A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 30
A face do assassino


Notas iniciais do capítulo

Gosto muito desse capítulo. Um esclarecimento sobre a Sorah.



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O túmulo estava muito aquém do que mereciam. As lágrimas que percorriam as pedras iam regar a terra, elemento que Nicka controlava. Hoje enterrada, as árvores pareciam chorar. Estavam baixas e secas, antes da estação certa. Flores brotaram ao redor dos dois humanos, sepultados juntos.

Não fora um enterra digno de uma guardiã. Nem de um humano com a coragem de Hebel. Mas era o que podiam fazer no momento.

Mirian e Sabrina choravam. Choravam inconsolavelmente. Gritavam o nome de Nicka e Hebel. Havia dor pior que aquela? Não era justo. Não era possível. O que seria da Terra agora? Sem uma de suas guardiãs?

Belthor havia explicado logo depois da luta o que já desconfiavam. Era destino, lei, inevitável que uma das quatro morresse. Apenas para que as demais aprendessem a conviver com uma perda. Esperavam que a guardiã fosse eliminada, mas que simplesmente abandonasse esse título. Não chegasse a morrer.

Sorah ainda não sabia. Não tinha aparecido por enquanto. Os demais temiam que ela tivesse voltado a seu reino e abandonado tudo. Faltando apenas uma semana para a final do torneio. Uma semana para outra luta contra Nely.

O lugar ficou deserto naqueles dias. Nenhum monstro transitava, as criaturas eram fantasmas por parecerem estar sempre presentes, porém sem sua imagem. Os olhos se acostumam rápido com a presença de pessoas. Dart queria acreditar que era por isso que ainda não tirara Sorah da cabeça. Tentava a todo custo manter-se preocupado em consolar Sabrina, mais apática que nunca. Mas a lifing ia e vinha como ilusões a todo instante.

Sabrina não se conformava. Com quão facilidade um sonho se torna pesadelo! Num dia está namorando o homem que ama. No outro, uma de suas melhores amigas é cruelmente assassinada. Não havia coisas assim do seu lado do mundo. Mas as coisas têm o péssimo hábito de mudar.

Queria, portanto, desistir de tudo. Partir e sumir. Nunca mais olhar pra trás e ter de ver a face pálida e gelada de Nicka. Nem os olhos inexpressivos, antes cheios de sorriso, de Hebel. Seu desejo era novamente ser acordada de um sonho, como um dia foi, mais de um ano atrás, quando pisou naquela Ilha pela primeira vez. Voltar no tempo e impedir-se de ir naquela excursão. Poderia estar cursando a oitava série agora. Preocupando-se simplesmente em passar de ano. Mas não. Tinha de defender não só a sua, mas a vida de toda a terra. Não era esse tipo de responsabilidade que queria.

As palavras de Belthor fizeram sentido. Ele a fez prometer que não desistiria. Que seguiria em frente. Como pôde prever a sensação de inutilidade que viria depois?

 

Já tinham se passado dois dias da morte de Nicka e Hebel. Sorah ainda não tinha aparecido. A apreensão aumentava conforme os minutos se passavam. Era uma segunda-feira intranqüila. Mirian e Sabrina consolavam-se mutuamente. Foram para a escola logo cedo, como tudo deveria ser. Foi difícil explicar o que tinha acontecido com os dois. Não sabiam se mentiam ou se não havia problemas em dizer a verdade. O problema era que dizer a alguém que Nicka e Hebel estavam mortos era como matá-los novamente. Preferiram deixar como estava. E ignorar quando alguém perguntasse. E assim ignorar a dor.

Lucas aproximou-se de Sabrina, deixando os dois amigos para trás. Aqueles dois estavam cada vez mais “clones” do garoto. Andando do mesmo jeito, vestindo-se igual e até imitando a cara de sono.

- Sabrina… amanhã você tem prova de matemática.

