Sem Direção escrita por Renan Suenes


Capítulo 26
Revelações




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26
 
Após um longo minuto de carinho trocado, ela me soltou e questionou ligeiramente.
- O que fizeram com você Peter? Te machucaram? Te maltrataram? Conte-me tudo! Mas primeiro teremos que ir pra casa, entre logo, não quero que tirem você novamente de mim.
 Seja lá o que ela queria dizer com aquilo, segui suas instruções e entrei naquilo que eu poderia chamar de lar. A casa era de madeira, particularmente pequena, tinha quatro cômodos. Cozinha, banheiro e dois quartos. As paredes fixavam retrados da minha família. Minha mãe tinha cabelos curtos, da cor dos troncos das árvores que eu havia visto lá fora, mas atualmente ela estava com os cabelos compridos, mal tratados e bagunçados.
- Sente-se querido. Eu vou trazer água e algo para comermos.
- Mãe – a palavra soou estranha, eu não conseguia sentir algo especial dizendo aquilo. – não precisa se incomodar, eu estou bem.
 Ela me fitou, mordeu os lábios e passou a mão na minha cabeça.
- Filho, eu sei que você está faminto, não se preocupe.
 Internamente refleti comigo mesmo se ela estava mentindo ou falando a verdade. Seu peso abordava discordância em relação á existência de alimentos naquela casa. Porém, preferi ficar calado e esperar.
- Peter – veio ela trazendo uma cesta de frutas podres, pães mofados e um copo de água com uma cor um tanto quanto duvidosa. – isso é tudo que eu tenho. Aproveite, pois a cidade está com um grande déficit em produtos. Acostume-se filho... Os tempos são outros por aqui.
 Olhei para a maçã. Sua casca era pura podridão. Realmente algo de muito sério estava ocorrendo naquela cidade. Ou talvez no mundo.
- Mãe... Você poderia me contar o que está havendo?
- Claro que sim Peter, mas antes precisamos curar esses machucados. – ela pegou um estojo de primeiros socorros relativamente velho, pegou um curativo e um líquido. Enfaixou meu braço e colocou BAND-AID em ferimentos leves. Ela olhou para mim e me observou detalhadamente. - Você está com o rosto muito fino. Eu lembro como se fosse ontem sua saída... Que bom tê-lo de volta.
 Abri um pequeno sorriso. Como eu queria lembrar dela e dos momentos que passamos juntos. Será que foi minha mãe quem me ensinou a andar de bicicleta? Ou meu pai? Por falar nele, onde ele estava? Recorri para os retratos de novo, e vi um homem ao lado da minha mãe. Ele tinha cabelos ruivos, um corpo atlético e uma altura mediana.
- Aquele é o meu pai?
- Sim...
- Onde ele está?
 Ela abaixou a cabeça e choramingou. Pegou a tesoura, cortou a fita que segurava a faixa pelo meu punho e guardou todo o material de primeiros socorros no estojo. Foi ao banheiro, limpou as lágrimas e voltou para a cozinha.
- Peter, eu quero que você entenda cada detalhe do que estamos passando.
 Concordei rapidamente e induzi um gesto de continuidade.
- Há mais ou menos dez anos atrás, cientistas do mundo inteiro promoveram uma campanha a favor da cura da leucemia. Diversos especialistas da área e médicos se reuniram para debater e provar esforços de que apenas o tratamento não é possível e não é suficiente para prosseguir uma vida condenada á essa doença. – ela respirou fundo e procedeu. – Só que os vários experimentos e técnicas usadas para solucionar uma cura, deram errados. O local que eles costumavam fazer as experiências e usufruir de cobaias humanas secretamente e até mesmo animais, explodiu por um acidente, intoxicando o ar e várias pessoas presentes no momento.
 Eu acompanhava a história seriamente, sem mover um músculo. Saber o que havia acontecido seria um grande passo para uma futura justiça.
- Seu pai trabalhava nesse projeto, e era ele quem sustentava essa casa. Os anos de prática na medicina e seu grande reconhecimento aqui na cidade o fez participar dos experimentos para o governo. Tudo era manipulado, a mídia nos mostrava apenas o que eles queriam nos mostrar, mas quando a notícia realmente vazou, o desespero foi enorme. Até hoje o nosso mundo não é mais o mesmo, a miséria tomou conta e devastou diversos países, a escassez de água e de alimento provocaram fome e mortes ao redor do planeta, mas tudo isso não pode ser igualado ao que aconteceu com os cientistas do projeto. Todos foram brutalmente assassinados pela força militar do governo... Até seu pai... Peter.
 Todas aquelas informações estavam sobrecarregando minha mente, e pela primeira vez desde que acordei naquela cidade imunda, uma lembrança do meu passado pode ser relembrada. Eu estava em um balanço e meu pai – o homem das fotos da parede da minha casa - me empurrava, realçando uma diversão imensurável. Minhas gargalhadas eram extremamente altas, e uma menina ruiva estava sentada ao lado do meu balanço. Ela chorava baixinho suplicando por atenção.
- Papai me empurra agora! É a minha vez! É a minha vez!
 
