Nos induziram até aqui || Deus Ex Machina

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❈ Prólogo

É engraçado como pequenas coisas mudam toda uma percepção de mundo. Às vezes é um sabor, um odor, uma rachadura na parede. No seu caso foi um trecho de um programa na tv. Ele não estava bem assistindo, na verdade corria pela casa e assim que passou na frente do aparelho escutou algo. Provavelmente fazia parte de algum documentário sobre física ou astronomia — ele não se importou em descobrir na hora, ocupado que estava tentando roubar o pedaço de bolo de Ipin. Lembra-se de Gokudera aumentando o volume e reclamando do barulho que faziam (estavam na casa de Tsuna em Naminori, há muitos anos atrás) e Lambo, ofendido com a atitude do adolescente, parou para responder quando escutou uma frase claramente.

Era algo um bocado confuso que ele não entendeu direito a princípio, mas seu cérebro resumiu até que ficasse claro. Uma coisa tão absurda que Lambo riu com “essa gente da tevê”. Acontece que, já naquela noite, enterrado em seus lençóis, a ideia estava mais ou menos fixada em seu cérebro. Quem o ouve contando pensa que foi alguma grande frase preeminente, mas foi algo relativamente aceito na ciência, uma hipótese bem conhecida até, que diz que o tempo pode não existir de verdade.

Se o tic tac do relógio sempre lhe fora um empecilho, este empecilho fora desde então deixado de lado. Então Lambo passou a acreditar naquela inocência feliz de uma criança, com todas as suas forças e sem nenhuma sombra de dúvida, que sempre ele poderia fazer as coisas na hora que quisesse e recebe-las sob esta mesma regra. Que conversa era aquela de criança ter hora pra dormir? O tempo nem existe, mama! Pois se Lambo era senhor de seus doces, amigos e planetas imaginários, por que não haveria de ser também do relógio?

Perfeitamente aceitável, ele gargalha consigo mesmo.

Afinal de contas Lambo tinha a bazuca temporal, não tinha? Ele poderia estar sempre indo para frente e para trás do relógio uma década a hora que quisesse. E isso era o grande trunfo do garoto de pijama de vaca. Um trunfo único e de grandes possibilidades que até então nunca lhe havia ocorrido a ideia do peso, da responsabilidade e de todo o terror que ser o guardião de uma arma capaz de manipular o tempo poderia trazer.

Mas as coisas com Lambo serão sempre confusas, uma divisão para sempre diluída no que ele quer e no que ele pode. Ele quer chupar um pirulito de uva agora e ele vai chupar, porque se ele quer, ele pode. Se não conseguir ele chora e Tsuna o dá. Quase sempre dá certo. Ainda faltam anos para o garoto ter a maturidade suficiente para refletir se talvez a arma não deveria estar com outra pessoa. As coisas que um dia veria através dela... Quem sabe não seria logo melhor destruí-la?

Contudo, por mais que Tsuna tente se irritar com o garotinho, mas se irritar de verdade, ele só consegue se sentir frustrado. Tsunayoshi não consegue culpar Lambo por querer algo do jeito que ele quer — um querer tão forte a ponto de não pensar nas consequências, um tudo-ou-nada sem a possibilidade de um nada — quando todas as promessas que sabe-se-lá quem fez à criança no passado não foram cumpridas.

(E aqui vai um segredo: Tsunayoshi também não consegue deixar de admira-lo por isso).

Reborn sabe o que Tsuna pensa quando olha a criança irritante chorando ao pedir um outro pirulito de uva. Lambo fora recrutado das ruas, provavelmente abandonado pelos pais em algum orfanato de faixada, e treinado (embora mal disciplinado) a servir uma famiglia. Ele mesmo não vê só um pirralho, mas uma amostra do que várias crianças no mundo da máfia fariam se tivessem a oportunidade que Lambo teve, de estar numa família que lhes dessem amor. Aproveitariam o máximo, como se para testar que tudo fosse verdade. Nem amor era necessário para as satisfazerem, apenas piedade já lhes seria tudo. E crianças que conseguem isso, Reborn analisa, são extremamente sortudas. Um caso em um milhar.

Ainda assim, Reborn precisa trabalhar com Tsuna.