A humana mal notou a presença do garoto. Estava tão deprimida que seus olhos ameaçavam deixar lágrimas rolarem a qualquer instante. Teve de pedir a Lucas que repetisse.

- Ah… claro… - murmurou sem se dar conta de nada ao redor.

- Aconteceu alguma coisa? – estranhou o garoto.

- Não… nada… O que você disse mesmo?

- Amanhã a sétima série tem prova de matemática. Será que você não gostaria de estudar comigo?

- Ahn… claro… você é quem sabe. Vai lá em casa hoje depois da aula…

- Tudo bem.

Mal tinha notado tudo o que falara. Tudo era tão sem importância… Não soava como sendo ela mesma que havia dito para que o garoto fosse até lá estudar. Quando notou, teria de ficar por aquele mundo. Não poderia voltar à Ilha Eid naquele dia. Castigou-se por isso.

Passou pela sala dos professores quando o sinal tocou, a caminho da sala. De lá, Íris a chamou.

- Sabrina… eu sei que é difícil. Mas você tem que tirar essa cara indiferente ao mundo… Sorria novamente e encare o mundo como você sempre encarou! Com coragem e vontade de vencer.

- Fica difícil quando dois amigos seus são assassinados. Ou você acha que eu tenho a obrigação de esquecê-los e fingir que nada aconteceu?

- Você não é uma adolescente comum. Tem direitos especiais, no entanto, são muito maiores as suas obrigações. E uma delas é defender a terra. – murmurou para que ninguém ouvisse – Se você não se reerguer… se não começar a lutar novamente… a morte deles terá sido em vão. Pois eles morreram pra te fortalecer. E como agradece? Enfraquecendo-se?

Íris virou-se e entrou novamente na sala. Deixou em Sabrina uma nova alma.

 

                                                 ***

 

Estavam apenas os dois na cozinha, sentados à mesa fria com uma porção de livros e cadernos abertos. Canetas e lápis… algumas borrachas se escondendo. Vozes narrando teorias e fórmulas. O eco delas batendo na paredes e revelando não haver mais ninguém na casa. Sabrina castigou-se novamente por ter chamado Lucas. Mas não podia negar que sua presença fazia seu coração bater mais forte. Resquícios de um amor passado.

Todos os outros estavam naquele momento, na Ilha Eid. Fazendo sabe-se lá o que. Deveria estar treinando, e não estudando para a prova da qual uma das guerreiras de Yume é professora.

Nem Dart estava presente. Seu namorado fora para a Ilha Eid antes mesmo de voltar da escola.

- E então? Está entendendo? – perguntou Lucas após algumas explicações.

Sabrina meio que despertou dos pensamentos em que se jogara. Olhou pra ele, em seus olhos tão verdes quanto os próprios.

- Desculpa, eu estava… viajando…

- Está tudo bem mesmo?

- Está… tudo ótimo. – respondeu automaticamente, quase deixando transparecer a ironia.

- Aquele “cara” que você trouxe da… - ele parou alguns segundos pra pensar – Daquele lugar pra onde você foi… como estão vocês dois?

- O nome dele é Dart. Estamos namorando.

Sabrina podia ver a bala sair do gatilho e atingir o peito de Lucas à queima roupa?

- Ah… que bom…

- É.

Claro que não podia. Mas Lucas a sentiu.

O silêncio desconfortável que se procedeu foi invadido como uma faca quente que corta o gelo. O “clic” da maçaneta não foi ouvido, portanto a voz de Dart pareceu surgido do nada.

- Belthor me mandou ver se você já pode voltar pra Ilha Eid… - interrompeu-se assim que viu o garoto.

Lucas ficou vermelho. Roxo. Branco. A face do menino adquiriu um tom seco e assustado. Sabrina imaginou ser pelo porte de Dart. Enquanto Lucas era magro e não tinha nem sinais de academia – além de não medir mais que um e setenta – Dart tinha todos os músculos muito bem divididos e media mais de um e noventa.

