A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 17
Estranhos no ninho




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 - Não estou muito preocupado com Nely. – revelou Belthor – O problema é Zigor.

- Não compreendo… - interferiu Nicka. – Zigor está morto, não está?

- Zigor? Um mayle? Não… de jeito nenhum. Não existe nenhum outro mayle vivo atualmente além dele. O que significa que ele não pode estar morto.

- Mas… Nely disse que… havia o matado com as próprias mãos. – lembrou Mirian.

- Como puderam acreditar em algo assim? – os humanos presentes se sentiram burros com a questão – Se só um mayle pode matar outro, como um ser humano o faria? Isso é completamente impossível. O que ele fez foi “empurrar” Zigor na passagem, para que ele fosse para o lado de lá.

- E quais seriam os interesses dele em fazer isso? – Questionou Sorah.

- Afastá-lo. No início, Nely era apenas um guerreiro à serviço de Zigor. Mas lhe veio a ambição, e ele decidiu começar à fazer as coisas de seu jeito. Ainda mais quando seus conselhos não eram aceitos por seu mestre. O mayle queria destruir vocês imediatamente, antes que pudessem causar algum problema. Já Nely, queria poupá-las por um tempo, até conseguir arrancar de vocês o motivo pelo qual as partes da Lágrima não se uniam. Zigor estava certo de que o poder que as partes ofereciam separadamente era suficiente para que ele ficasse mais forte, mas não era suficiente para um humano se tornar mayle.  O que levou Nely à afastar Zigor de seus planos e arranjar uma forma de unir a jóia. E é por isso que não posso contar nada à vocês. Se eu contar, vocês terão a informação que Nely precisa. E haverá algum risco de uma de vocês acabar falando. – Apesar de disfarçar bem, Sorah notou Belthor olhando-a enquanto dizia isso – Por hora, é melhor não saberem.

- E quanto a Zigor? Ele está do lado de lá?

- Temo que sim. Diversas mortes têm acontecido. Ele está furioso. Quer voltar pra cá o mais rápido possível.

- E por que não volta?

- Pra passar pela passagem, você deve ter alguma ligação com Yume. Ou estar acompanhado de alguém que tenha. A energia que temos dentro de nós não é puramente nossa, mas também de todos com quem temos alguma ligação. É uma outra espécie de energia, algo que ajuda a manter uma harmonia. Para passar por ali, é preciso ter em si, um rastro, por menor que seja, da força de Yume, para se combinar com a que a passagem é feita.

- Então como ele foi até lá? Se ele foi, deve conseguir voltar, não? – imaginou Hebel.

- Nely o levou. Ele não tem mais nada com Yume, mas possui a Lágrima, que foi criada por ela. E assim, o prendeu por lá. No momento, ele está procurando por qualquer vestígio de energia de Yume pra poder voltar e se vingar de Nely. Também para reaver a Lágrima e se tornar tão forte quanto Thorus. Vocês precisam destruí-lo lá. Não podem deixá-lo voltar, entenderam?

- Mas por que? Se ele está matando pessoas…

- Se voltar, vai reaver a Lágrima, e isso não pode acontecer. É perigoso, mas ele tem que ficar lá.

- E quanto às pessoas que vão morrer? E como vamos matar um mayle?

- Ele vai saber que estão lá assim que chegarem. Vai vir até vocês e só de vocês. Não vai mais tentar matar ninguém. Basta ocultar suas energias e Zigor nunca vai achá-las. Ainda não estão prontas para detê-lo, portanto, vai demorar até que o enfrentem. Como o farão, só o tempo vai dizer.

- Só o tempo vai dizer? – irritou-se Sorah – E vocês, tão poderosos Guerreiros, o que estão fazendo pra tudo dar certo? Pelo que estão lutando? Vocês não estão fazendo nada!

- CALE-SE LIFING! Você não deveria estar aqui, pra começar. Já é por piedade que estou deixando uma criatura como você ir para um mundo onde só há humanos! Você não é uma guardiã, não tem papel nenhum nisso tudo!

- PIEDADE? O que você sabe sobre piedade? E vocês que deveriam estar fazendo alguma coisa estão mandando meninas de treze anos fazerem as coisas por vocês! Ora, quem está mais errado? Ao menos eu não me escondo debaixo de uma máscara, seu covarde!

- NÃO ME CHAME DE COVARDE, CRIATURA!

- NÃO ME CHAME DE CRIATURA!

- PAREM! –interveio Sabrina, pondo-se entre os dois, que ainda encaravam-se mortalmente. – Será que podemos ir logo? Eu quero ver Lia!

Ainda mirando Sorah com ódio – e ela também fazendo o mesmo – Belthor mostrou o caminho e as guiou até o centro da cratera extremamente funda. Dart, enquanto descia, vigiava Sorah, preocupado com qualquer atitude idiota que ela poderia tomar a qualquer momento, dominada pela raiva. Quão foi seu alívio quando finalmente pararam em volta de um círculo onde o chão era alguns centímetros mais baixo que o de onde estavam. Tinha mais ou menos um metro de diâmetro.

- Isso aí é a passagem. Se tiveram alguma relação com Yume, quando saltarem no centro deverão passar para o outro lado.

- E… onde exatamente ela vai dar?

- Numa fábrica abandonada. – respondeu jovialmente.

- Tem uma fábrica abandonada perto da minha… - Sabrina viu o rosto afirmativo de Belthor, confirmando de que falavam do mesmo local -… casa.

- Vocês não terão problemas em se localizar.

- Mas e quanto à Sorah, Hebel e Dart? Onde vão morar?

- Falei com Lia sobre isso. – respondeu Belthor apressado – Lembrem-se. Vocês são todos primos de Sabrina – dirigiu-se para os nativos daquele mundo – São da Suíça e falam pouco português. E só mais uma coisa… Se ela perguntar sobre seus olhos – dirigiu-se em especial aos lifings – digam que é a última moda usar lentes de contato dessa cor no país de vocês.

Não que alguém tenha entendido muito bem, mas afirmaram, ansiando conhecer aquele mundo desconhecido que tanto ouviram Sabrina e Mirian falarem.

- Muito bem, formem duplas que incluam uma guardiã em cada. Em seguida, me sigam.

Belthor virou-se sem esperar mais e saltou no buraco raso. A terra desapareceu, dando lugar à uma luz muito forte, que forçou os presentes a cobrirem o rosto para proteger os olhos, mesmo que ainda tentassem ver o que aconteceram com o Guerreiro. Ele sumira na luz no mesmo instante em que seus pés tocaram o que apenas depois disso tudo, voltou a ser terra firme.