Tsuna vê a vida que Lambo tinha como sua responsabilidade; e, enquanto isso não deixa de ser verdade, Tsuna não é o culpado direto das situações que fizeram Lambo chegar onde chegou e deverá saber se isentar de uma responsabilidade que, veja bem, ainda não é sua. Quando Tsunayoshi herdar o comando da Vongola haverá em seu próprio tempo crianças como Lambo para sentir culpa sobre. O mundo da máfia é cruel e por isso é importante que a famiglia esteja sempre unida e forte em suas convicções. Tomarão decisões que soarão difíceis e para executa-las a alta cúpula precisará agir como um único homem. Esse sentimento de Tsuna por Lambo não trará nada de positivo e com o passar do tempo poderá atrapalhar o papel de líder e capitão que Tsuna e Lambo deverão seguir.

Nos dias em que os dois estão jogando vídeo game — um hábito dessa nova geração que ele não consegue entender — Reborn acha um prazer perverso em imaginar a reação de Lambo quando perceber o porquê de Tsuna estar sempre frustrado quando falam sobre família. Quando o chefe da famiglia Bovino enviou um ‘soldado’ para supostamente assassinar Reborn, ele não esperava o retorno de ninguém. O soldado iria como bode expiatório e a bazuca temporal como um presente pedindo o perdão da famiglia Vongola por tentar flagrar uma guerra sobre bocas de fumo na Toscana e quase por em risco uma situação de paz que fora difícil de ser forjada. A guerra não foi para frente, poucas pessoas da famiglia com quem a Bovino se chocou morreram, mas era uma famiglia importante o suficiente — mais do que isso, era uma das mais importantes na época, os Longchamp — e uma punição era o que todos esperavam. Naturalmente, os Bovino tiveram que prestar contas com a Vongola.

Nunca uma arma tão letal como a bazuca temporal, considerada até lendária no submundo, seria deixada nas mãos de uma criança. Lambo, que ainda não tinha completado sete anos, foi mandado para morrer. E Reborn, como uns dos membros da alta cúpula da Vongola, reconhecido como o melhor assassino de aluguel do mundo, teria, enfim, aceitado os presentes da Bovino. Recusar os presentes significaria a rejeição do pedido de perdão e a intenção de matar toda a famiglia. Mas aí Tsuna formou um laço com o garoto que mandaram e a Vongola ganhou duas armas de uma só vez.

É óbvio que a criança teve sorte de ter conhecido Tsuna porque preservou a sua existência. O italiano de olhos verdes não mais terá que sacrificar a vida entre tiroteios de narcotraficantes na periferia. Sua vida está destinada a posições mais altas. O chefe da famiglia Bovino nunca imaginou que o cordeiro que mandou sacrificar se transformaria num dos guardiões da mais tradicional famiglia da Itália.

Reborn tem vontade de chacoalhar Tsuna.

Vê?, ele quer enfiar na cabeça do seu aluno, você o salvou!; Giotto, o fundador da Vongola, ficaria orgulhoso... Tirou um menino qualquer e o transformou num Guardião! O levou das ruas à História como um dos membros da Alta Cúpula da geração mais poderosa e inovadora de toda a história da famiglia. Quantos ‘soldados’ dão um passo tão grande?

Quantos?

Tsuna deu uma nova vida a Lambo. A vida da criança foi mudada de tudo o que poderia ter sido e se não deixa de correr risco de vida pela alta posição ao menos sabe que sua vida, agora, vale a pena. De fato, agora ele tem uma vida com amigos, família e carinho. Tem responsabilidades para as quais foi devidamente treinado. Tem pessoas esperando o seu retorno.

O tutor não apenas quer mas tem que fazer o futuro líder da Vongola enxergar isso.

Entretanto, há um ditado que explica bem a situação que faz a pulga atrás da orelha de Reborn urrar: dê a um faminto a mão, e ele lhe pegará o braço. Explicar para Tsuna o bem que fez será bem mais fácil do que traçar os limites com Lambo do que se pode ou não querer. Os amigos de Lambo são os amigos de Tsuna, os brinquedos de Lambo são os brinquedos de Tsuna, a família e a casa de Lambo são a família e a casa de Tsuna, e a vida de Lambo... É o reflexo tal qual Tsuna o deu.

Quando Tsuna olha o pequeno com os olhos desse jeito, o tutor tem a plena certeza de que o guardião do trovão será o que mais trará problemas para a famiglia. Com tantas coisas de Tsuna se tornando diamantes maravilhosamente lapidados aos olhos de Lambo, Reborn suspira ao imaginar se um dia o brilho será forte demais. Receia que mais cedo ou mais tarde Lambo irá querer o próprio Tsuna para si.

Porque se Lambo quer, mas quer de verdade, Tsuna o deixa conseguir.