- Dart… esse é o Lucas, um amigo de escola. Lucas, esse é o Dart, meu namorado. – apresentou, um tanto envergonhada com a situação.

O lifing cruzou os braços quando o pequeno garoto estendeu a mão para cumprimentá-lo. O humano recolheu o braço ao ver que o enorme rapaz tinha ficado irritado.

Rapidamente, o garoto pegou tudo que era seu, ainda deixando uma porção de canetas e lápis jogados na mesa.

- Foi um prazer conhecê-lo, Dart. Tchau, Sabrina. – Despediu-se, correndo em direção à saída.

A porta fechou-se fortemente. Só os dois na casa.

- Não precisava tê-lo assustado tanto. – branqueou Sabrina.

- Eu cuido do que é meu. – desculpou-se, abraçando a humana.

 

                                                 ***

 

O dia seguinte não demorou a chegar. O sol esticou-se no horizonte, colorindo o azul de laranja nos breves momentos de seu nascer. O frio rotineiro das manhãs continuava causando certo desconforto. Há certas coisas com que nunca se acostuma.

Mirian não sabia muito bem o que pensar. Desde que acordou a sensação de que aquele seria um dia diferente lhe atingira. Era uma terça-feira comum e sem muitas promessas. A aula de sempre, uma prova de matemática… nada de anormal. Ainda tivera a grande, porém tardia idéia de pegar as respostas com a aluna mais inteligente da classe. Se bem que a prova era relativamente fácil. Matéria já vista no ano passado. Porém sabia que Sabrina não tinha prestado a menor atenção em Lucas durante todo o tempo em que estudaram juntos. Passou-lhe as respostas antes que pedisse.

Saíram do colégio sem muita pressa. Em silêncio atravessaram um a um os portões. Alguns alunos ainda olhavam de esguelha, procurando entender o motivo pelo qual os professores iam junto. E ficaram ainda mais desconfiados quando Lia abriu as portas da van para que fossem todos no mesmo carro. Mas ninguém se preocupou com isso. Ninguém estava com muita vontade de se estressar por tão pouco.

Dart ficara em casa. Logo, Sabrina abriu as portas e o chamou. Hora de voltar à Ilha Eid.

Tinham se decidido que todos colaborariam com o treinamento de Sabrina. Até porque, Sorah, quem mais poderia ajudar, ainda não tinha aparecido. Ou pelo menos foi o que pensaram até abrir a porta do aposento que ela dividia com a humana.

 - Não acha que demorou um pouco pra voltar? – acusou Belthor.

- Que pena… sentiu saudade? – retorquiu Sorah, irônica.

Os olhos da lifing procuraram os de Dart instintivamente. Este não podia de forma alguma negar que estava aliviado e uma ótima sensação lhe preenchia simplesmente por vê-la novamente. Mas não deixou transparecer. Ao invés disso, abraçou Sabrina e lhe deu um beijo. Ali, na frente de todos.

Sorah deu um curto sorriso de ironia e virou o rosto.

- Vejo que ninguém aqui precisa de mim. – observou com um sorriso de superioridade – Posso me retirar novamente. A menos que Belthor vá sentir minha falta de novo. – riu, passando por todos e já descendo as escadas.

Sorah tinha mudado.

 

Ninguém mais importava. Por que afinal tinha perdido seu precioso tempo ao lado daqueles humanos? Ignorância. Só pode ser isso. Belthor é um idiota que sempre a tratou mal. Íris nunca fez nada para impedir os socos e golpes levados. Lia sempre tinha um olho torto pra ela. Os demais? Os demais era lixo. Nada além disso. Humanos inúteis que não sabiam nada de luta. Dart? Dart era um mentiroso hipócrita que faria de tudo para separá-la de Kiev novamente. Tolo! Ninguém mais irá separá-los. E agora namorando Sabrina. Ele sempre foi assim mesmo. Ficou com milhares e depois as deixou. Quem sabe dessa vez não durasse mais de uma semana.

