. A ansiedade em encontrá-la causava vultos e ilusões. Desejava vê-la o mais rápido possível.

 

Ela era um pequeno ponto sem brilho encolhido sob a chuva, sem se importar com o frio ou a dor.

O vestido enlameado servia de abrigo. Ela se abraçava em gesto de tristeza. Lágrimas corriam por seu rosto.

Dart ajoelhou-se, não se importando em se sujar.

- Há perdão para o que fiz? – foi o que disse sem imaginar outra coisa para falar.

 Ela não respondeu. Provavelmente não estava em condições de dizer alguma coisa.

- Se acaso Kiev brigar com você… mande-o me matar.

Dart se levantou e tirou a parte de cima de seu smoking. Sorah não disse nada quando ele a cobriu. Aliás, sequer se mexeu. Mantinha-se lamentando, murmurando coisas sem nexo.

 

O lifing voltou a seu quarto na torre, sem coragem de encarar a mais singela das criaturas.

Belthor, Íris, Mia e Mirian voltariam alguns minutos depois. Ajudariam a consolar Sabrina. Mas Dart tinha dúvidas sobre quem precisava mais de consolo. Dormira sozinho em seu quarto. E lá chorou, xingando, cortando, punindo-se. Bateu a cabeça na parede seguidas vezes. E seu sangue escorreu como um melado, misturando-se a suas lágrimas. De qualquer forma, a dor de dentro nunca seria menor que a de fora.

E o pior de tudo isso, era saber que Sorah estava ainda pior.

 


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