A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 15
Lutas decorrentes




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Sabrina não dormiu a noite toda. A imagem de Ion morto à sua frente não saía de sua cabeça. Matara uma criatura! Matara um ser! Tirara a vida de alguém… Tanto que pensava que era uma crueldade matarem gente naquele torneio cruel e ela mesma fizera isso.

E as palavras de Mirian ainda giravam ao seu redor. O que teria ela visto na mente de Dart? O que a machucaria tanto assim?

Tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo… e a luta desse mesmo rapaz seria em apenas três dias, por alguma razão. As demais estavam marcadas para o espaço de tempo de uma semana. E a luta de Nicka e Mirian, em pelo menos dois ou três meses, contra Nely Férius... Seriam mesmo capazes de destruí-lo? Seria assim tão fácil? Os romances que lia diziam que não. Seu coração dizia que sim. Mas a razão teimava em discordar. Estava dividida, não sabia que parte de si ouvir, que parte ignorar. Mas era tão difícil ignorar o coração… Mesmo que se ele estivesse errado ela se decepcionaria tanto. Era uma menina facilmente impressionável. Fazia com que tudo parecesse impossível. Fazia-se de pessimista, para que, se as coisas realmente dessem errado, não se chocaria tanto. Mas se dessem certo, se impressionaria e ficaria muito mais feliz do que se esperasse por isso. Sempre achou errado pensar assim, sempre no lado ruim, mas foi desta maneira que tem evitado sofrer. Mas a vida de ninguém nunca esteve em jogo. E era cruel e terrível pensar que Mirian e Nicka morreriam.

E Sorah, enigmática. Tantas vezes uma ameaça, tantas vezes um refúgio. Elas ainda não haviam conversado sobre a reação de Sabrina à morte de Ion. O passado da lifing era um mistério para todos, à não ser por Dart e ela mesma. Por que era tão cruel? Por que seus pensamentos são tão cruéis? Que ligação ela tem com os guerreiros de Yume que tempos antes demonstrou conhecer tão bem? E os odiava tanto quanto eles a odiavam. E mesmo assim, era uma ex-guardiã. Se ninguém queria uma lifing como guardiã, por que fizeram de dar o colar a ela e elegê-la uma? E seus olhos durante a batalha daquele dia… Piscaram em escarlate por um momento, antes de matar aquele lifing. Adquirira uma outra personalidade, praticamente. Havia muitos mistérios rondando a jovem que agora dormia tranqüila na rede ao lado da sua. A lua invadia o aposento sem rodeios, instalando-se num canto, junto ao frio da noite.

Quando adormeceu, Sabrina ainda pensava em tudo isso. Acordou pensativa quando se lembrou de tudo que lhe veio à mente durante a noite. E nem por um segundo havia pensado em casa. Depois de tanto tempo ali, sentia que “aquilo” era sua casa. É claro, não gostava nem um pouco de lutar por sua vida, mas sentir-se importante, lutar por algo que não fosse o próprio nariz lhe empolgava. Ter o poder de salvar dezenas, centenas, milhares de milhões de pessoas. Mas ao mesmo tempo em que essa sensação boa lhe invadia, uma outra aparecia de intrusa, meio que nas costas da coragem. Por mais que não quisesse admitir, ela se chamava medo.

Pela primeira vez, acordou antes de Sorah. Mesmo que apenas alguns minutos. Estava se acostumando à rotina.

Esperou a lifing estar completamente desperta para tocar num dos assuntos que a intrigavam.

- Sorah… você disse que ia conversar comigo… lembra-se? Durante a luta…

- Você estava… assustada.

- Sim. E você também.

- Não. É que eu… me lembrei de uma coisa, foi só isso.

Sabrina achou ridículo Sorah ainda não admitir qualquer sentimento que considerasse ruim, como amor, amizade, compaixão ou simplesmente, preocupação.

- E que coisa seria essa?

Sorah levantou-se e foi até a parte do quarto que todas as noites era iluminado pela luz da lua. Sentou-se ali.

- Quando eu tinha uns… não sei… quarenta e cinco ou cinqüenta anos. Eu… matei pela primeira vez. Foi uma humana adulta. Ela tinha um espelho na casa dela. Eu vivia me olhando, tentando entender por que meus olhos eram dessa cor, por que meus dentes eram desse tamanho. Eu pensava na possibilidade de ser um monstro…

 

“Só mais alguns passos e eu verei a mim mesma novamente… É aquela casa, aquela onde eu me vejo. Não sei o que sou, não sei onde devo ir. Eu sou um monstro? O que eu sou? Aquele pedaço de vidro pode me dizer? Esse espelho vai me dizer o que eu sou? Dúvida tola. Saia da minha cabeça e me responda ‘O QUE EU SOU?’”.