Já fora do desconfortável ar pesado da torre, Sorah caminhou alguns metros e encostou-se no muro. Logo depois viu todos saindo, em fila. Com exceção de Dart, que ia abraçado à Sabrina. Quis matá-lo.

O grupo foi em direção à floresta. Apostou que iam treinar a humana. Perda de tempo! Ela jamais deixaria de ser a inútil de sempre.

Reparou na falta de Hebel e Nicka, mas não deu muita importância. O que queria no momento era reencontrar Kiev, a quem pedira para esperar alguns instantes enquanto ia ao encontro dos humanos. Arrependia-se por ter perdido o tempo que poderia estar ao lado do lifing com aqueles humanos.

Viu uma figura alta, porém a energia não era de Kiev. Aproximou-se alguns passos e finalmente o reconheceu. Com seus cabelos verde musgo, imponência própria e uma arrogância no olhar. A veste era dos guerreiros de Yume. Cobria o ferimento mortal no peito. Nely se aproximou dela lentamente, como se tivesse todo tempo do mundo. E tinha.

- Olá princesa do gelo. Ou deveria dizer rainha? – cumprimentou o morto vivo.

- Pra você, rainha. – respondeu secamente.

Ele riu alguns segundos, permitindo-se de certa prepotência.

- Pra que tanta agressividade? Venho em paz. – defendeu-se.

- Você? Em paz? Não me faça rir.

- Você acha mesmo que se eu quisesse te matar estaria aqui perdendo meu precioso tempo conversando? Sua amiguinha humana cometeu o mesmo erro. Só que ao contrário.

- Não tenho amigos humanos. – alegou a lifing.

- Melhor ainda. Isso facilita as coisas pra mim. Mesmo assim, refiro-me a Nicka. Pelo que sei você não estava no estádio quando eu a matei não é?

Sorah recebeu um golpe, a queima roupa, ao ouvir essas palavras. Não fazia a menor idéia do ocorrido.

- Esqueça isso. – pediu, quase mandando, o humano. – Eles nunca fizeram nada de bom pra você, pelo que sei, para que fique triste por sua morte. Pelo contrário. Você é quem deveria tê-los matado ha muito tempo.

- Você não sabe de nada. – acusou Sorah.

- Não, não, minha bela Sorah. É você quem não sabe de muita coisa. Mas vamos deixar isso pra depois. Vou direto ao ponto.

- Não quero conversa com mortos vivos.

- Vai querer me ouvir. Acredite.

Sorah silenciou-se esperando pelas primeiras palavras. Não tinha alternativa.

- Você quer ter força, não quer? Quer ser mais forte que Belthor, para poder matá-lo. Unindo-se a mim, te darei esse poder.

- Eu odeio você mais do que à Belthor. – recusou Sorah, achando ridícula a proposta.

- Ora, Sorah… não seja tão injusta. Eu nunca te fiz nada, não é? Pelo contrário, quero te dar uma chance. Ou aqueles humanos um dia te deram uma chance?

- Cale-se! Não estou interessada! Todas as dívidas que Belthor tem comigo serão pagas do meu jeito! Não tenho motivos pra me vender a um humano cretino como você só pra me vingar por Belthor não ter me aceitado como guardiã de início!

Nely riu longamente deixando Sorah irritada propositalmente.

- De acordo com você o lugarzinho de Belthor no céu está reservado. Quem sabe você não mude de opinião quando eu lhe contar uma pequena história. – disse, aproximando-se. – Vou te dar um ótimo motivo para matá-lo.

Nely pôs uma das mãos no queixo de Sorah, elevando sua face para olhá-la no olho.

- Eu nunca tinha conhecido mulher mais bela que a jovem Sofia Ketsu. Porém fico feliz que ela tenha vivido o suficiente para ter uma filha ainda mais bonita que ela. Sorah Ketsu. Acho que morreu porque duas belezas como vocês são tão raras que duas não podem existir nesse mundo. Sua mãe era uma grande mulher. E você ainda será mais do que ela. Mais bela você já é.

