Equinocial escrita por Babi Sorah


Capítulo 6
Interlúdio - Parte I




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*Capítulo 06*

Interlúdio

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"Onde estou? Onde está você?

Há tanto tempo, tão pouco a fazer

(...)Você não pode ver nada,

Pois não é capaz de enxergar através de seus olhos

Eles estão cobertos por um filme

Você está cego por si mesmo

E você é o único culpado

Mas finge ser outra pessoa (...)"

Softer to me [ Relient K ]

:.

Primeiro, a voz.

Segundo, a arma.

A terceira e última coisa que registrei foi um clarão, seguido de um som ensurdecedor. Um tiro, creio eu. E então meu corpo desabou e minha consciência esvaiu-se no escuro.

Bem, não por completo.

Restou aquela pequena parte.

Aqueles fragmentos que minha mente insiste em usar para me torturar sempre quando baixo minha guarda ou estou vulnerável: Meus sonhos.

Os repetitivos sonhos que sadicamente me recordam de tudo que deixei para trás, e não satisfeito apenas em me perturbar, meu subconsciente foi ainda mais fundo e escolheu logo este, que continha um pouco de tudo:

O segredo. A omissão. O abandono. A traição.

É claro que considerando uma linha de tempo mais precisa, tudo isto começou numa época bem anterior aquela. Uma época e um tempo abstratos para mim.

Mas mesmo que não saiba o ano, o mês, a semana, ou qualquer outra data como referência, sinto de alguma maneira que aquele dia foi o meu ponto de partida. O dia em que construí meu novo início e consequentemente, meu fim.

Lentamente a escuridão que me envolvia desvaneceu como uma névoa e senti como se meu corpo caísse e desmaterializasse conforme era transportada para as memórias daquela fria manhã, quando eu ainda era pequena.

E antes que pudesse evitar, me encontrei deitada no chão daquele vazio e espaçoso quarto.

Lembro-me que passei a noite inteira me revirando devido ao desconforto dos meus músculos enrijecidos e minha pele ferida, onde os machucados ardiam ao entrar em contato com minhas roupas.

Por um instante pensei em permanecer ali e tentar recuperar algumas horas de descanso, me embrulhar debaixo das cobertas e ignorar todos os meus problemas e preocupações. A tentação era grande e quase cedi a seu apelo, não fosse o alarme em minha cabeça apitando sem parar que isto não passava de um ato de covardia.

Frustrada, assoprei uma mecha de cabelo que teimava cair entre meus olhos e constatei a obviedade da situação. Além de agir como uma covarde, eu estava me escondendo.

E me esconder era uma ambição ridícula, e mesmo se eu pudesse, seria inútil.

Tendo isto em mente, me livrei do cobertor e obriguei a mim mesma a levantar, ignorando as reclamações de meu corpo dolorido. Caminhei devagar e na ponta dos pés, desviando com cuidado dos corpos que dormiam profundamente sobre os tapetes distribuídos por todo o chão de pedra.

Uma grande vantagem quando se é uma criança com pouco mais de um metro de altura, é a capacidade de se esgueirar entre os cantos mais estreitos. Modéstia a parte, eu me valia muito bem disto. E passo após passo atravessei o dormitório e alcancei a entrada, onde um tecido fino cobria o vão numa fútil tentativa de privacidade.

Coisas como portas, trincos e fechaduras são proibidas. Essa era uma das muitas regras daquele lugar e de longe a que mais me perturbava. Porém, com exceção desta, elas geralmente não me intimidavam. O problema mesmo era a dor dos castigos.

E eu tinha plena ciência de que receberia um se alguém me visse.

Hesitei durante um segundo e olhei ao redor. Os outros ainda dormiam.

Era a minha chance.

Atravessei o vão e segui silenciosamente para o corredor. Como via de regra, não havia ninguém vigiando as saídas. Isto é desnecessário num lugar como este e tal fato nunca deve ser interpretado como um bom sinal.

As batidas do meu coração se intensificaram e quase podia sentir o sangue pulsar sob minha pele. A ansiedade era tamanha que segurei a respiração, temendo que até este mínimo som pudesse denunciar minhas intenções.

Apressei meus passos.

O portal estava logo adiante e parecia chamar por mim como um velho amigo a espera de um reencontro.