Sabrina ficou imóvel alguns instantes. Virou os olhos sem mexer um músculo – que pareciam estar travados – e eles encontraram os de Mirian.

- Certo… - começou Nicka, não conseguindo esconder medo nas palavras – Quem vai com quem?

- Mirian vai com Dart. – mandou Sorah, antes que Sabrina tivesse chance de chamá-lo. – Eu vou com Nicka e Sabrina com Hebel.

Eles se juntaram conforme as duplas formadas. Todos demoravam a fazer cada movimento, tentando adiar a viagem ao máximo. No entanto, o momento de decidirem quem iría primeiro logo chegou.

- Vai a Sorah. Ela é a mais corajosa. – lembrou Hebel, tentando aumentar o ego dela, apenas para se livrar de ir primeiro.

- Esqueceu que sou eu que vou com ela?

- Desculpe, Nicka…

- Vai você, Hebel. Uma dupla de humanos não vai fazer falta. – vingou-se Sorah. – Se bem que vocês são medrosos demais para essa honra.

Sorah terminou de dizer isso e puxou Nicka pelo braço, ignorando seus gritos para que parasse e saltou da mesma forma que Belthor, no mesmo local. A luz preencheu os olhos mal protegidos de todos que ainda permaneciam ali.

Não demorou nem três segundos para que Dart murmurasse o nome de Sorah e puxasse Mirian, indo atrás dela.

Hebel olhou para Sabrina. Ela retribuiu o olhar de medo. Ambos engoliram um seco e seguraram a mão um do outro bem firme. Fecharam os olhos – Hebel ainda tampou o nariz, como se fosse mergulhar numa piscina – e saltaram.

Sabrina reconheceu aquela sensação horrível. Como se alguém estivesse sentado sobre seu peito, e ainda apertando sua garganta. A força que fazia para respirar era descomunal. O grito não saiu da garganta. Tudo ao seu redor escurecendo rapidamente, até que a única coisa que sentia era a mão de Hebel apertando cada vez mais a sua. E até mesmo isso foi sumindo aos poucos. Quando Sabrina tinha apenas uma noção vaga de consciência, ouve um choque com algo que ela não soube definir. Foi ganhando sentidos um por um. E nem havia notado que os tinha perdido. Inspirou profundamente assim que pode. Mas suas vias foram interrompidas por pó. Tossiu e abriu os olhos. Estava deitada no chão, em posição fetal, apertando mão de Hebel ao seu lado. Todos os demais já estavam de pé, tão cobertos de poeira quanto ela. A não ser por Belthor que parecia limpo comparado aos outros.

- Finalmente. Vocês demoraram. – anunciou Mirian.

Hebel se levantou e bateu nas vestes para limpá-las o quanto possível, em seguida estendeu a mão para Sabrina também se levantar. Eles se viram num galpão sujo, iluminado apenas pela luz do dia lá fora, que escapava pelos buracos das pequenas janelas quebradas. Rodeados por máquinas paradas, um caminhão sem pneus largado à ferrugem, tal como tudo que era de ferro ali dentro.

- Vamos sair logo daqui. Preciso tomar um banho. – pediu Sabrina.

Aquela fábrica não era muito bem vista pelos moradores daquele bairro. Na época em que funcionava, soltava muita fumaça. Depois que ela fechou, alguns queriam demoli-la, mas o dono, um homem muito rico que havia simplesmente desistido de uma de suas muitas fábricas, não permitiu, ressentindo que um dia, pudesse querer fazê-la voltar a funcionar. O que todos sabiam, não ia acontecer.

Acharam um buraco na parede, por onde saíram. Uma vez que os portões estavam demasiado enferrujados para abrirem sem serem quebrados por Sorah ou Dart. O que faria bastante barulho.

Sabrina não podia acreditar na felicidade que sentia em ver seu bairro novamente. Poucos carros, muitas árvores. Claro que não sentia saudade alguma de árvores… Mas aquelas, entre as casas… E casas comuns… E uma delas, uma branca em especial, a mais convidativa, com uma mangueira nos fundos, tão alta, que da rua se podia ver os últimos galhos. O portão cinza, as janelas grandes, dando vista para o imenso jardim. Dividia espaço com a garagem e um carro. Sua casa.

Sabrina a apontou contente, em seguida correu a metade do caminho até ela. Mas foi impedida por Belthor.

- Vocês têm que chegar juntos. Não se esqueçam do que eu disse. Lia deve estar muito preocupada com você. Eu a convenci a não dar parte na policia por um tempo, espero que não tenha feito isso.

- Você apareceu pra ela? Sem a máscara? – Perguntou Mirian, começando a estranhar a quantidade de vezes que os dois se encontraram.

- Usei um disfarce. Não que faça muita diferença. Ela não me conhece de qualquer jeito. Eu já vou indo. Tenho outros assuntos para tratar. Boa sorte.

Sabrina o ignorou. Ignorou também os olhares curiosos de todos os que não pertenciam ao seu mundo. Correu até sua casa. Ainda os convenceu a correr também, para que estivessem juntos ao bater na porta.

Sabrina estava eufórica. Finalmente rever Lia. Rever Almôndega, seu cachorro. Dar um abraço muito forte nos dois, chorar junto de felicidade. Comer as verdadeiras experiências culinárias de Lia. Ou ao menos servir de cobaia. Olhar nos olhos dela novamente. Era tudo que queria naquele momento.

Bateu na porta sucessivamente, depressa. Quase derrubou a porta de tanto entusiasmo. Olhou bem de perto no olho mágico, como costumava fazer quando chegava da escola. Viu um movimento através dele. Teve certeza de que era Lia, assim que ouviu o som da fechadura sendo aberta com velocidade. Sua professora de informática não esperou explicações e tomou Sabrina em seus braços chorando muito. Parecia não querer largá-la nunca mais, para não deixá-la ir mais longe. Sabrina também chorou ao abraçá-la. Estavam mais felizes e aliviadas do que jamais estiveram. Não se viam à quase um ano, não tinham notícia uma da outra nesse tempo todo, Lia principalmente não fazia idéia de onde Sabrina estava, e mesmo se soubesse, seria suficiente para se preocupar tanto quanto havia se preocupado.

- Onde você esteve… O que ouve com você… por que foi embora sem me dizer nada?

- Lia… eu senti tanto sua falta…

Os demais se sentiram sobrando na cena de reencontro. Apesar de que Mirian também se sentiu bem ao ver sua professora preferida.

- E você, Mirian…? Onde estava? – Lia estendeu uma mão para Mirian, ainda abraçando Sabrina.

- Hã… eu também senti sua falta… - desviou-se Mirian, sem saber dar uma explicação.

