– Eu sei que é tarde...

– Entra, vai.

A Marrenta entrou no apartamento. Fatinha fechou a porta e respirou fundo antes de olhar para a loira. Lia tinha uma expressão perdida, os olhos vermelhos evidenciando o que a mais velha suspeitou serem resultado de horas de choro que ela negaria até a morte se possível. Maria de Fátima se comoveu com o sofrimento refletido no olhar da outra e quis mais que tudo poder fazer alguma coisa por ela.

– Você já jantou?

– O quê?

– Nada, esquece. Vem, senta aqui que eu vou pegar um chá, suco... Qualquer coisa.

Fatinha foi ate o quarto onde Miguel dormia tranquilo e se condoeu. O seu filho era só um menino, o maior presente que Deus havia lhe dado e o principal motivo de tantos acontecimentos. Se não fosse ele, talvez ela e Dinho tivessem tomado rumos diferentes, talvez o amigo estivesse bem. Mas a vida era mais do que ‘talvez’ e as intermináveis suposições de como tudo poderia ter acontecido se ela tivesse tomado às preocupações necessárias e não ter engravidado de bruno... A imagem do homem do qual ela não falava nem pensava surgiu na sua mente e a dor que pareceu ter sido esquecida deu sinais de que ainda queimava dentro dela. Bruno com toda a sua arrogância, lhe tirou tantas coisas e perdeu também. Perdeu a companhia do filho, os primeiros passos, o primeiro dente, o primeiro dia de colégio. A primeira vez que o menino disse papai – que na verdade foi mais um ‘papa’ balbuciado – e que deveria ser para ele, foi dito para outro. Doeria mais se ela não tivesse encontrado um pai tão maravilhoso quanto Dinho para Miguel.

– Mãe? O papai vai demorar? – Perguntou o menino sonolento quando a mãe lhe beijou o rosto.

– Não. Agora dorme, amor que amanhã você tem escola.

– A gente vai visitar o papai?

– Uhum... Boa noite.

Ela deixou o quarto em seguida e voltou para a sala onde encontrou Lia sentada no sofá, a cabeça apoiada entre as mãos.

– Desculpa a demora. Fui ver como o Miguel tava.

– Não tem problemas, eu não vou mesmo a lugar algum.

– Você não devia ter saído daquele jeito do hospital, Lia – Fatinha seguiu para o sofá onde se sentou – Fiquei preocupada.

– Ah, posso até imaginar o quanto – Ironizou a Marrenta. Fatinha a olhou contrariada, mas manteve a calma.

– Acha que eu não sei tudo o que quer me dizer? Pode ter se passado anos, mas ainda sei te ler Marrenta... Por que não começa pelo inicio? Aposto como deve tá curiosa pra saber como foi que chegamos ate aqui, não?

– Você o ama?

– Como?

– Você o ama? – Indagou Lia novamente olhando pela primeira vez nos olhos da ‘rival’.

Fatinha não entendeu no inicio, mas logo soube onde a outra queria chegar. Simples e direta, essa era a Lia que ela conhecia. Um sorriso surgiu nos lábios da loira.

– Amo. Ele é meu melhor amigo.

– E marido.

– E marido.

– E você o ama.

– Olha, é isso tudo o que você tá falando, mas não é da forma como você imagina.

– E como eu imagino? – Lia levantou-se e andou de um lado para o outro – Quando foi? Como aconteceu? Pensei que fossem só amigos... Ou isso também era uma mentira dele e ele me enganou com você? Droga, vocês são casados! Tem um filho!

– E isso te importa por quê? – Perguntou Fatinha, perspicaz.

– Não importa!

– Não é o que parece. Você veio até a minha casa, quase de madrugada pra saber do meu relacionamento com Dinho e quer que eu pense o quê?

– Pensar nunca foi o seu forte.

– Já você mentia como ninguém. E continua mentindo pelo visto... Você o ama, né? Eu sei que ama... E ele também. Sempre.

– Ama e casou com você? – Lia já não conseguia conter as lágrimas – Ama e me deixou ir embora? Ama e tá em coma?

– Não foi culpa dele. O outro motorista estava bêbado e avançou o sinal, foi... Um infeliz acidente. E você pode não acreditar, mas não houve um dia sequer que ele não tenha pensado ou amado você. E ainda que meu amigo negasse, ele não conseguia esconder o amor por você de mim.

– E você aceitou viver assim? Por quê? Que espécie de casamento era o de vocês?

Fatinha também se levantou. Ela ponderou o que deveria falar, escolheu com cuidado as palavras... Lia merecia a verdade e embora lhe doesse reviver o passado, ela o faria. Sem querer, seus pensamentos voaram em direção de bruno, a lembrança da forma como eles terminaram o que nunca teve um inicio. Ela ainda sentia o sal das lágrimas que molhavam seu rosto quando ela esbarrou com Dinho a caminho do Hostel.

– Meu casamento foi um acordo entre duas pessoas feridas, Lia... Eu tenho muito o que te explicar, sabe? Acho que em parte, a culpa de vocês dois não terem ficado juntos foi minha. Ele queria, mas eu precisava dele.

– Por causa do Miguel? – Perguntou irritada – Você o prendeu por causa do menino?

– É, vendo por esse ângulo... Foi exatamente isso.