Atravessei-o e caminhei para além das construções, onde o vasto campo se estendia até as colinas e encontrava seus limites entre o céu e os grandes muros que rodeavam tudo.

Prometeram-me que quando eu crescesse um pouco mais, teria a permissão para transpô-los e viajar além das fronteiras. E até que este momento chegue, deveria permanecer pacientemente aqui do lado de dentro da muralha, ser obediente e disciplinada em minhas tarefas, apesar de que não entendia muito bem o que essas coisas significavam.

Entretanto, ainda que não pudesse sair, lembro que costumava caminhar a céu aberto quando algo me afligia. Funcionava como uma terapia, me ajudando a pensar mais claramente quando queria, a limpar minha mente quando precisava afastar maus pensamentos ou simplesmente me tranquilizar nos momentos em que ficava sozinha, quando ele não estava por perto.

Olhei para o alto. Naquela ocasião, o vermelho e o esverdeado dos primeiros raios de sol misturavam-se ao azul escuro da noite, tingindo o céu e as nuvens de uma linda cor.

Uma cor rara, disforme e efêmera. Assim como você.

Era uma das coisas que ele sempre dizia para mim.

Meus pés descalços tocavam a relva amarelada e a brisa veio me saudar trazendo o perfume do orvalho. Eu inspirei fundo, tentando absorver aquela fragrância e desejei que ela me purificasse de dentro para fora.

Fechei meus olhos e imaginei como seria se a brisa pudesse me envolver e ocultar por completo, me tornasse parte dela e juntas voássemos por cima da grande muralha.

Para onde? O que pode haver lá fora?

Como se pedisse desculpas por não atender meu pedido, a brisa rodeou-me em um carinho suave, mas pouco consolador.

A verdade era que eu não poderia ir embora.

Não sem ele.

Para onde eu for, ele viria até mim.

E naquela manhã também não foi diferente.

― Quantas vezes precisarei pedir que não ande sozinha?

Estremeci.

A quela voz clara e serena era inconfundível.

Sequer fui capaz de ouvir seus passos... Nem de perceber quando chegou ali. Me pergunto se já estava treinando desde aquela hora. Não me surpreenderia se estivesse, afinal, ele sempre foi forte. Muito mais forte do que eu.

Virei-me cautelosamente.

― Se quer tanto assim se machucar, basta pular logo de um penhasco. Facilitaria muito as coisas por aqui.

Apesar da escolha de palavras, sua voz não demostrava raiva ou aborrecimento. Respirei em alívio. Ele ainda era o mesmo de sempre.

― Você acordou cedo. Está com problemas?

― Estou bema eu daquela época disse, cabisbaixa.

― Mesmo?Ele diminuiu a distância, ajoelhou-se a minha frente para ficarmos na mesma altura e tocou meu ombro com uma das mãos. ― Então olhe para mim.

Minhas costas se encurvaram e eu suspirei, derrotada. Era impossível mentir para ele. Ergui meu queixo devagar. Seus olhos, do mais profundo e belo cinza, pareceram ainda mais escuros ao perscrutar as marcas em meu rosto.

De tudo, aquilo era o mais difícil de suportar. Eu amava os olhos dele, mas detestava vê-los quando transbordavam pena por mim.

― Você ainda sente dor. E não consegue dormir.

Eu confirmei com um aceno.

― Por que não me contou...?

Porque não queria que você me visse assim.

Era o que eu gostaria de dizer.

Mas não disse.

Emudeci.

Ficamos em silêncio enquanto a brisa continuava a bailar sobre a relva. Ele, imerso em pensamentos olhando não mais para mim, mas para o nada. E eu, encarava meus próprios pés envergonhada e corroída pelo remorso, segurando os soluços e o choro.

― M-me desculpe ... por favor... Você está zangado?

― Oh, não é isso...

Ele acariciou meu rosto, me fez olhá-lo novamente e limpou minhas lágrimas com as mãos. Sua face estava calma e ele sorria.

― Não estou zangado, somente não gosto que esconda coisas de mim. – afirmou, me oferecendo seus braços. ― Venha. Deixe-me ajudar.

Estaquei.

Eu precisava, mas não queria. Isso era admitir mais uma vez que sempre dependia dele e não era capaz de mudar nada por mim mesma. Um orgulho patético e barato, eu sei. Ele também sabia.