- E quem são seus amigos? – perguntou Lia, finalmente largando Sabrina para falar com ela. Seus olhos estavam vermelhos.

- Ah… eles são… eu… conheci eles na…

- Suíça. – completou Mirian, tentando ajudá-la.

- É… Eles são… primos distantes. Vão passar uma temporada aqui. Será que podem? Não falam muito bem português.

- Claro, claro, entrem! – pediu Lia, dando espaço para passarem.

Cada vez mais Sorah achava aquele mundo estranho. A televisão parecia a coisa mais inútil do mundo. Pra que alguém iría querer uma caixa com um vidro? Os demais também acharam estranho tudo aquilo, principalmente as roupas de Lia.

- Eles podem ficar no quarto de visitas. – lembrou-se Lia.

- E o meu quarto? Como está?

- Arrumado. Só esperando a sua volta. Ora, vocês devem estar com fome…

- Não, sério. Eu só quero mesmo tomar um banho quente.

Sabrina ouviu um latido agudo vindo de dentro da casa. Logo Almôndega apareceu, mais gordo do que nunca, fazendo jus ao seu nome. Pulou nos braços de Sabrina e lambeu seu rosto, vencendo qualquer esforço dela de o afastar.

- Agora é que eu definitivamente preciso de um banho…

Água quente era um luxo que não tinha à quase um ano. Um dos quais mais sentia falta.

- Então tudo bem, eu vou mostrar os quartos aos seus primos. Ainda sabe onde é o banheiro, não é? – brincou Lia,

Estava tudo arrumadinho, do jeito que viu pela última vez. Sua escova de dente no mesmo lugar em que deixara, a saboneteira… Nada parecia ter saído do lugar no tempo em que ficou fora.

Entrou debaixo da água quente e aproveitou cada segundo. Parecia tudo um sonho que estava de volta em casa.

Vestiu-se, deixando pra trás as roupas de guerreira. Lia nem notara a espada em sua bainha no calor do reencontro. Tratou de escondê-la imediatamente no fundo do armário.

Até mesmo suas roupas estavam no mesmo lugar. Seu computador, sua cama, toda sua vida havia parado e agora voltava a acontecer. Deixou-se cair em sua cama macia. Fechou os olhos e aproveitou todo o tempo do mundo. Abraçara-se com a vida que deixou pra trás à quase um ano.

Lia bateu na porta. Foi a única coisa que a despertou naquele momento. E sentiu-se bem por ser ela. Sua voz fazia muito bem, depois de tanto tempo.

- Seus primos devem estar com fome, Sabrina. Por que não se senta à mesa e vem comer com eles?

- Tudo bem. Estou indo.

Sabrina se levantou rapidamente, sentindo um pouco de sono. Estava cansada, precisava de um pouco de férias. E as aulas seriam suas férias. Não sabia o que aconteceria em seguir. Se deveria voltar a Ilha Eid, permanecer naquele lugar… Mas tinha que lutar no torneio de qualquer forma, ou tudo estaria perdido.

Esses pensamentos à abandonaram quando sentiu cheiro de filé com molho invadindo seus sentidos. Reconheceu muito bem até mesmo o restaurante de onde Lia havia pedido a comida.

- Não teve tempo de preparar nada? – riu Sabrina.

- Ah… eu não esperava tanta gente. Se você tivesse ligado eu iría buscá-los no aeroporto, e ainda deixaria tudo pronto aqui. Mas você chegou de repente…

- Tudo bem, Lia, não precisa se preocupar com isso.

Não havia mais ninguém na cozinha. Sabrina perguntou por seus primos, Lia apontou o quarto de visitas, enquanto colocava os pratos na mesa.

Sorah estava levantando um dos colchões com a mão quando entrou. Dart cheirava a parede, curioso. Hebel levantava a pequena e antiga televisão e batucava o vidro, achado o som engraçado. Nicka estava maravilhada com a construção ao seu redor. Mirian tentava sem sucesso tirar a televisão das mãos de Hebel.

- Gente… o jantar está pronto… - avisou Sabrina perguntando a si mesma o que eles estavam fazendo.

- Que roupas horríveis são essas? – Sorah virou os olhos, parando de vasculhar o interior do colchão.

- As pessoas daqui usam roupas assim. E vocês também terão de usar. Deixem suas armas aqui, Lia não deve ter percebido.

Absolutamente contrariada Sorah tirou o cinto que prendia sua bainha e colocou sobre a cama. Ainda teve que tirar sua armadura prata. Dart fez o mesmo, achando impossível que Lia não tivesse notado sua armadura dourada.

As vestes dos presentes ainda eram bastante estranhas aos olhos de Sabrina, mas sem opções, dirigiu todos à cozinha, tendo de lhes mostrar como segurar os talheres e lhes avisando para usá-los.

Mirian foi o primeiro alvo da inexperiência de Hebel com garfos e facas. Um punhado de arroz voara de seu prato direto para o rosto da menina. Ele ainda tentava consertar o erro, sem sucesso, ao pegar alguns grãos com a mão e pôr sobre a mesa.

- Tudo bem, Hebel, tudo bem. – acalmou Mirian, mais para pedir que parasse de por as mãos engorduradas nela.

- Desculpe, não sei o que deu em mim… eu… sempre como com esses… essas… coisas de metal… - defendeu-se Hebel, dando ênfase à palavra “sempre”.

Sabrina se sentia acuada diante da situação. Sorah espetara a carne do prato com a faca e a comia como se fosse no espeto. Dart a imitara assim que comprovou ser mais fácil. Nicka até tentava imitar Lia, mas a tentativa mostrou-se desastrosa quando repetiu a cena de Hebel. Qual fora a surpresa de Sabrina ao ver Lia segurando o riso como podia. E de vez em quando, ainda fazia cara de séria, sem conseguir segurá-la por muito tempo.

- Então… - começou Lia, estranhamente ignorando uma alface que voara do prato de Sorah. – Como foi a viagem?

- Ah, foi rápida. Nem notei quando pousamos. – respondeu Mirian tentando continuar conversa.

- Que bom. Sabrina sempre teve medo de viajar de avião. – justificou Lia.

Sabrina engoliu um pedaço demasiado grande de carne enquanto ouvia isso.

- E minha escola? Preciso voltar à estudar, não?

- Ah sim, Sabrina. Vocês duas. Mirian, seu tutor está preocupadíssimo. Acho melhor ligar. Eu posso fazer suas matrículas amanhã mesmo. Só preciso do xerox dos documentos dos seus primos. Eles também vão estudar, não é?

- Claro. Mas… eles não têm RG, será que tem problema?