Sorah bateu na mão de Nely, afastando-a de seu rosto.

- Você conheceu minha mãe?

- Ah, sim… claro. Não foi numa boa ocasião, mas sim. Já seu pai, Maru Ketsu, era uma das criaturas mais fortes que já vi. Quando alcançou seu último nível de força achei que mataria Zigor com um só ataque. Sua armadura, assim como a de sua mãe, eram obras primas da natureza. Nem mesmo o ataque de mayles as atravessavam. E os dois juntos nos olhavam de cima como se fossemos meras existências. Ninguém tinha importância para eles, a não ser o próprio povo. E é claro, um ao outro.

- Quando conheceu meus pais!? – impacientou-se Sorah.

- Não ficou sabendo, não é? Eles participaram da batalha contra Zigor. Porém, a favor de Zigor. Foram eles, e não o mayle, que mataram a mim, Nacknar, e a todos os outros guerreiros que morreram. O engraçado é que nós morremos com um único golpe cada um. E Yume não fez absolutamente nada para impedir.

Sorah gelou dos pés a cabeça. Seus pais lutaram a favor de Zigor?

- Isso só pode estar errado! – concluiu Sorah – Essa batalha foi há mais de duzentos e cinqüenta anos! Eu tenho apenas cento e cinqüenta!

- Mas eles não morreram nessa batalha. Esse foi apenas o motivo pelo qual Belthor te odiou. Foi por isso que ele avisou a todos os humanos que havia uma lifing perigosa a solta. E esse foi o motivo pelo qual em todos os vilarejos em que entrava, era recebida a pedradas. Inclusive o homem que cuidava de você e seu irmão. Ele os tratava muito bem até descobrir que você era herdeira da lenda que, tenho certeza, está marcada em suas costas. E adivinha só quem contou? Não é preciso ser um gênio para descobrir. E você foi caçada todo esse tempo por um único motivo. Belthor contou a todos… espalhou a notícia de que era perigosa. Que tinham ordem e direito de atirar caso você cruzasse seus caminhos. Ele queria te matar a todo custo. Mas por ser uma guardiã não podia fazer isso com as próprias mãos. Aproveitou-se que uma das guardiãs teria de ser eliminada e mandou te matarem. Imagino até a cara dele ao te ver viva em sua frente. Imagino que ele sabia até seu nome quando apareceu não é?

Sorah estava a beira de um colapso nervoso. Toda sua vida passando por seus olhos. Todas as tentativas de assassinato. Todas as mortes que causou. Todo seu sofrimento e solidão. Tudo! Tudo por culpa de Belthor!

- Ah, e com relação à morte de seus pais… Eles não morreram na luta contra Yume. Mas isso não quer dizer que não tenham sido mortos por um guerreiro.

Sorah congelou.

Nely não esperou que ela se recuperasse:

- Lembra que te daria o melhor motivo para matar Belthor?

 

                                                 ***

 

Sorah não existia. Era apenas uma forma concreta de ódio. Com uma única coisa na cabeça: vingança. Tinha a morte nos olhos. O poder nas mãos. Sem arrependimentos. Sem outro desejo. Sem futuro. Apenas aquele momento. Apenas aquele homem. Somente sua morte As luzes apagaram-se em sua cabeça. Não olharia para trás. Nua de bondade. Vestia um traje de ódio. Era tudo que podia ser visto nela. Ninguém mais existia nem precisava existir. Queria matá-lo, precisava matá-lo, era tudo que importava. O corpo movia-se por instinto. A raiva lhe cegava. Só voltaria a enxergar quando o visse. Quando seu rosto pálido acusasse que a vida o abandonara. Quando seus olhos captassem o último rastro de luz. Quando ela pudesse ouvir o último suspiro abandonando-o.

Cada centímetro de sua existência surgiu de repente, ao lado de alguns vultos. Era ele. E cada pedacinho lhe causava ânsia. Aumentava sua necessidade de sentir seu sangue jorrando em sua face.