Por isso, vendo-me permanecer imóvel, me abraçou.

O que mais eu poderia fazer ?

Nada. Apenas permitir ser acalentada e receber aquela tranquilidade que não me pertencia. A dor logo foi embora e o peso esmagador sobre meu corpo desapareceu. Minha mente se acalmou, meu choro também cessou e eu me senti em paz e a salvo novamente. Ele era tudo que eu tinha.

Mas por que mesmo estando ao lado dele, aquele vazio ainda me espreitava?

Não tinha a resposta para tal pergunta e por anos disse a mim mesma que não precisava de uma, pois se ele estivesse por perto e cuidando de mim seria o suficiente. Era no que eu acreditava. No que desejei acreditar.

Não sei por quanto tempo ficamos abraçados. Poderia durar para sempre e ainda assim não seria tempo o bastante. Nunca era.

Quando enfim relaxei e estava quase dormindo, ele nos separou.

― Melhor?

Assenti.

― Você é uma criança muito complexa, sabia?

― Desculpa...

Ele suspirou e rolou os olhos, fingindo impaciência por meu antigo hábito de me desculpar por tudo e ergueu-se do chão, me segurando em seu colo.

― Desculpas aceitas. Bem... vamos voltar juntos?

Estava com tanto sono que murmurei um "han–hummmm" e acho que ele aceitou isso como um consentimento.

Carregando-me nos braços, ele deu meia volta e dirigiu-se para as construções. Quando chegássemos ao dormitório ele ficaria comigo e não permitiria que nada de mal aconteça. Tudo terminaria bem.

Mas isso jamais aconteceu.

Este sonho de lembranças nostálgicas é apenas o início de um longo pesadelo, do qual precisava acordar o mais depressa possível antes que fosse tarde.

Infelizmente, eu nunca percebi que já era tarde demais.

Tudo aconteceu muito rápido. Em um segundo, ele estacou de repente no meio do caminho e seu rosto tornou-se alerta. Colocou-me no chão e posicionou-se a minha frente assumindo uma postura defensiva. Seu foi olhar fixo e atento foi em direção as fronteiras.

― Corra! O sol logo irá subir, você precisa estar junto aos outros quando despertarem. Se for vista, diga que estava comigo e te deixarão em paz.

― Mas...

― Agora! Depressa!– exclamou, quase gritando por cima do ombro.

E então compreendi a razão daquela urgência.

Os uivos.

Vá!

Sem mais avisos, corri a todo fôlego em direção as construções enquanto ele seguia para os limites do campo. Os ganidos ecoaram ainda mais próximos e eu ousei virar meu rosto e olhar para trás, no instante em que os grandes muros se abriram para receber as criaturas.

E foi quando o sol brilhou ofuscante sobre todo o campo.

Aconteceu ali, naquele momento.

O dia em que tive um breve vislumbre do mundo por trás da grande muralha e soube que havia, sim, algo mais lá fora...

... E o dia fatídico em que senti medo de meu irmão pela primeira vez.

Acorde... Isso não é real! – repeti no fundo de minha consciência, debatendo-me, gritando dentro de mim mesma.

Saia daí!

Concentrei-me e reuni toda minha força para retornar a realidade. Para não ter que rever aquela cena.

Saia! Por favor, saia daí!

E tudo aquilo que eu amava e conhecia desmoronou...

E explodiu.

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A tão almejada realidade me atingiu como um solavanco, um golpe violento, uma força magnética que atraiu e puxou-me de volta á superfície. O ar escapou de meus pulmões, meus olhos arregalaram-se e uma estranha luz de cor azulada e artificial feriu minha visão, impedindo que pudesse distinguir nada além de silhuetas e manchas embaçadas.

Manchas que se mexiam... e falavam... e agarravam meus braços e pernas.

“... Isso vai machucá-la!”

“(...) e prefere que ela reabra os ferimentos?! Segurem com mais força!

“Margoth, aplique a injeção. Eu a manterei estável.”

Eu queria gritar, mas minha garganta ressecada não emitia som algum. Quem eram aquelas vozes? Oquê pretendem fazer comigo? Será que ainda estava sonhando?!

Parem! Me soltem!