- Não, acho que não. Mas preciso das certidões de nascimento.

- Ah… claro…

Depois do jantar mais desastroso das vidas de cada um dos presentes, Mirian ligou para seu tutor, avisando que já estava em solo nacional e que passaria a noite na casa de Sabrina. Ainda tinha que ajudá-la a explicar à Lia por que nenhum dos primos de Sabrina trouxera roupas ou mala.

- Como vamos fazer uma certidão de nascimento pra eles? – desesperou-se Mirian, sentando-se na cama de Sabrina. A porta estava devidamente fechada e os inativos quietos num canto, analisando o computador.

- Não é tão difícil. Dá pra pegar a minha e passar para o computador. Mudar os nomes e datas e imprimir. Simples.

- Ah, sim… me esqueci que você é a senhorita informática.

- Mirian, só você vê dificuldade em falsificar um xerox.

Sabrina afastou Hebel de seu computador e o ligou. Sentou-se na cadeira que assustou Dart ao deslizar pelo chão com as rodinhas.

- Que veículo estranho…

- Não é um veículo… é uma cadeira. – explicou Sabrina levantando-se para procura sua certidão de nascimento.

Enquanto enfiava a cabeça dentro do guarda-roupa (e fazia uma grande bagunça por sinal) Dart sentou-se na cadeira engraçada e começou a se impulsionar de um lodo para o outro, analisando cada movimento.

- Não é um veículo, Dart. Muito menos brinquedo. É só uma cadeira. Levanta!

O lifing levantou de contra gosto e se sentou na cama, para dar lugar à Sabrina. Pôs-se em posição de ataque assim que a máquina de scanner foi ligada e começou a fazer barulho. Ele não foi o único. Todos os demais fizeram o mesmo.

- Calma, gente, está tudo bem. Podem se sentar e esperar tranqüilamente. Aqui não tem tantos perigos quanto na Ilha Eid.

E assim fizeram. Após uma hora de longa espera sentados sem mover um músculo, Sabrina soltou um grito de comemoração levantando algumas folhas à altura dos olhos. Mirian estava maravilhada com a facilidade com que conseguiram as falsificações.

- O que é isso? – perguntou Nicka.

- É a matrícula de vocês na minha escola. – informou Mirian orgulhosa.

Qual fora a alegria demonstrada por Lia ao refazer a matrícula de Sabrina a escola. Estava tão feliz em tê-la de volta, que fora cedo, mesmo sendo sábado, inscrevê-la junto aos seus primos. E sob permissão de seu tutor, também a de Mirian.

 

Era dia quatro de março. De acordo com a tabela de lutas, trazida da Ilha Eid, teriam algum tempo até que acorresse a próxima luta, que não era de nenhum deles, apesar de que seria no dia seguinte a luta de Nicka e Mirian. À Parte isso, descansaram tranqüilos. Suas aulas começariam logo na segunda, como foram informados. Era um sábado quente, promissor. E nenhum dos “primos” de Sabrina poderia desejar uma noite melhor. Uma cama macia, uma casa livre de aranhas ou sujeira. Sempre impecavelmente limpa. Sem se preocupar em ser morto durante o sono por um lifing, sem se preocupar com nada.

Estava tudo dando certo demais.

 

                                               ***

 

Qual fora a surpresa de Sabrina ao descobrir que conseguia acordar seis da manhã sem ajuda do despertador. Há algum tempo vem acordando bem cedo, mas nunca soube exatamente o horário. Até mesmo Lia se surpreendeu por ver todos acordados e devidamente sentados à mesa sem que ela precisasse chamar alguém em pleno dia de aula.

Ofereceu-lhes torrada, que para felicidade da maioria não precisavam de talheres para ser comida. Evitou outro grande desastre.

Certo momento, quando todos pareciam ter acabado, Lia se levantou da mesa, lembrando-se de alguma coisa. Pegou uma sacola grande que havia deixado em cima do balcão. Ainda bebeu o que restava do leite de seu copo antes de pôr a mão dentro da sacola e tirar o que pareciam vestes embrulhadas em plástico. Eram várias delas, que Lia expôs na altura dos olhos, para que todos vissem.

- O que é isso? – perguntou Sabrina.

- Roupas escolares. O que mais? Acho que seus primos não as têm ainda, não é? – respondeu Lia achando óbvio tudo que dizia – E vocês parecem ter se livrado das suas. – continuou, referindo-se à Sabrina e Mirian – Acho que vocês emagreceram, não? Comprei menor… Bom, experimentem e vejam se está tudo certo. Ah, e os livros em xeroquei, ia ficar muito caro comprar todos. O restante dos materiais acho que vocês duas podem emprestar, certo?

Mirian se levantou e foi até Lia. Ela conferiu os números e estendeu três que achava servir na aluna. Esta, ainda prometeu pagar pelas roupas. Em seguida foi a vez de Nicka pegar a sua. Lia repetiu a cena, estendendo-lhe outros três pacotes, um com a camiseta branca, outro com uma calça azul escuro e o terceiro com um short curto e apertado, também azul. Recomendou que usasse o short. Estava frio, mas faria calor à tarde. Hebel foi o próximo, recebendo a mesma camiseta, uma calça de tecido diferente do das meninas e uma bermuda deste mesmo tecido. Esse mesmo conjunto foi dado também à Dart, sem é claro, que o mesmo ficasse intrigado com o pacotinho plástico que o envolvia. Sabrina recebeu apenas uma camiseta, pois já tinha as demais roupas guardadas. Sorah foi a última, recusando a si mesma a ter de vestir alguma coisa daquele mundo.

- Vamos, pegue. – pediu Lia entendendo-lhe os pacotes – Foi difícil encontrar do seu tamanho.

Sorah esticou a mão olhando nos olhos de Lia, temendo qualquer atitude abrupta da humana. Recolheu imediatamente o braço assim que pôs as mãos nas vestes. Ficou observando-a enrolar a sacola ruidosamente e amassá-la logo em seguida.

Sabrina puxou Sorah de contragosto até seu quarto, apesar da lifing se recusar à tirar os olhos de Lia. A humana pegou o que faltava de suas vestes, enquanto mandava que alguém se trocasse no banheiro enquanto outro fosse se trocando no quarto de visitas. Já ela mesma expulsou todos que ainda estavam em seu quarto e se vestiu ali.

Em meia hora, estavam todos vestidos e atrasados. A não ser Sorah, que se recusava a sair do quarto com aquelas roupas. Foram precisos mais alguns minutos batendo na porta e convencendo-a de que todos estavam do mesmo jeito que ela para que a lifing finalmente se convencesse que teria que sair mais cedo ou mais tarde.