– Como teve coragem? Eu posso entender que um filho é muito importante, que o Dinho deve amar muito o filho, mas... – A Marrenta nunca pensou que Adriano se comprometeria tanto com alguém, mas ele casou com ela por causa do filho.

– Eu não tive coragem, o que tive foi medo... O Miguel é filho do Bruno – Fatinha sorriu triste pela surpresa da outra – Por essa você não esperava, não é? Mas é a verdade. O meu filho é do Bruno ainda que ele nunca tenha se importado com ele.

– Ele sabe?

– Sabe, mas finge que não. Durante anos, eu esperei pelo momento que ele fosse nos procurar, mas nunca aconteceu... Mas isso é só parte da história. Senta, o que eu tenho para falar é longo.

Lia e Fatinha sentaram-se novamente. Após uma pequena e sentida pausa, Fatinha iniciou a narração de como havia descoberto estar grávida, a reação de bruno o encontro com Adriano. Com riqueza de detalhes, ela falou a importância do amigo na sua vida já que não podia contar com mais ninguém. Os pais lhe viraram de vez a costas, bruno morava fora do país com a esposa... Ela ficou sozinha.

– A minha gravidez era de risco e eu já tinha tantos problemas... Eu não podia continuar trabalhando no Hostel nem voltar para a casa dos meus pais. Com o Bruno eu não podia contar também... Eu estava completamente só. Sem nenhum apoio... Mas eu tinha que enfrentar tudo, sabe? Pelo meu bebê que apesar de tudo, era o que eu tinha de mais precioso. O Dinho ficou todo tempo ao meu lado, me dando força e juro que se não fosse por ele... Eu só contei para ele quem era o pai. Quando estava com pouco mais de seis meses, eu passei mal e tive que ser socorrida... Eu fui diagnosticada com pressão alta.

Fatinha interrompeu-se, as recordações do período difícil que viveu explodindo na sua mente.

– Eu lembrei de um caso desses na minha família, uma tia minha que morreu com eclampsia. Eu tive medo de acontecer o mesmo comigo e meu bebê não ter ninguém para cuidar dele.

– Por que você não procurou o Bruno? Ele teria de ajudado.

– E o quê? Ele ia ficar com a criança e criá-la como um estorvo? Não, Lia... Eu já passei por isso, eu sei o que é não ser querido por um pai. Eu estava tão desesperada que... Eu pedi pro Dinho dizer que o bebe era dele. Pedi para ele casar comigo e prometer que se o pior acontecesse, ele cuidaria do meu filho para mim. E ele foi tão maravilhoso... Eu sabia que ele tava arrasado por você, e eu nunca pediria isso para nenhuma outra pessoa, e foi errado o que eu fiz... Mas eu só estava pensando no bem do meu filho... O Dinho disse pros pais, para os nossos amigos que queria casar comigo que o filho era dele e que a gente ia ser uma família. Nosso casamento foi no civil e eu não poderia estar mais triste... Passamos a nossa lua de mel comigo chorando e ele falando sobre você. Éramos os recém-casados mais infelizes do mundo.

– Eu, eu sinto muito.

– Não sinta, não foi culpa sua. Mas ate que nós demos certo... O Miguel nasceu duas semanas depois, prematuro. Ele era uma coisinha de gente, mas quando eu o vi eu tive certeza que tudo o que eu fiz tinha valido a pena. O meu casamento com Dinho não foi convencional, apenas uma união para o bem de uma terceira pessoa... Mas sabe, ate que fomos felizes. O meu amigo se mostrou o melhor pai do mundo e não poderia ter tanta sorte.

– Quando você fala em um casamento não convencional, você quer dizer que...

– AFF Lia, eu e o Dinho somos amigos! Nunca que eu ia pensar no idiota dessa forma – Ela riu enxugando as lágrimas – Somos como dois irmãos morando juntos e estabelecemos um acordo. Quando um dos dois encontrasse uma pessoa por quem se apaixonasse, nos divorciaríamos. Mas ele nunca conheceu ninguém que amasse como amou você e eu também não, daí fomos ficando como estávamos. Com o tempo, falamos para os nossos amigos a verdade, eles nos repreenderam, mas entenderam nossos motivos. O Fera, a Morg, o Orelha, a Rita... Eles só aumentaram essa família nada normal. E eu consegui mais do que podia sonhar para meu Miguel, meu anjinho... Até o acidente. Foi um acidente, uma fatalidade. Às vezes, eu ainda não acredito, mas o tempo foi passando e a gente tinha que seguir em frente. Mas eu nunca desisti, nunca. Eu sei, eu sei que o Dinho vai voltar para casa, para gente... Ele vai voltar para você.

Será? Perguntou-se Lia. Será que Adriano ia conseguir superar essa tragédia que se abateu sobre ele? Ela não poderia dizer com certeza que sim. A garota já teve tantas perdas na vida, tantos tropeços e arranhões, que perdê-lo sem nem tê-lo não seria nenhuma surpresa.

Depois de deixar o apartamento de Fatinha, ela voltou para o hotel. Lia tinha um voo marcado para o dia seguinte, um namorado lhe esperando do outro lado do oceano e uma vida para continuar... Mas Dinho e sua lembrança a mantinham presa aqui. Ele não era mais nada seu, nada além de alguém do passado que lhe importava muito, embora não quisesse admitir. E só isso. Ela não podia mudar seus planos e mundo por ele. A Marrenta não sabia como faria para dizer adeus mais uma vez ao seu amor sem sair despedaçada.