A adrenalina e o pânico cresciam e estrondearam meu peito, a confusão e frustração de estar indefesa eram terríveis. Lutei, tentei inutilmente livrar-me, mas continuavam forçando mais e mais a cada resistência e protesto meus.

“Estrou pronta, faça agora!”

Não sei o que doeu mais; se foi a força do aperto ou a dor súbita, semelhante a uma ferroada venenosa.

A sensação foi a de ser imersa em água gelada. O frio se alastrou rapidamente por minhas veias, congelando-me por dentro. Meus braços e pernas cederam a derrota e o torpor tomou posse de meu corpo.

Uma onda de cansaço recaiu sobre minha cabeça, obrigando-me a apoiá-la de volta a superfície macia e plana em que estava deitada.

As pálpebras arderam e teimaram em descer, insistindo que eu as fechasse. Esforcei-me para mantê-las abertas e permanecer acordada, mas eu me sentia... zonza, esgotada, como se o simples ato de pensar exigisse quantidades enormes de energia.

Meu cérebro se recusou a funcionar direito, implorando que eu lhe desse algum descanso. A falta de forças e ânimo era tamanha que eu poderia perfeitamente me entregar ao conforto daquela letargia e esquecer de mim mesma.

A fonte da luz - aliás, luzes – assemelhava-se a uma espécie de cúpula refletora direcionada a mim. Por trás de meus cílios semicerrados gradualmente fui me acostumando com a claridade e meus olhos ganharam alguma nitidez, as silhuetas e manchas finalmente assumindo alguma forma.

― Ótimo, ela reagiu bem à fórmula. - a voz que falou era feminina, madura, e pronunciava as palavras de maneira um tanto incomum, arrastando levemente as últimas sílabas. O rosto dela, assim como o dos outros, estava encoberto pela metade com uma máscara.

Seriam eles... médicos?

― Agradeço a todos pelo excelente trabalho, mas peço que nos deem licença. Assumiremos daqui em diante.

Três das cinco figuras que me cercavam proferiram algumas palavras rápidas e afastaram-se de mim, desaparecendo de meu campo de visão. Ao fundo, ouvi um barulho baixo e metálico, como uma porta sendo destravada e fechada.

― Faz tantos anos... - a mulher observou-me cuidadosamente, dando atenção especial a meu abdome e braços, finalizando o exame com uma longa análise em meu rosto. ― Não esperava ter de lidar novamente com um quadro semelhante a este...

― Há alguma estimativa quanto ao período de recuperação? - a outra voz restante também pertencia a uma mulher, só que esta soava muito mais jovem e clara. Algo nela e na expressão astuta de seus olhos frios me fizeram lembrar de uma leoa.

― Será lento, mas eficaz.

A mais velha pegou um lençol e cobriu cuidadosamente meu corpo até os ombros. Ela voltou seu olhar para mim e desta vez falou verdadeiramente comigo.

― Não tenha medo, você está num lugar seguro agora. Apenas descanse, nós não lhe faremos mal. É uma promessa.

E o mais estranho é que... De alguma forma, apesar de não ter ideia de como fui acabar ali ou de quem era aquela pessoa, decidi aceitar as palavras dela. Por outro lado, quais outras opções eu tinha?

Simplesmente não me importei. Acho que já não existem muitas coisas com que me importo.

Estou cansada. De tudo.

Deixei minhas pálpebras caírem e abracei a exaustão.

Dias depois, quando voltei a abri-las, tive a certeza de que tomei a decisão correta. E finalmente, após um longo tempo, eu estava exatamente onde queria estar.

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Notas finais do capítulo

Pessoal, me desculpem pelo atraso.
Meu pc deu problema, fiquei sem internet a semana toda e ainda por cima estou entrando no final do semestre mais corrido que eu já tive até agora.

Provas estão vindo, trabalhos para entregar estão acumulando... E cá estou, a trancos e barrancos, postando para vocês o primeiro capítulo do mês de julho.

O próximo eu não sei quando virá. Talvez ainda hoje, talvez amanhã... Ou talvez quando eu finalmente me livrar dessa joça de sistema capenga e comprar um computador novo.

Mas não tenham medo! Ainda que eu precise apelar para lan house, continuarei postando essa fanfic. Equinocial não ficará parada! Tenham fé!

Muito obrigada por lerem!

See you soon!