“A porta está aberta. A porta está sempre aberta. Os móveis sempre tão bem arrumados, sempre tão limpos. Mas não é isso que eu procuro, o que eu procuro está mais além”.

“Outra porta, só mais uma. O clique seco aumenta minha respiração. Sim, ele está lá. O espelho ainda está lá, ele nunca saiu de lá. Minha face, meu monstro, minhas dúvidas e tudo que eu sempre desejei, apenas alguns passos de distância. Apenas alguns segundos de distância”.

“Sim, ele está agora ao meu alcance. E eu posso tocá-lo. E eu posso vê-lo Minha pele pálida, meus olhos amarelos... por que são assim? Por que eu sou assim? Esta sou mesmo eu?”.

“Ouço novamente o clique da porta sendo aberta. Ela faz minha respiração aumentar novamente e minha atenção tão antes reservada somente à mim mesma ser desviada para a mulher que entra. ‘SAIA DAQUI, CRIATURA’  ela grita. Está chorando. Por que? Está com medo de mim? Minhas palavras, tão inconscientes como eu mesma me escapam sem querer. ‘mulher, quando se olhas neste espelho, vês um monstro?’ Ela não responde. Pega o primeiro objeto ao seu alcance e tenta me acertar como tantos outros já fizeram. ‘ por que não me responde, senhora? O que eu sou? O que você é?’. Mas ela não escuta. Como conter o sentimento que se apoderou de mim nos seguintes instantes? Ela não me responde, não conversa comigo. Ela quer apenas minha morte. Quer apenar ver morte. Eu darei isso a ela”

“O sangue respingado em minha face não me incomodaram. Eu sorrio, saltando por cima do corpo imóvel, deixando meus pés colorarem-se um pouco com o sangue que escorria da mulher. Volto ao espelho. Este líquido, isto que está em meu rosto… O que é isso? O que eu fiz? Dei a morte à ela como me pediu. Mas o que… Por que este meu olhar tão frio, tão feliz ao mesmo tempo de ter me livrado da mulher? Por que eu sorrio? Agora este sorriso me some, dá lugar à expressão de desespero. E essas gotas respingadas sobre minha face pálida finalmente me dão uma resposta. Finalmente tudo fica muito claro para mim.’Eu sou um monstro’. E eu soube, naquele momento em que olhei para o corpo,, que não era por causa dos meus olhos ou dos meus dentes.”

 

Sorah não contou à Sabrina nada disso. Apenas lhe disse que matara a mulher porque ela a incomodara. Aquilo havia sido o início de tudo. Tudo? Tudo ainda é demais, pois todos têm uma segunda chance. Mesmo que a lifing não a visse e seu orgulho lhe cegasse.

- O que a Mirian viu na mente de Dart ontem?

Sabrina parou alguns segundos, estranhando que ela lhe perguntasse isso.

- Ele não te contou?

Sorah não respondeu. E também não insistiu no assunto. Estava nervosa e irritada, como sempre. Saiu bufando do aposento. Sabrina a seguiu de início, mas parou na porta do quarto de Mirian e Nicka. Bateu algumas vezes e entrou, sem esperar que abrissem.

As duas estavam rindo, ambas sentadas em suas redes, de frente uma à outra. Nicka, que estava na direção da porta, viu Sabrina e acenou, pedindo que entrasse.

- Do que estavam falando?

- Nada de mais. – respondeu Mirian sonolenta. – E você e a Sorah?

- Ela não do tipo que fala muito, sabe?

As três riram até Nicka se pronunciar.

- Ela é muito egoísta e resmungona.

- Está começando a me irritar. – concordou Mirian.

- Como se ela se importasse. – balbuciou Sabrina.

Não havia muitos assuntos a serem discutidos. Passavam o tempo todo juntas, tudo que acontecia a uma, acontecia à todas as demais.

- Mirian… você ainda quer ir pra casa?

- Se eu voltar, não estarei voltando pra casa.

- Como assim?

- Sabe… eu não tenho ninguém “do outro lado”. Aqui eu tenho você, que é minha melhor amiga. Quem mais eu iría ver no nosso mundo? Aqui é muito mais a minha casa. Não tenho que ir pra escola, todo dia acontece algo diferente... A única coisa que eu temo, é enfrentar o Nely. De resto, o que vier é lucro.