Não esperou. Não era preciso esperar. A força que usou para acertar um soco em sua face era maior do que toda a que usava numa luta inteira.

Belthor caiu confuso, sem ao menos saber de onde tinha vindo a dor. Ao deparar-se com Sorah, encheu-se de vingança. Mas sua raiva jamais seria do mesmo tamanho que a dela.

Aqueles vultos… Quem eram aqueles? Não importava. Precisava matar aquele homem!

Alguém a segurou. Não teve a menor vontade de saber quem era. Seus olhos estavam vidrados em Belthor.

Outra pessoa segurou aquele que precisava matar. Não queriam que brigassem. Não sabiam que nada podia impedi-la?

- O que deu em você, lifing maldita!? – escutou-o perguntar, limpando o sangue que escorria pelo canto da boca.

Ao ouvir o xingamento o ódio multiplicou-se. Isso seria possível? Não importava.

- Seu joguinho. Seu joguinho maldito de mentiras… você não pode mais bancar a vítima DESGRAÇADO! – berrou Sorah se livrando de quem a segurava.

Ela acertou outro soco, desta vez na boca do estômago de Belthor. Ele caiu alguns metros dali ao atingir uma árvore. Cuspiu uma boa quantidade de sangue e se levantou recompondo-se.

- Do que está falando!? Eu vou acabar com a tua raça maldita se não disser o que está PENSANDO que está fazendo.

- Não se cansou de perder seu próprio jogo, não é? Devia saber que era muita sorte ter ganho de primeira e desistido em seguida! Mas você nunca foi muito inteligente não é?

- Do que está falando maldita lifing!?

- DA MORTE DOS MEUS PAIS! – respondeu, quase antes que ele terminasse - E das várias tentativas suas de me matar!

- Está ficando louca. Só pode ser isso.

- Não podia me matar com suas próprias mãos! Por eu ser uma guardiã teve de mandar sua raça inútil me matar. Não bastou fazer com que o homem que cuidou de mim e de meu irmão logo depois que VOCÊ matou meus pais tentasse nos matar. Claro que não. Logo em seguida avisou todos que podia de que eu era perigosa.

- Está enlouquecendo. Eu não te conheci até o dia em que você se apresentou como guardiã. – defendeu-se Belthor.

Os demais simplesmente assistiam. Íris tinha feição de desespero. Jamais imaginava que Belthor tivesse feito tudo aquilo. Ninguém imaginava.

- Nesse dia você já sabia inclusive meu nome, mentiroso filho da mãe! Você matou meus pais, em seguida mandou os humanos me matarem! Você criou meu ódio pela sua raça! Antes daquele homem tentar matar a mim e a meu irmão eu nem sabia da existência dos lifings! Só então percebi que eu era diferente. E que deveria matar qualquer um que me ameaçasse. E essas pessoas eram todas aquelas que VOCÊ mandou pra morte ao mandarem me matar. Minha vida toda eu achei ser uma assassina. Ouvindo VOCÊ me acusar de assassina. Recusar-me, virar as costas pra mim por eu ter matado aquelas pessoas. QUANDO FOI VOCÊ QUEM AS MANDOU PRA MORTE! Agora tente! TENTE BANCAR A VÍTIMA NOVAMENTE!

Belthor calou-se por alguns segundos. Olhou para Íris. Ela tinha levado as mãos à boca, incrédula. Chorava de desgosto. Lia balançava a cabeça negativamente. Mirian e Sabrina estavam boquiabertas. Não sabiam do passado da lifing. Dart quase caíra sentado. Praticamente todas as vezes que teve de consolá-la foi porque Belthor a fez chorar. Quis matá-lo. Era um cretino, um lobo em pele de cordeiro. E ele se viu acuado. Todos contra um único humano.

- Não vão acreditar nessa lifing não é? – encheu-se de esperança Belthor.

Mas ao olhar nos olhos de seus antigos companheiros eles os desviaram. Não queriam encará-lo.