Fora tão cansativo tirar Sorah de lá que tanto Mirian quanto Sabrina estavam convencidas de que ela realmente estava no mínimo estranha. No entanto, tiveram vontade de xingá-la quando ela finalmente saiu. Tantas meninas queriam ser magras e altas como ela, e se encaixar tão perfeitamente nas roupas do colégio enquanto Sorah que era do jeito exato e perfeito com que toda menina sonhou – e que os meninos também, diga-se de passagem – se envergonhava e os fazia se atrasarem por se recusar a sair do quarto. Eram as roupas mais femininas que a viam usando até então.

Sabrina desviou os olhos por cinco segundos até Dart. Ele mantinha a visão vidrada em Sorah. Por alguns instantes ainda lhe deu um sorriso curto. Sabe-se lá por que isso causou à humana uma sensação ruim no peito.

Lia chegou como quem estranhasse a demora, com a chave da Van na mão. Pediu para que fossem mais rápidos e foi até a garagem. Todos os demais a seguiram, já prontos para partir.

 

Conforme o prédio da escola se aproximava, os corações de Sabrina e Mirian batiam mais rápido. Havia alguns alunos conhecidos do segundo ano na porta conversando com uma monitora. Um outro do primeiro ano, de cabelos cumpridos, amarrava o tênis apoiado no muro. Um casal do terceiro cumprimentava-se enquanto uma amiga de Mirian, da oitava série chegava no carro da frente. Uma cena aparentemente comum, não fosse o fato de que não a viam há quase um ano. E como sentiam falta disso tudo…

Assim que desceram do carro, esta amiga de Mirian olhou para o grupo que descia da Van de sua professora com estranheza. Provavelmente não reconhecera nenhum dos presentes. Mas logo deu um grande sorriso e correu na direção de Mirian e Sabrina, dando saltinhos alegres. Deu-lhes um abraço muito forte, deixando todo material cair pelo caminho.

- Mirian! Jacky! Onde vocês estiveram esse tempo todo? – perguntou, finalmente largando-as - Nos contaram que vocês viajaram, mas ninguém acreditou, já que vocês sumiram lá no museu… O Fabrício disse que vocês morreram – comentou, dando a notar que achara a idéia absurda desde o início - mas é claro que ninguém acreditou também.

- Agente foi viajar sim. – respondeu Sabrina ansiosa em dar uma resposta – Pra bem longe. Pegamos bastante turbulência na viajem, mas… Trouxe meus primos comigo. – e deu espaço para que os supostos parentes se mostrassem a ela. –Esta é Nicka. – E apontou a menina que acenava freneticamente com um largo sorriso. – Este é Hebel, Dart e Sorah. Pessoal, está é minha amiga Débora.

Hebel e Nicka acenaram novamente, enquanto Sorah e Dart permaneciam quietos com cara de entediados, de braços cruzados. Já Débora parecia estranhar bastante alguma coisa, apesar de esconder. Mirian apostou que fossem os nomes estranhos de cada um.

- Odeio apressá-los, - interrompeu Lia – mas a primeira aula começa em dois minutos.

Mirian correu na frente, seguida por todos os demais. Entraram feito desesperados na escola, dando um grande oi para a inspetora. Alguns colegas as olhavam de esguelha, estranhando sua presença ali, outros a correria. No meio do caminho, Débora mudou de corredor. E o restante seguiu pelo mesmo, até chegar numa última sala, com uma placa escrita “sétima série” ao lado da porta, aberto. Havia grande baderna lá dentro, os alunos jogavam papel uns nos outros, as meninas conversavam num canto. Nicka teve certeza de ter ouvido Mirian murmurar “pirralhos” enquanto suspirava entediada.

- Não acredito que repeti o ano…

- Mirian, relaxa. A gente só precisa estudar com eles, depois, no intervalo, voltamos a falar com o pessoal da nossa idade.

Entraram meio que juntos, depositando suas coisas nas seis cadeiras vagas mais próximas umas das outras. Novamente as pessoas os olhavam de esguelha, estranhando os alunos novos. Mas a bagunça não terminou só pela presença deles ali. Muito menos quando o professor de ciências entrou.

Sabrina apontou discretamente o livro que seus “primos” deveriam pegar quando viu José, o professor, entrando. Ele deu uma boa olhada nos novos alunos. Não era o tipo de homem mais bonito do mundo. Tinha uma grande verruga do lado esquerdo do olho e sobrancelha única. Usava uma camiseta listrada, cor sim cor não. E uma calça da era do nunca. Podia até não ser tão velho, mas todo seu jeito, suas vestes e etc o envelheciam uns dez anos.

Uma bola de papel quase o acertou em cheio, mas ele a pegou com a mão direita tão serenamente que pareceu fazer aquilo todos os dias. Mandou todos se sentarem e ficou em pé ao lado da mesa esperando que sua ordem fosse atendida. O que não demorou muito tempo.

- Hoje vocês têm colegas novos. – Anunciou ele com a classe em silêncio enquanto colocava sua maleta na mesa. Tinha voz ponderada, porém deixa claro que não a manteria assim por muito tempo, caso ultrapassassem o limite de sua paciência, demonstrada em seus olhos ser curta – Queiram, por favor, se apresentar à classe.

 Sabrina cutucou Mirian para que esta avisasse, pelo pensamento, à seus “primos” para que dissessem seus nomes sentados, antes que o professor os mandasse se levantar. O que não agradaria muito os nervos dos lifings, muito menos seria bom, atraindo a atenção de todos os demais para os olhos, dentes e garras de ambos. E para os cabelos verdes de Nicka, que se destacavam bastante, apesar de que todos achavam muito óbvio ela ter pintado. Até mesmo Mirian ainda se perguntava se era mesmo de verdade…

- Meu nome é Nicka. – se apresentou, assim que recebeu a mensagem de Mirian.

- Nicka? É grego? – perguntou um dos meninos.

- A… acho que sim… - respondeu, gaguejando sem ter certeza da resposta, apenas dizendo o que Sabrina mandava, afirmando freneticamente com o rosto.

O professor desviou os olhos dela e mirou Dart por alguns segundos, até que este notasse que era sua vez de se apresentar.

- Meu nome é Dart. – disse, sem encará-lo de frente.

Mais comentários em torno de seu nome. Mas não foram tantos quando Hebel, que parecia ter ganhado o concurso de nome estranho. Já o de Sorah teve um único comentário. “Sarah?”. Foi preciso soletrar para que todos entendessem que não era com “a”, mas com “o”. E é claro, foi o suficiente para que esta quisesse bater em cada um dos alunos.