Sabrina sorriu. Também havia se sentido assim, mas não queria admitir. E agora, com sua melhor amiga dando-lhe apoio, poderia dizer para si mesma que não queria voltar, a não ser por Lia.

- A luta de Hebel e Dart vai ser depois de amanhã. – disse Nicka com a tabela na mão. – Contra uma dupla chamada Olie e Kore. Nunca ouvi falar.

- Se Sorah ou Dart os conhecessem, teriam dito, não é mesmo?

- É…

Enquanto Mirian e Sabrina ainda riam de assuntos banais, Nicka continuava observando a tabela. O nome de Nely Férius atraía sua atenção e a fazia pesar em ter de enfrentá-lo.

E o assunto foi novamente desviado. Sabrina não quis tocar no assunto dos pensamentos de Dart novamente. Sabia que Mirian não contaria a ela nada que a machucasse. Fosse o que fosse.

Sabrina voltou a seu quarto algumas horas depois. Sorah não estava lá. Ignorou o fato e sentou-se na cama, solitária. Era pôr do sol e a cor alaranjada invadia o quarto, tal como a lua mais tarde o faria.

Não esperou que Sorah voltasse para tentar dormir. Mas quando ela chegou, ainda não tinha adormecido. Fechou os olhos e fingiu estar dormindo. A lifing a ignorou e se deitou, sem mais. No entanto, não fechou os olhos. Ficou observando a Lua que pairava no céu através da janela. Seus pensamentos causavam curiosidade em Sabrina. “O que há de tão obscuro no passado dela?”.

Sorah murmurou algo incompreensível e fechou os olhos, depois de suspirar cansada. Adormeceria alguns minutos depois.

A única coisa que podia haver em comum naquelas duas garotas, seria a imensa curiosidade em saber os pensamentos de Dart. A idéia não lhes saía da cabeça. E logo Sorah, que sempre se orgulhou por conhecer o garoto mais do que o próprio… Mas não se importava tanto com o fato, ou não admitia se importar o suficiente para obrigá-lo a lhe contar. Quanto antes afastasse a idéia da cabeça, mais rápido ela a deixaria em paz.

Mas Sorah não ouvira as palavras que Sabrina ouvira de Mirian. “Não me peça pra machucar seu coração”. Não soube o que elas queriam dizer, nem muito menos criou hipóteses. Machucaria-se demais com os primeiros pensamentos, e nunca chegaria a uma conclusão.

O dia seguinte passou rápido demais para que notassem. Eles passavam mais rápido agora, que suas lutas se aproximavam. O que, à Nicka e Mirian, significava, mais que aos outros, uma morte quase certa. As duas treinavam como nunca o dia todo, adentravam na noite e o som de árvores ruindo poderia ser ouvido até bem tarde. Amanheciam ainda cansadas e com terra em seus rostos. Aproveitavam enquanto o sol estava mais forte para se lavarem num riacho bem próximo ao estádio. Devia ser o mesmo pelo qual passaram no território humano dias antes. Naquela tarde, Mirian fora se banhar um pouco antes de Nicka.

O dia seguinte presenciaria a luta de Dart e Hebel. Seus adversários eram desconhecidos a ambos. Sabiam apenas seus nomes, Olie e Kore. O que não mudava muita coisa. Se vencessem, enfrentariam algumas semanas depois, Sorah e Sabrina.

Da mesma forma que na luta das duas, a multidão já estava acomodada muito antes da batalha começar e os lutadores se aproximarem do tatame. E o mesmo estardalhaço era feito.

Sorah o esperava na entrada, apoiada na “masmorra”, de braços cruzados. O restante do grupo guardava lugar nas arquibancadas.

Hebel olhou para a lifing apreensivo e passou direto por ela, de cabeça baixa. Sequer reparou quando Dart parou de seguí-lo para falar com Sorah.

- Boa sorte. – balbuciou a lifing.

Ele aceitou as palavras, olhando nos olhos dela. Puniu-se por alguma razão. Desejava contar sobre seus pensamentos, O que havia dito e feito durante o tempo que passou em seu reino. Mas como já havia decidido, não era hora.

Lembrou-se da conversa com Mirian do dia anterior. Esperava por ela naquele riacho, onde estava ciente de que ela acabaria indo.

Não foi pouco o susto da menina ao vê-lo ali. Desejou correr o mais rápido possível. Pensou se ele não a estaria esperando para puni-la de ter lido sua mente. Mas seus olhos calmos e serenos não indicavam agressividade, apesar da cor âmbar terem-na feito cair na lama da margem do riacho.

- Você… contou à Sabrina? – murmurou Dart sem vontade.