- O que está acontecendo!? Estão do lado dessa lifing então? – acusou o humano tentando captar algum olhar.

- Íris… Mia… Vocês viram! Vocês estavam lá! Os pais dessa lifing mataram nossos companheiros! – defendeu-se Belthor – Mataram todos eles!

Lia baixou a cabeça e começou a falar em tom apático.

- Yume me disse poucos dias antes da batalha que havia descoberto uma conspiração entre seus guerreiros. Nely tinha tentado nos incluir, lembra-se? Mas não mencionou que todos os outros já tinham aceitado trair Yume. Por isso achamos que era só ele o louco que planejava coisas contra ela. Mas a verdade é que… ela mandou que apenas assistíssemos a batalha de longe, não só por saber que teria de se explodir, mas também… por ter chamado os pais de Sorah para matar todos os guerreiros que estivessem em batalha. Todos eles lutavam por Zigor. Os únicos em campo que defendiam Yume… eram Sofia e Maru Ketsu.

Podiam ver o sangue de Belthor deixando sua face.

- Quer dizer então… - recomeçou Sorah aproximando-se do humano – Quer dizer que meus pais morreram e eu quase morri… A TOA!? Você merece morrer, humano. MERECE MORRER!

Sorah passou para seu primeiro nível de força nos segundos que gastou para se aproximar de sua vítima, sem o menor efeito ou esforço. O ataque foi forte. Mas mesmo nesse nível Belthor era muito mais forte que ela. Um golpe por parte dele não tardou. E ela caiu pesadamente contra o chão. Ninguém ia impedir o massacre.

Sorah se levantou e já emendou seu ataque. Ele defendeu e retribuiu o soco, que ela pode se desviar. Logo os dois travavam uma violenta luta de pelo menos trinta socos pos segundo. Ninguém ao redor, a não ser por Dart, podia ver bem o que estava acontecendo.

Seus dentes estavam cerrados e as mãos exibiam as garras. Quando pararam para se entreolhar da luta que ocorria, o rosto do humano tinha três cortes, um em baixo do outro, que sangravam incessantemente.

Ele pôs a mão e confirmou o sangramento.

- Você colocou todos contra mim! – acusou Belthor cheio de ódio – Mas se esqueceu que sou muito mais forte que você.

Belthor deu um único golpe. Foi o suficiente para Sorah cair dez metros dali, quebrando as árvores em que bateu.

Demorou cerca de quinze segundos para que ela retomasse os sentidos e se levantasse.

Com os olhos vermelhos do segundo nível.

O humano não esperou que ela atacasse. Sabia que esse nível era perigoso. O mais forte que ela podia alcançar.

Deu-lhe seguidos socos em seu estomago, o que a fez sangrar muito pela boca. Um último chute a fez cair novamente.

Ela não tinha a menor chance.

Seu último esforço acabou com a quebra de seu pulso esquerdo.

Sorah foi ao chão. Mas não demorou a se levantar lentamente.

 - Jamais perderei pra você de novo, Belthor. Eu prometo.

- Não prometa o que não pode cumprir.

- Veremos se não posso cumprir. Deve reconhecer muito bem o terceiro nível de força de minha família não é? Meus pais estavam usando-o quando mataram os traidores de Yume. Mas você provavelmente não deu tempo para que eles o usassem quando os matou. Certamente não teria sobrevivido se tivesse permitido. Eu entendo hoje que… sua expressão de susto ao ver Kiev pela janela era porque… sabe que ele está ciente de que foi VOCÊ quem matou meus pais. Sabe também que ele poderia te matar pois alcança o terceiro nível com muita facilidade. Se bem que nem mesmo o primeiro nível é necessário com você.

As folhas começaram a formar um grande rodamoinho ao redor da lifing, erguendo-se como se uma enorme ventania gelada passasse pelo local. Logo todas as plantas morreram com a energia que se formava sobre ela.