Provavelmente ela deveria ter seis anos, seus olhos verdes não me enganariam nunca, e finalmente alguma coisa fez sentido depois das explicações da minha mãe junto com essa lembrança especial que eu tive. Aquela era Sarah. Aquele era meu pai. E ela minha irmã.
- Quero que você entenda que o que estamos passando é uma luta pela sobrevivência – continuou ela. – e se a gente não seguir as leis, poderemos morrer a qualquer instante! O governo decretou milhares de regras, sendo de primordial importância o seguimento de cada uma, tendo como consequência prisão perpétua na cidade em que você passou algum tempo. Me surpreendo por você ter voltado tão depressa. Fico muito feliz e aliviada em saber que pelo menos um dos meus filhos esteja bem. Lembra da sua irmã?
 A pergunta me pegou de surpresa. Eu não sabia como dizer ou explicar para ela que, talvez minha própria irmã tenha lutado comigo na cidade contra aqueles monstros, e que depois virou um deles.
- Mãe... – segurei uma das suas mãos. – acho que ela estava comigo o tempo todo. Mas infelizmente ela não resistiu. É um deles agora... Me desculpa. O nome dela é Sarah?
- Isso mesmo Peter. Sarah. – ela retirou sua mão das minhas e chorou baixinho.
 Ela se levantou e pegou outro copo de água. O branco do vestido não disfarçava bem sua magreza e eu pude ver suas costelas á mostra. Me senti envergonhado por aquilo, eu deveria fazer algo para recompensar ou agradá-la. Dizer que eu não lembrava de nada não ajudaria. A cor amarelada da água só me fez pensar ainda mais nos fatos que haviam ocorridos anos antes no mundo. Voltei minha atenção nas palavras dela.
- Desculpe filho. Tenho que aceitar o acontecimento. Não há como lutar contra isso.
- Está tudo bem. – respondi.
- Você deve estar se perguntando por que aquela cidade existe. Mas a resposta é simples. Cada parte do planeta observa sua própria república. O objetivo é cuidar das pessoas que ainda são normais e que não contrariaram a doença, caso contrário, são jogadas e esquecidas dentro daquele círculo. Os muros altos e a presença das outras pessoas servem apenas para excluir e eliminar sua existência. É como se o governo fizesse uma limpa geral dos infectados e os julgassem por um crime que não são culpados. Logo depois, há algum tipo de processo cerebral envolvendo nossa memória, o que de fato é uma das piores partes da execução. Filho, você não se lembra de absolutamente nada por pura injustiça.
- Como assim?
 Ela ofegou, deu uma pequena tosse e se recompôs em seguida progredindo as explicações.
- Você e sua irmã foram tirados de mim de forma brutal. Devemos seguir as regras rigorosamente, ou sofreremos as consequências. Sarah foi a primeira a ser pega. Ela estava se divertindo com algumas amigas pela rua, ou pelo menos tentando, mas já se passava das dez horas da noite e por ingenuidade não recordou do perigo. Seus gritos ativaram meu instinto protetor e percebi o que estava acontecendo antes mesmo de abrir a porta da cozinha. Corri muito. Corri o máximo que eu podia atrás de uma limusine preta. Ela berrava, batia no vidro, seu olhar suplicava por ajuda, mas eu não consegui. Somente desisti de correr quando cheguei aos limites da cidade.
 Fiquei perplexo ao saber como eles retiravam os filhos das pessoas apenas por não seguir leis bobas. Ela prosseguiu.
- Fiquei cuidando de você por um longo tempo. Para conseguir comida, devemos trabalhar em duas fábricas que ficam aqui perto. Uma de distribuição alimentar e empacotamentos. A outra é para gerar energia e lucro. Eu trabalho na parte da energia, que apesar de não funcionar direito e a falta dela ser estupidamente usual, precisamos praticar nossa assiduidade para ganhar um salário muito variável. Ele muda toda semana, e ás vezes eu não consigo comprar se quer um pão.
- Há padarias por aqui? Shoppings? Sorveteria?
- Apenas o necessário. Não existe mais diversão por aqui filho. Esqueça o cinema, esqueça os parques de diversão, exclua da sua mente todo tipo de agrado pessoal. Teremos tempo somente para sobreviver numa luta por comida e água.
 Todas as informações prestadas pela minha mãe foram muito importantes. Agora eu realmente sabia o que estava acontecendo na minha vida e na vida de todos.
- Mãe, qual o seu nome?
 Ela me fitou com um semblante de tristeza, ela deve ter ficado constrangida e magoada com a pergunta e mais infeliz ainda por saber que seu próprio filho não tinha uma lembrança se quer dela.
- Meu nome é Julie.
 Sorri e tentei demonstrar vitalidade, mesmo estando cansado demais. Minha mãe passou a mão na minha cabeça e me abraçou novamente.
- Peter vá para o seu quarto. Você precisa dormir, descansar um pouco. Consigo sentir o que você sente pelo seu olhar.
- Obrigado.
- Depois eu conto mais algumas coisas.
 Me levantei da cadeira e ela me direcionou para o quarto. O cômodo tinha duas camas, provavelmente uma delas era a minha e a outra de Sarah. Era tudo muito simples, o assoalho rangia com nossos passos e as paredes tinham muitos quadros . Me deitei e ela encostou a porta. Estava calor. Algumas perguntas passaram pela minha cabeça. Se eu tinha nascido no Texas, como eu tinha sido pego e tirado dela, se ela teve mais alguma notícia do meu pai ou até comentar sobre Josh.
 Mas depois de tantos pensamentos, consegui dormir, e logo me deparei com Beatrice nos meus sonhos de novo.


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