Mirian esforçou-se para ouvir a voz do lifing entre o barulho da corredeira, enquanto levantava-se, apoiando num broto verde, que inevitavelmente se quebrou e a levou novamente ao chão molhado.

- Não… quero dizer… não tive coragem. – respondeu-o, nervosa. – E… não me peça pra dizer, por favor.

Dart a encarou novamente, da outra margem.

- E por que eu faria isso? Para correr o risco de Sorah descobrir?

- Ela… também não sabe?

- É claro que não. –respondeu Dart, alterando a voz, como se aquela fosse a coisa mais óbvia do mundo.

- Ainda bem… eu não queria que a Sabrina…

- O que tem a Sabrina a ver com a história? – interrompeu-a, achando demais a ligação que Mirian criara entre ele e a humana. – Nõo está pensando que… a pessoa a quem eu… me referia…

- Não! – foi a vez de Mirian interrompê-lo. – Sei muito bem a quem você se referia. Ouvi você dizendo claramente.

- Então…? O que tem a ver a Sabrina com tudo isso? Eu só lhe perguntei se ela sabia pois como ela e Sorah estão na mesma dupla, ela poderia contar.

- Você não sabe de muita coisa.

Dart sentiu um rastro de raiva querer transparecer por seu rosto para aquela humana impertinente. Se havia uma coisa que odiava, era saber menos que um humano.

- E o que eu não sei? – desafiou.

- Entender os sentimentos humanos. –respondeu imediatamente. – Não preciso te contar, sabendo ou não, você não vai dar a mínima importância.

- Se não faz diferença pra você, deixe que eu decida se quero saber ou não.

Mirian riu um pouco, dando-se o luxo de atrever-se para o lifing a sua frente.

- É a você que não faz diferença. A mim poderia custar minha melhor amiga.

Dart ficou em silêncio, sem ter o que dizer o pouco se importando com isso. Mirian, sem muito esperar que ele continuasse, deu as costas e foi embora, sem saber o que pensar de toda aquela conversa.

 

E agora, perto da batalha iminente, Dart sentia-se mais seguro com relação ao que Sorah sabia. Afinal, pouco antes de falar com Mirian, todos os olhares da lifing pareciam perturbá-lo, e ele tinha quase certeza de que ela já estava ciente de tudo. Aliviara-se por ser apenas ilusões, e afastara de seus já suficientemente preocupados pensamentos, tudo que Mirian dissera sobre Sabrina.

Ele caminhou de cabeça bem erguida para o tatame. Seu oponente ainda não havia chegado e o único que já estava ali era Hebel, nervoso e apreensivo, apertando as mãos umas nas outras, com cara de dor de dente.

A multidão em volta deles parecia pulsar, dando total apoio à… Dart? Hebel era completamente ignorado, talvez por ser humano. Mas todos aqueles lifing nas arquibancadas gritavam e urravam pelo favorito oficial.

“DART, DART, DART, DART!”.

Logo entenderiam o motivo. Dois homens corpulentos entraram sem se importar com os gritos da multidão, que inesperadamente mudou-se para vaias. O mais alto, negro, balançava a cabeça de um lado para o outro, estralando ruidosamente o pescoço. Vestia apenas uma calça negra de tecido grosso e botas. O menor, talvez seu pupilo, era um jovem de aparência agressiva, Tinha gases amarradas na cintura e nas mãos, como se fossem luvas. Mantinha-as fortemente fechadas, e pulava, mesmo fora da luta, alternando os pés. Dava a impressão de ser muito rápido. Eram ambos humanos.

A multidão estava com Dart para não estar com os humanos. Hebel, sendo também desta raça, era ignorado.

A juíza Fi se aproximou o suficiente para que os lutadores ouvissem seus gritos em meio à multidão, mesmo que fossem apenas ruídos abafados.

- Esta é uma luta um contra um. O lutador deve permanecer no tatame até estar desacordado, morrer ou vencer, quando é substituído pelo parceiro. Sem limite de tempo. É proibido receber qualquer ajuda de fora. Jogar armas durante a luta para o parceiro que estiver lutando também é proibido. Vale apenas dar conselhos de vez em quando. Quando o adversário estiver no chão eu começarei a contagem. É proibido atacar o inimigo se ele estiver caído. A pena para qualquer infração é a derrota automática do infrator. – repetiu a Juíza, fazendo o mesmo discurso que à Sabrina e Sorah, mas num tom enojado, devido à presença majoritária de humanos.

Dart teve certeza de que o lutador mais forte era o mais alto. Era muito óbvio pelo tamanho de seus braços. Portanto, subiu no tatame sem dar satisfação nenhuma à Hebel assim que o humano gigantesco se aproximou.