- Eu sou o professor José, e irei lecionar Ciências. A educação física é à tarde, vocês têm que dar o nome na modalidade que quiserem praticar. Peguem seus horários no mural ainda hoje. Alguma pergunta? – tendo o silêncio como resposta, ele se virou para Sabrina e Mirian. – Estou feliz por tê-las de volta à escola.

Sabrina afirmou com a cabeça, sem muita emoção. Sabia que aquilo era só da boca ra fora. Aquele professor em especial nunca se importou muito com elas.

Não foi difícil passar por duas aulas de Ciências. Estava mais preocupada mesmo é em qualquer passo em falso que qualquer um dos seus primos pudesse dar numa pergunta que não soubessem responder. Mas devido ao fato de serem novos, o professor não lhes fez nenhuma questão. Este estava mais preocupado em vigiar alunos do fundão e dizer-lhes o quanto era cansativo dar aula para pessoas como aquelas.

Apesar de não esperarem tanto quanto costumavam esperar tempos atrás pelo intervalo, quando ele chegou, Sabrina e Mirian deram graças por não precisarem mais encarar o professor e perguntas transmitidas pro bilhetinhos durante a aula, perguntando onde estiveram, pra onde viajaram, o que andaram fazendo, dentre outras perguntas que simplesmente não podiam responder com a verdade. Algumas até ignoraram, outras improvisaram uma resposta pouco convincente. Em sua maioria, rasgaram o papel, com a desculpa de que o professor podia vê-los.

- Então? O que achou da primeira aula da sua vida? – quis saber Sabrina sobre Sorah, que não estava com a cara das melhores, tal como Dart.

- Entediante. – respondeu sem muita emoção. – Você nunca disse que estudar aqui fosse tão inútil. Eu realmente não tenho interesse em conhecer vermes. Já me bastam os humanos.

Uma grande quantidade de alunos passava pelo corredor, onde estavam naquele momento. Apesar disso, um estudante em especial conseguiu se espremer até encontrar o grupo de Sabrina. Tinha a camiseta da escola gasta. O cabelo era loiro e liso, com uma quantidade desproporcional de gel. Usava um óculos de lentes grossas e era muito magro. O tipo de garoto desconhecido buscando se ascender na escala social da escola, sem muito sucesso.

- Sabrina! Disseram-me que você voltou! Então vocês não morreram?

- Não, Fabrício. – negou Mirian, um tanto irritada por ele ter espalhado um boato de tamanho mau gosto.

- Ah, - lamentou-se – me desculpem por isso. – após alguns segundos sem que ninguém dissesse mais nada, Fabrício pareceu notar o olhar vago dos demais alunos que estavam ao redor, os quais ele nunca havia visto antes – Então… quem são os seus… amigos…?

Sorah olhou para o garoto alguns centímetros mais baixo que ela com uma raiva mortal nesse momento, simplesmente por ter insinuado que ela seria amiga de Sabrina. O pobre garoto tremeu um pouco devido aos olhos amarelos que até achou estranho, mas melhor não comentar. E desviou os olhos de volta para Sabrina e Mirian.

- São meus primos da Suíça. Vieram passar uma temporada por aqui.

- Ah… Bom… eu… já vou indo. Quero dizer… Meus amigos…

- Tudo bem, Fabrício, pode ir. Nós também não gostaríamos de estar falando com repetentes. É claro… se os repetentes não fossemos nós… - lamentou-se Mirian.

- Ah… não é que… Eu… já vou indo. – avisou ele, antes de se espremer de volta até sair do corredor.

Sabrina se virou para os demais do grupo em que andava no momento. Pediu para que saíssem do meio de todas aquelas pessoas. Alguns meninos estavam começando a empurrar e a situação tornara-se demasiado desconfortável e perigosa para os nervos dos lifings, que provavelmente já estavam tendo de se agüentar como podiam para não sair batendo em quem estivesse no caminho.

Sentaram-se num banquinho ao lado da entrada para o terceiro ano, fora do prédio, onde após mais alguns passos chegariam à um jardim com uma horta e algumas árvores.

Havia muito menos movimento naquele local. Apenas alguns alunos mais velhos sentados num murinho, conversando, rindo, zombando de outros. Ainda havia um casal. O mesmo casal que viram na entrada. O grupo de amigos era bem exclusivo. Meninas com acessórios rosa-choque e meninos com correntes e pircings. Gel no cabelo, tênis de marca… eram as elites da escola. Muito bem divididos e separados do “resto”.

Um dos garotos olhou para Sorah, sentada no banco de braços e pernas cruzados, com cara de entediada. Ele cutucou o amigo e os dois se separaram do grupo que mal percebeu a falta deles para se aproximar da lifing.

- Você é nova, não é? – perguntou um deles, com um sorriso infantil no rosto.

Sorah não respondeu. Queria socar cada um deles até caírem no chão.

- Sim, é. – respondeu Mirian por ela. – O resto de nós, a não ser por mim e ela, - e apontou Sabrina - também é. – lembrou, em tom nervoso, querendo fazê-los lembrar de que também existiam.

Os rapazes ignoraram Mirian, mas aceitaram a informação.

- Então… - continuou, estralando os dedos, mordendo o lábio inferior e olhando-a de cima (o que só aumentou o ódio dela) – Qual é seu nome, novata? Posso te chamar de novata?

- Não. – respondeu secamente.

- Tudo bem, qual é seu nome, novata?

Sorah fechou os punhos com muita força, tentando descontar a raiva em alguma coisa.

- Sorah.

- Pois então, Sorah, não vai querer estar no grupo errado, não é?

- Não, eu não quero. – concordou, em tom seco – Por isso saiam da minha frente nesse exato momento.

Ninguém ali notou, mas a raiva que Sorah sentia no momento não era absolutamente nada comparada à de Dart.

- Hei! – riu um dos garotos, erguendo as mãos, como se tivessem sido mandado pôr as mãos para cima. Talvez se protegendo, talvez demonstrando que não oferecia perigo – Estou te dando uma oportunidade única, sabe?

- Não. – discordou Dart, entrando na conversa e pondo-se de pé. Seu porte os intimidou um pouco – Ela está dando a oportunidade de vocês saírem daqui com os dentes. E eu estou dando a oportunidade de saírem vivos. Portanto, sugiro que aproveitem.

- Ah, não sabia que a garota tinha namorado. É uma pena.