- Pare! Sabe que não consegue atingir esse nível! Vai acabar matando não só a mim, mas a todos aqui! – avisou Belthor.

Sorah não parou. Pequenas explosões a abraçavam. Aos poucos a armadura foi formando-se em sua pele. A mesma armadura preta e vermelha, bela, cheia de adornos.

Todos esperavam que ela tornasse a fera indomável proveniente daquele nível.

Mas ela abriu os olhos calmamente, sendo a mesma Sorah de sempre. Apenas com muito mais ódio.

- Incrível o que alguns dias treinando com Kiev não podem fazer não é?

No segundo seguinte Belthor estava no chão, à vinte metros dali.

Ninguém tinha visto um único movimento dela.

A partir daí, iniciou-se o massacre.

Apenas um dos milhares de golpes que Sorah acertara em Belthor era suficiente para desacordá-lo. Sua energia era tão poderosa que o ar tornava-se denso e gelado ao seu redor. Existia alguma criatura capaz de vencê-la?

Só parou de bater quando quis. Ele já tinha desmaiado à muito tempo, mas sua raiva a impedia de parar. Precisava destruí-lo! O rosto à sua frente lhe dava raiva, ânsia, vontade de matar!

Mia e Íris fizeram de tudo para segurá-la. Mas foi só quando Íris começou a chorar e implorar para que parasse foi que deu ouvidos.

Dart também foi ajudar, mas levou um soco que o fez voar longe.

- E você fique fora disso! – mandou Sorah olhando nos olhos do rapaz – Não pode mandar em mim! Não pode!

Ela voltou à forma normal e saiu daquela cena horrível onde todos condenavam ambos os lutadores e partiu, sentindo o ódio ainda percorrendo suas veias.

Belthor ainda não acordaria no mesmo dia.

 

Passou pelo mesmo local onde tinha encontrado Nely. Sabia que ele ainda estaria lá. Não foi preciso dizer muita coisa.

- Não mate a humana.

- Não se preocupe. – tranqüilizou Nely.

 

                                                 ***

A noite foi se aproximando como um predador que traz a escuridão à sua presa. Sorah refletia sobre o que tinha descoberto. Sobre o que aconteceria em seguir. Alguma coisa poderia ter sido evitada se soubesse disso tudo antes? Se Nely não existisse, algum dia chegaria a saber? Tinha mesmo que ter passado por tudo isso?

Kiev aproximou-se sem fazer barulho, como que flutuando. Sentou-se ao seu lado, apoiado na mesma árvore, de frente para a torre, de onde ela podia ver Dart observando-a pela janela, certo de que esta não desconfiaria.

- Kiev… como meus pais morreram?

Ele não tardou nem rodeou muito para responder.

- Tinham nos levado para assistir uma guerra humana, ensinar, principalmente a mim, pois você ainda era muito pequena, a não ter piedade desta raça quando governar. No entanto, eles acabaram sendo vistos e o exército vencedor partiu pra cima deles. Tolos humanos. Não faziam idéia que se tratava dos dois lifings mais poderosos de todo território da Noite. E por que não, da Ilha Eid. Porém, após toda luta, e saírem vitoriosos, na volta, um homem nos parou. Eles precisavam de curativos rapidamente, não estavam em condições de outra luta. Lembro-me bem, era um homem mascarado. De grandes vestes negras. Um covarde. Aproveitou-se da fraqueza. Então eu fugi com você e o resto já sabe. Descobri que esse homem era um dos guerreiros de Yume, só pelas roupas. Procurei muito por ele, por vingança. Mas não consegui achar.

Sorah fechou os punhos com força. Porém, incapaz de dizer a Kiev, que este homem mascarado estava a menos de cem metros de distância, dormindo, exposto, fraco. Muito menos que tem concordado com seus planos.


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Notas finais do capítulo

No proximo capítulo, a luta entre Nacknar e Nely e Sabrina e Sorah. A grande questão é: de que lado Sorah estará?



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