De onde estava, Sorah tentou gritar. Mas seria milagre ser ouvida no meio de tantas vaias da multidão ao redor.

- A primeira luta entre Dart e Olie vai começar! – gritou a Juíza, se afastando do tatame. – LUTEM!

Os olhinhos pequenos e negros de Olie viraram-se imediatamente na direção do lifing assim que Fi deu o sinal. E de solavanco, deu um golpe primário e sem rumo em Dart, que se desviou surpreso pela facilidade.

O gigante pareceu enfurecer-se por não acertar nada além do tatame em sua tentativa frustrada. Em um ataque de fúria, desferiu diversos golpes inúteis contra Dart, que continuava a não acreditar na estupidez dos ataques.

Sem muito mais se importar e apenas começar a suspeitar da verdadeira força do humano, o olhou nos olhos, tentando ver algo que indicasse que ele estava tramando alguma coisa. Mas neles só havia a mais pura fúria crescente por não acertar Dart.

Passou os olhos correndo por Sorah. Por um segundo a viu apontar algum lugar. Voltou a visão nela o mais rápido que pôde. Ela gritava e apontava desesperadamente para algum lugar fora do tatame. Dart passou sua visão pelos arredores, até encontrar a face suspeita de Kore, o humano jovem. Ele sorria despreocupado.

Olie não era pupilo de Kore.

Só então Dart notara a besteira que havia feito. O homem com quem lutava era apenas uma distração. Quando o destruísse, Kore, o verdadeiro líder e mestre daquela dupla, lutaria contra Hebel, mais fraco. E tinha muito mais chances de vencer.

As regras diziam claramente, que o lutador deveria sair do ringue assim que vencesse a luta, para dar lugar ao outro. Sem alternativa, Dart deu uma cotovelada forte na têmpora de Olie. Ele caiu pesadamente contra o chão e não saiu dali até a juíza terminar de contar os dez segundos ele ser carregado por Kore até o chão.

O jovem aproximou-se de Dart sorrindo ironicamente. Não deixou que ele descesse antes de gritar para fazer o lifing ouvir em meio ao barulho da multidão que agora, mais do que nunca, gritava o nome de Dart.

- Espero que Olie não morra. Tem sido um ótimo saco de pancadas.

Dart rosnou para o humano, que continuava com o sorrisinho irritante na face. Desceu do tatame sem dizer nada à Hebel, para não assustá-lo.

- Lutadores! Ao centro! A segunda luta entre Kore e Hebel vai começar.

Animado com a facilidade com que seu parceiro derrotara um dos desafiantes, Hebel subiu contente, ainda se deu ao luxo de fazer uma graça para a multidão, agitando os braços. Mesmo sendo humano, devido ao fato de ter um lifing como par, fez bastante sucesso e logo seu nome era gritado tanto quando o de Dart era antes.

- Esses monstros… - comentou Kore – Num instante te amam, no outro de matam…

- O que quer dizer com isso? Só porque você não é favorito não tem que culpá-los. – gritou Hebel para ser ouvido.

- Sim, mas se eu te matar, eles vão se contentar do mesmo jeito. Não importa quem ganhe, para eles, a morte de um dos oponentes é o suficiente.

- Se acha isso, por que está nessa competição?

- Para mostrar a esses monstros malditos que humanos podem ser muito mais forte que eles.

A juíza se aproximou encarando os dois. Em seguida, ergueu um dos braços e deu sinal para que a luta começasse.

Hebel e Kore se encararam alguns minutos, apenas circulando um ao outro. Até a multidão começar a se enfurecer e vaiar a falta de ação. Sem mais, Hebel sacou a espada e partiu pra cima do outro humano. Ele se assustou com o golpe, mas conseguiu tempo para se desviar. A espada quase arrancou um pedaço de seu nariz. Mais alguns milésimos de segundo e Hebel o teria acertado.

Kore pulava alternando as pernas sem parar, imitando um lutador de boxe sem luvas. Sorriu ao colocar a mão sobre a face e depois conferi-la, para checar se o golpe havia tirado sangue.

- Você quase me acertou! – riu ele.

Hebel ignorou e repetiu a cena.

- É, parece que desta vez também foi quase. –zombou.

Irritado, Hebel lhe disparara uma seqüência de ataques como os dois anteriores, certo de que, de ao menos um Kore não se livraria. Mas o humano fechara os olhos e sorria a cada desvio conseguido. E continuava alternando os pés.