Os rapazes se viraram ignorando o grupo em que acabaram de estar, no maior estilo “paro enquanto ainda estou ganhando”. Mas não demorou para que uma menina se virasse discretamente para eles, quase do mesmo lugar de onde os garotos saíram. Ela usava um brinco grande, todo rosa. Os sapatos tinham uma pelugem da mesma cor, que também predominava em seu batom. Usava muita maquiagem no rosto e a camiseta era claramente alguns números menores para que parecesse baby look. Era loira, de olhos verdes. Ambos muito mais falsos do que o cabelo e os olhos de Nicka.

- Então, garota. – começou a menina em tom enojado direcionando-se para Sorah. – Sabe aquele garoto que você acabou de dar em cima?

Sorah fez uma cara de quem não havia entendido nada. Sabrina soube muito bem que era devido à expressão “dar em cima”, mas a menina teve certeza de que era apenas uma cara de alguém bem lerda pensando nas últimas coisas que fizera até então, para encontrar na memória o que lhe era pedido.

- É meu namorado. – informou, arrancando a expressão de sorriso falso do rosto e partindo para um tom mais nervoso, que irritara mais à Sorah.

- Meus pêsames. – emendou Sorah, deixando muito claro que nunca quis nada com o rapaz.

Hebel teve de conter o riso com a cara de nojo feita pela patricinha nos momentos a seguir. Em sua expressão podia-se ver um ar de vingança. Ninguém quase rouba seu namorado e sai feliz. Portanto, assim que bateu os olhos em Dart, deu um longo sorriso, tentando atraí-lo. Obviamente também pensara que ele fosse namorado de Sorah, e agora queria fazê-la passar pela mesma situação pela qual passara. E até daria certo, se o garoto em questão não colaborasse nem um pouco. E muito pelo contrário, passou o braço em torno do pescoço de Sorah, deixando claro que, se eram namorados, ele não queria abrir mão da condição por uma menina como aquela. E “aquela” tomou novamente a expressão de nojo e virou as costas, tal como os rapazes anteriores.

- Meus parabéns, primeiro dia de aula e já falaram com a elite da escola. Eu mesmo nunca disse um oi. E vocês já deram o maior fora neles… - admirou-se Mirian.

Tanto Sorah quanto Dart ignoraram o comentário, quando o sinal tocou para que voltassem á sala.

A aula seguinte causou certa curiosidade em Sabrina. Belthor havia avisado para ficarem de olho em Roberto e Viviane, pois pareciam ter ido à Ilha Eid sozinhos. Seria possível terem um poder tão grande sem ao menos saberem e ainda por cima usá-lo corretamente? Essa idéia sumiu de sua cabeça tão rápida como veio, absurda como tantas outras que lhe ocorreram.

Roberto já estava na classe quando o primeiro aluno entrou, observando o mural azul com trabalhos anteriores. Usava uma calça jeans com um tênis da moda. Seus cabelos estavam do mesmo tamanho desde a última vez que o viram, presos num rabo de cavalo. Da mesma cor que a camisa preta social que também usava.

Ele se virou assim que percebeu que alguém entrara na sala. Caminhou rapidamente até sua mesa e ficou parado ao lado dela até que todos estivessem sentados em seus devidos lugares. Sua maleta marrom colocada melimétricamente ao lado de seu estojo da mesma cor e os livros de todas as séries em que daria aula naquele dia.

Sabrina e os demais entraram entre o restante dos alunos. E mesmo se misturando, os olhos do professor foram parar neles.

- Então vocês voltaram mesmo? Sejam bem vindas. E quanto à…

- São meus primos. –explicou Sabrina cansada de dar a mesma resposta para a mesma pergunta. – Sorah, Hebel, Dart e Nicka. E sim, - continuou ela antes que ele pudesse abrir a boca – Nicka é um nome grego. E não, não é Sarah. É Sorah.

- Na verdade eu ia perguntar pra onde vocês foram, mas abrigado. Essas também eram curiosidades minhas. Agora se sentem.

Mirian fora a primeira a notar os olhares de Sorah e Dart para o professor enquanto se sentavam. Pareciam irritados, olhando torto, como se ele fosse um inimigo tentando se disfarçar de amigo, sem muito sucesso. Mas tirou isso da cabeça, levando em conta que eles era assim desconfiados com todos. No entanto, eles assim permaneceram, observando-o como dois alunos santos e aplicados, prestando atenção no professor, que, por sua vez, também não tirava os olhos desses dois alunos. Após a aula não comentariam nada de especial com mais ninguém. Talvez não fosse realmente algo muito importante, ou talvez quisessem guardar segredo. O fato é esta aula havia se passado como um super jato, e todos sentiram como não pudessem ter tido a chance de observá-lo por mais tempo.

Antes que pudessem notar, Lia já estava em sua Van esperando por eles na saída. Ela não tinha nenhuma aula para dar naquele dia e passara a manhã em casa. Mirian se despediu, dizendo que iría para sua casa passar uns dias por lá. Haviam coisas para serem ajeitadas. E sentia saudades de lá tanto quanto Sabrina sentia de sua casa. Sabia bem a tabela de lutas do torneio, até porque, seria sua a próxima luta envolvendo alguém do grupo. Por isso, estava tranqüila por alguns dias. Mais de uma semana, aliás. De acordo com a tabela, no sábado seguinte seria a próxima luta do torneio e não os incluía. Só no dia seguinte, domingo, lutariam.

O almoço estava pronto quando chegaram, graças à falta do que fazer de Lia. Inclusive, ela havia deixado a televisão ligada quando saiu. Estava no canal de desenhos infantis. Realmente a manhã por ali havia sido muito entediante.

Hebel notou que Sorah estava mais nervosa que o normal. Notou também que Dart a observava continuamente, enquanto os olhos dela evitavam os dele. Voltaram muito estranhos do primeiro dia de aula. Sorah bufava mais que o esperado. Entrara no quarto de visitas e não foi almoçar. Deitara-se na cama e ali permaneceu, de olhos abertos, porém, com expressão de ódio. Já Dart se perguntava se deveria ir até ela. Foi só quando o mesmo caminhou até o quarto de visitas que Sabrina notou a ausência de Sorah. Isso era muito mais que o suficiente para tirar a fome e o ânimo de Sabrina. Esta humana seguiu Dart, sem deixar ser vista, e parou ao lado da entrada do quarto, para ouvi-los.

- Só porque isso aconteceu, não quer dizer que seja fraca. – consolou Dart lá dentro.

- Me deixe em paz. – o som da cama rangendo fez Sabrina imaginar que ela virara-se de costas para o rapaz.

- Ele pode não ser…

- ERA SÓ UM HUMANO. – rugiu Sorah interrompendo-o - E se eu não pude calcular o poder de um humano comum, algo está errado, não acha? – perguntou, em tom afirmativo.