- Olha! Deve ser meu dia de sorte… Mas tenho certeza que não escaparei do próximo ataque.

Hebel bufou de raiva e o atacou ferozmente. Tamanha foi a força que usara, já estava exausto quando virou-se para ver se o havia pego desta vez.

- Veja só, eu escapei novamente. Deve haver algo errado. – ironizou Kore.

Pingando suor, Hebel mirou seu adversário, arfando. Seu coração saltava rapidamente, devido ao esforço. E seus músculos já se contraíam doloridamente. O outro não dava menção de atacar. Apenas se divertia irritando ainda mais Hebel com seu sorrisinho simples. Este viu seus olhos se fecharem lentamente. Quando os abriu, assustado, Kore já não estava parado à sua frente.

- Vamos ver se eu tenho mais sorte.

Esta voz foi a última coisa que ouviu antes da dor preencher seus pensamentos. Levara uma joelhada no estômago não soube nem de onde. Seu corpo dobrou automaticamente. Foi quando recebeu uma cotovelada no nariz. E seus sentidos lhe abandonaram por três segundos. Foi só então que reconheceu a voz como sendo de Kore. Reconheceu também o lugar onde estava. Caído, no chão, vendo a juíza se aproximar para fazer a contagem.

Hebel levantou o tórax, se apoiando com o cotovelo. Pôs a mão no estômago e tossiu uma boa porção se sangue. A movimentação do rosto lhe causou uma dor aguda. Levou a mão imediatamente ao rosto. Sentiu o nariz quebrado.

- UM! DOIS! TRÊS!… – começou a juíza assim que chegou mais perto.

Hebel se levantou corajosamente. Seu ponto fraco era exatamente a resistência. Se não derrotasse o inimigo nos primeiros golpes, os que levaria em seguida, seriam sua sina.

- Você ainda não desistiu? – indagou Kore impressionado.

Dart, observando tudo, sabia que seria muito difícil que Hebel se recuperasse. Um humano como tal, não tem muitos truques a esconder. Não pode usar magia pois não possui energia para isso. Também está fraco demais para usar toda força que tinha no início. Se não o acertou até então, quando estava cem por cento, as chances de acertá-lo e ainda causar algum efeito eram mínimas no momento.

- Eu vou ganhar. – bradou Hebel limpando o sangue da boca. – Porque minhas causas são muito mais nobres que as suas!

Kore riu longamente. Ainda correu velozmente e deu um soco no rosto de Hebel, que caiu, mas se levantou logo em seguida, um pouco mais atordoado.

- Estou aqui para defender nossa espécie! O que um humano que anda com um lifing como guarda costas poderia ter como causa? E além do que… uma causa não leva a vitória. Tudo que pode ajudá-lo é a pura força. Já que a natureza fez questão de não nos dar uma energia elemental!

- Eu não estou aqui para defender os lifings, tão pouco os humanos. Estou aqui para ajudar a salvar ambos! E qual seria o desastre se nós, humanos tivéssemos além da inteligência e força bruta, outro meio de matarmos uns aos outros! – gritou Hebel, correndo na direção de Kore com suas últimas forças.

- Salvar-nos?

Foi a última coisa que Kore disse. Indagada para si mesmo. A questão morreu em sua boca.

A espada de Hebel, afiadíssima, clamava por sangue. Kore estava imóvel, com as palavras de seu adversário. Sem chance alguma de se defender ou desviar de qualquer que fosse o ataque. No entanto, a lâmina parou à dois centímetros da jugular, mais exposta que nunca. Os monstros nas arquibancadas vaiaram pela falta de sangue.

Ainda cheio de fúria, Hebel exibiu a espada bem à frente dos olhos imóveis de Kore, com o gume virado para cima. Abaixou um pouco até o nariz e pressionou, até quebrar.

- Isso é só pra eu descontar minha raiva. – bradou entre os dentes.

Em seguida, um forte chute, que gastou a energia toda que ainda tinha, arremessou Kore para fora do tatame.

- Isso é pra eu ganhar. – balbuciou Hebel para si mesmo.

A juíza iniciou a contagem. É claro que Kore ainda estava muito bem vivo, mas não se levantou naqueles dez segundos. Quando esse tempo se passou, Hebel perdeu parte dos sentidos e suas pernas dobraram, sem forças. Ele ainda ajoelhou-se no chão, antes de desmaiar chocando o rosto com o nariz já quebrado contra o tatame.

Dart correu até ele. Logo todos os demais fariam o mesmo, a não ser por Sorah. A juíza anunciaria sua vitória do mesmo jeito. E todos nas arquibancadas uivaram de ódio, por não presenciarem uma morte sequer.

- Precisamos dar um jeito no nariz dele.

Seu rosto estava coberto de sangue quando foi finalmente enfaixado com as gases guardadas em seu aposento. Ainda não havia despertado, e foi deixado sobre os cuidados de Sabrina, Mirian e Nicka, enquanto Dart ia atrás de Sorah, que havia sumido desde o fim da batalha.

- A próxima luta vai ser daqui uma semana. – comentou Nicka pensativa enquanto marcava a vitória de Dart e Hebel na tabela de lutas.

- Nossa luta? – perguntou Mirian assustada com a velocidade com que o tempo passara.

- Não. – respondeu Nicka checando novamente os nomes. – Entre o tal de Kiev e Orts contra Tyer e Rest.

- Nós vamos assistir? – Mirian direcionou a questão á Sabrina, como se a colocasse num posto de líder do grupo.

- Não sei… Quem sabe… Se Sorah… quiser. – Sabrina estava ainda mais pensativa que Nicka, e sequer prestou atenção no que Mirian lhe havia perguntado. Muito menos no que respondeu.

- Ela não manda em nós! – bradou Mirian – Aliás, essa resmungona está começando a me incomodar!

- Já te disse isso antes, Mirian. E vou repetir: como se ela se importasse.

Muito longe dali, num local onde os humanos do grupo não conheciam, muito menos se preocuparam em conhecer, um lifing de cabelos azuis busca por outra desta mesma raça. Uma raposa amedrontada passaria correndo por ele, desviando sua atenção. O animal se esconderia no arbusto mais próximo, atraindo visão de Dart.

Continuou andando. Seu rosto era sereno, porém intransponível. A postura ereta refletia os anos de infância sendo treinado para ser um poderoso rei. Os olhos ávidos, porém sem desdém, mostravam a renuncia a este direito.

Uma inclinação de poucos graus, no entanto alta, era a única barreira que teve de enfrentar para chegar até onde veria Sorah de costas. Ela o ouviu se aproximando e se virou. Ao ter certeza de quem estava ali, voltou a estar de costas para ele.

Dart não lhe perguntou nada até ficar exatamente ao seu lado, olhando na mesma direção que ela. A estrada “acabava” ali. Pois havia uma gigantesca cratera, de pelo menos, setenta metros de extensão e largura a seguir. Devia medir uns cinco metros de profundidade na parte mais rasa, e ia aprofundando até a parte onde devia ficar uns quarenta metros do topo. Exatamente no centro, via-se um vulto negro abaixado, analisando o chão.

- Aquele é…

- Belthor. – respondeu Sorah sem desviar o olhar. – Um dos guerreiros de Yume.

- O que ele está fazendo?

- Não sei. Nunca vi essa cratera antes.

O vulto levantara-se finalmente, ao perceber a presença dos dois lifings. Encararam-se alguns instantes, até ele correr até Sorah, em menos de dez segundos e dar-lhe um soco forte no estomago que a derrubou.

Ela gemeu com os dentes cerrados e encarou a máscara prateada que cobria a face de Belthor.

- Sorah. – concluiu ele ao analisá-la um pouco mais. – Se soubesse que era você, teria colocado mais força no ataque. Minhas sinceras desculpas. – O guerreiro fez uma profunda reverência.

- Idiota. – resmungou Sorah, levantando-se num pulo.

- Onde estão as guardiãs?

- Não é da sua conta.

- Se as tiver matado, vai fazer companhia a elas. – ameaçou Belthor em tom jovial.

- Cale-se, humano. Elas estão bem. Vão lutar no torneio.

- O torneio… E pra que arriscaria a vida nisso?

- O organizador é Nely Ferius. Não ficou sabendo? Vocês, guerreiros de Yume estão sempre tão bem informados… - ironizou Sorah, num tom que Belthor considerou irritante. – Ele está com a Lágrima completa nas mãos. Espera que nós o enfrentemos nas finais. Se ganharmos, ficamos com a Lágrima.

- Estou muito bem informado da ressurreição de certos guerreiros. Mas não entendo por que ele arriscaria a Lágrima ao dá-la ao ganhador deste torneio. Se ele já a tem por completo, o que está esperando?

- Não consegue uni-las. – interferiu Dart.

Belthor, provavelmente se esquecera da presença do segundo lifing, pois virou-se bruscamente em sua direção. Sorah abafou o riso.