- Sorah, é besteira ficar preocupada com isso.

- Besteira? Dart, ser derrotada por um humano não é besteira pra mim. E há tempos atrás também não era pra você.

- Você não foi derrotada por ninguém. De onde tirou isso?

- Dart, de todo o meu reino, eu sou a melhor em calcular energia adversária. Mas ele conceguiu ocultar a dele! Deu pra entender? Eu não consegui descobrir a força dele!

- É estranho. Mas não o suficiente pra você se preocupar tanto. Então vamos almoçar. – animou Dart, tentando fazê-la se levantar.

- Não estou com fome. Pode ir.

Vencido, Dart se levantou da borda da cama, onde estava sentado. O som dos passos fez Sabrina assustar-se e sair em disparada para a mesa, onde seu prato permanecia cheio. E todos que estavam sentados a observavam curiosos, esperando alguma coisa que ela fosse falar. Mas a chagada de Dart a impediu. Mais treinado com talheres serviu-se sozinho e não levantou a cabeça até que acabasse de comer. Enquanto todos os demais ainda o observavam, mesmo sendo absolutamente ignorados.

- Hoje vocês devem ter educação física não? – lembrou Lia para quebrar o silêncio.

- Eles ainda não se inscreveram em nenhuma aula. – concluiu Sabrina. – Precisamos ir conferir os horários e os dias das aulas.

Essas aulas eram todas à tarde, sob sol extremamente forte, motivo muito mais que suficiente para que a maioria das meninas que estudava no colégio sempre arranjasse uma desculpa para não comparecer. No entanto, agora, acostumadas com muito esforço físico, tanto Mirian quanto Sabrina estavam dispostas não só à comparecer, como a dar o melhor de si, uma vez que tinham chances de superar a maioria das outras poucas alunas que ainda iam à aula, talvez por pura falta de criatividade em dar uma boa desculpa. Ou simplesmente porque educação física fosse a única matéria que salvava as demais. Se alguma delas disser que gosta de correr no sol, mente. Isso é um conceito geral naquele colégio, a não ser por umas duas ou três meninas que tem mesmo porte atlético, e que pretendem seguir carreira no esporte. O que é bem raro e não se leva em consideração. Eram garotas sem jeito nenhum pra matemática, mas que se sentiam em casa numa quadra de esportes ou num tatame. Aliás, artes marciais é a aula com menos meninas, mas com maior quantidade de alunos. Era aula mista, e a maioria dos meninos que a praticava também treinava fora, fazia academia ou tinha faixa avançada. O que não é muito legal de se enfrentar logo no início sendo menina. A menos que se seja como a única garota que pratica artes marciais e realmente leva a sério. Era uma faixa marrom que botava medo num grande grupo de garotos. E que Sabrina estava morrendo de vontade de enfrentar naquele momento, apenas para saber como anda sua força em relação aos humanos normais. Ela entraria no curso de Capoeira, já havia decidido isso com Mirian. Mas esqueceram-se colocar seus nomes nos horários, e agora poderia perder uma possível aula que tivesse naquela segunda-feira.

Após o almoço, ninguém estava realmente preocupado em saber o que Sabrina havia ouvido ao seguir Dart. Apesar de que a questão ainda martelou por um tempo. Chegou à uma hipótese em que resolveu acreditar. Sorah se referia à Roberto, o professor de História. Afinal, a humana também notara, mesmo que por pouco tempo, o jeito curioso com que Sorah o observava durante a aula. Mas chegara à estúpida conclusão naquele momento de aula, que ela estaria apenas interessada em aprender sobre a vida das pessoas que viveram à muito tempo atrás naquele mundo que mal sabia o nome. Mesmo que nem mesmo a humana que sempre vivera ali nunca tenha se interessado muito.

Hebel talvez tenha sido a pessoa que por menos tempo se manteu assustado quando Sabrina ligara o som do computador no último volume. Nicka até gostara da música, porém esta, na altura em que estava, machucava demais os ouvidos dos lifings presentes, que possuem audição muito superior à humana. O que levou Sabrina a baixar o som antes de Lia vir lhe pedir isso, com a desculpa de que os vizinhos viriam reclamar. A verdade é que nunca vieram, muito menos viriam um dia. Uma vez que as casas ao lado estavam ocupadas por estudantes da faculdade famosa que ficava bem perto, e estes jovens costumavam dar algumas festas em casa, com direito à infração da lei devido à musica alta em horário não permitido. Mas em sua posição de professora, Lia vinha com o mesmo discurso. “Eles precisam estudar, não podem ficar aturando seu péssimo gosto musical no último volume o dia inteiro”. É claro que Sabrina revidava, mesmo que em tom inaudível. “O que eles precisam é de silêncio pra curar a ressaca”.

Não haviam tido lição de casa no dia, portanto Sabrina tirara a tarde para passar conceitos básicos de informática aos “primos”, para que mantivessem a aparência de alunos comuns. Ainda mais tendo dentro de casa a professora de Informática. Nunca haviam visto uma máquina como aquela antes, na Ilha Eid. Era parecida com a televisão, mas parecia ser possível controlar o que era exibido na tela, o que era ainda mais estranho do que as pequenas pessoas falando e conversando dentro daquela caixa de plástico. E no dia seguinte teriam aula de informática. Além de Matemática, mas isso Sabrina preferia esquecer. Nem se lembrou de passar mais conceitos sobre a matéria aos primos. Se bem que quem precisava rever conceitos era a própria. Mesmo que a professora tivesse lá uma clara preferência por ela, ainda ia muito mal na matéria. E só não ficava para recuperação porque Viviane acabava sempre a passando de ano direto.

Hebel se maravilhava cada vez mais conforme Sabrina pintava a tela com as mais variadas cores através do paint. E tentava fazê-los menos surpresos com as palavras escritas no Word, para que no dia seguinte não passassem muita vergonha, caindo da cadeira, por exemplo, quando usassem a Internet.

Assim, o dia passou rápido para os demais que acabavam se entretendo com a máquina estranha. E Lia nem desconfiava de nada. As coisas continuavam dando certo. Apenas para contrapor isso, Sabrina iniciou uma suspeita quando, ao passar na frente da televisão para desligá-la, pois não havia ninguém assistindo, viu uma notícia em enfoque principal no telejornal. Algo matava dezenas de pessoas num país próximo. As testemunhas falavam de um homem alto, mas não podiam ver seu rosto, pois ele sempre sumia. As autoridades locais estavam confusas sem ter o que caçar.

- Zigor…? – pensou Sabrina consigo mesma.

Após alguns segundos, repensou, negou para si mesma e desligou a televisão.


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