- Ele parou as guardiãs alguns dias atrás. Disse que a Lágrima estava inteira em suas mãos, mas os pedaços não se uniam. Repeliam-se. Mandou que contassem a ele como juntar os fragmentos, mas elas também não sabiam. Num acidente, as partes voaram de sua mão e se espalharam por aí de novo. O que ainda não sabemos, é como ele os reteve tão cedo. Cedo o suficiente para mandar mais dois zumbis nos avisar do torneio no mesmo dia. – continuou Dart.

- Eu percebi a formação de uma poderosa barreira à alguns dias. Ele deve ter previsto tudo. Para o caso disso acontecer, formou uma barreira que impediu as partes de voarem muito longe. Faz sentido. – Belthor pensou alguns instantes alternando o olhar entre Sorah e Dart. A lifing chegou a se irritar com a analise. – Parece que você achou o rei do reino Antigo. Voltaram a namorar? Eu pensava que tinham se separado.

Sorah sabia muito bem que essas insinuações aconteceriam. Belthor não podia perder a mínima oportunidade de provocá-la. Mas mencionar Dart passara dos limites. Ela urrou e lhe deu o soco mais forte que pode, sem calcular a distância muito bem. Ele riu e se desviou, batendo a mão no punho dela para afastar o golpe.

Ainda mostrando os dentes afiados, Sorah foi segurada pelo outro lifing, tentando convencê-la de não cometer nenhuma besteira.  

- E onde está Íris, Thor querido? – Sorah fez questão de dar ênfase ao apelido de Belthor que ouvira a outra guerreira de Yume mencionar no último encontro. – Finalmente se cansou de você?

Se ele não estivesse usando aquela máscara, ver-se-ia uma expressão de ódio tomar seu rosto por completo, mas logo ir embora, tal como veio.

- Dê um recado às guardiãs de fogo e água. Pergunte se querem voltar pra casa. Isso é só. – Sua voz estava mais formal que nunca. Ainda disfarçando a raiva sobre as palavras de Sorah.

Ele se virou e correu até a margem seguinte da cratera. Só então parou e se virou novamente para os dois lifing. E seguiu caminho.

- Um dia eu vou matar esse desgraçado.

- Sim, mas até ter força pra isso, não aceite as provocações dele. Um motivo a mais para te destruir é tudo que ele quer.

- Não sei se consigo aceitar por mais muito tempo esse tipo de insinuações. – repeliu Sorah, como se desse um avisou à Dart, de que numa próxima ocasião, lutaria com Belthor.

A lifing deu as costas para a cratera e ignorou a face incrédula de Dart. Caminhou na direção da masmorra. Ele a seguiria logo depois.

 

Parte dos pensamentos de Sabrina voava longe, procurando por Dart. Outra parte mantinha-se quieta, no escuro. Certas vezes, vinha-lhe à mente o corpo ensangüentado de Ion. Em outras, chegava a imaginar a família do morto. Por mais que Sorah já a tivesse avisado, que os lifing não sentem dessa forma a perda de parentes. Lembrava-se que perguntara a ela na ocasião se sentia falta de seus pais. As palavras dela estavam claramente guardadas em sua mente, de alguma forma, por pena. “Eles morreram antes que eu criasse qualquer forma de afeto. Não sinto falta. Não sinto nada”.

A porta do quarto abriu-se de repente. Sabrina pareceu sentir seus pensamentos serem cortados quando se assustou com o barulho repentino. Já era noite e Mirian, tal como Nicka e Hebel estavam dormindo à algum tempo. Aliás, o rapaz nem acordara ainda. Só ela restava desperta, sentada no chão frio, apoiada na rede de Dart.

Mirian ergueu um pouco os olhos sonolentos na direção do visitante. Estava encostada na parede, no chão, com Nicka bem ao seu lado, tão sonolenta quando esta.

Era Dart, com a intenção de reaver ser quarto.

- Sorah está no quarto de vocês. – avisou mirando Sabrina.

A humana olhou-o alguns segundos, até se levantar e passar por ele, iniciando sua subida até seu aposento. Dart ainda “expulsara” as outras duas humanas restantes e fechou a porta atrás delas. Deitou-se em sua rede e dormiu rapidamente.

Sabrina não bateu à porta antes de entrar em seu quarto. E nem era necessário. Já que Sorah já a esperava, sequer moveu os olhos em sua direção quando entrou. E assim como tantas outras vezes, ela estava deitada observando a lua.

A humana não se preocupou em saber onde Sorah havia estado com Dart. Andou até sua rede e se sentou. Olhou para a lifing sem que esta se importasse, mesmo tendo notado. Esperou que ela se explicasse por si só, se questionar nada. Sem resposta, deitou e tentou dormir.


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