Eu Escolho Quando Parar escrita por Miss Viegas


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Aqui termina a história. Desculpem a demora e espero que curtam!



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Será que eu tinha ouvido bem? Lote havia mesmo me pedido isso? Matá-la? “Eu quero que você me mate”, por um instante isso fez um eco ensurdecedor na minha cabeça. Ela era minha irmã, como podia me pedir isso? Será que não era amada o bastante? Ou será que foi a falta de amor que a fez chegar a esse ponto? Eram muitas perguntas para tão poucos segundos de raciocínio.

- Lote, você tem consciência do que acaba de me pedir? Sei que não está bem mas...

- Eu sei muito bem o que acabei de pedir. – ela me cortou – Estou cansada Miguel! Cansada de todas essas pessoas tentarem me impor suas concepções e ideias da vida, sem levar em consideração o que eu sinto ou penso. Tenho muita bagagem para dizer que boa parte do que falam para mim diz respeito mais a elas mesmas do que qualquer outra coisa. E isso chegou a um estado que não aguento mais.

Lote estava com lágrimas nos olhos. Ela despejou aquelas palavras em mim, como um balde que transborda. Pergunto-me por quanto tempo ela guardou isso, era como uma bomba relógio. Ainda assim, esperava que tudo não passasse de uma brincadeira, de um momento de drama em que ela exacerbou suas emoções.

- É sério, Miguel. Tá tudo tão ruim aqui dentro. – ela colocou sua mão sobre o peito. – Eu não aquento mais, não quero mais ficar aqui.

- Lote, não é assim também. Sei que foi muito duro para você, sei que o amava muito, mas não há remédio.

- Então eu vou fazer um.

- Não vou fazer isso, Lote. E nossos pais? Não pensa neles? Não pensa no que pode ainda fazer da vida? – me surpreendia cada vez mais, eu estava argumentando? Era isso mesmo? Argumentando uma coisa totalmente fora de cogitação, nunca faria o que Lote me pedia.

- Penso neles sim. Tanto penso que quero livrá-los da vergonha que é ter uma filha tão diferente assim deles e de tudo que acreditam. Vamos ser sinceros, Miguel. Você sempre foi o favorito, o mais brilhante, o mais prático. Olhar pra mim é como olhar um desafio, um brinquedo meio quebrado que precisa ser consertado, mas quando eles olham pra você é como olhar pra um espelho.

Aquela frase arrepiou minha espinha. Havia tanto pesar na voz de Lote, que senti um peso em todo o meu corpo. Penso que ela mascarou seus verdadeiros sentimentos por toda uma vida. Veio tantas imagens na minha cabeça, o modo como nossos pais falavam de nós para o resto da família, os adjetivos que usavam para descrever Lote, as palavras “emotiva” e “sentimental” eram ditas com certa rispidez e desdém.

- Eu não pediria isso por acaso. Não é uma fuga, é uma solução. Até quando acha que eu aguento? Pergunto sua opinião porque eu já tenho a minha formada. Queria que me ajudasse, já que você é a pessoa que eu mais confio nesse mundo, além é claro, dele. Não queria envolver outra pessoa nisso.

- Por que Lote? Por que?

- Porque meu sonho foi arrancado de mim. E ninguém ajudou a estancar a ferida que ficou no lugar, ela continuou sangrando e agora minhas forças e minha energia se foram. Me sinto fraca Miguel, cansada. Acordo pensando que vai melhorar, mas quando ponho o pé fora do quarto, vejo que não. É assim que quer me ver? Quer ver eu definhar? Viver como um fantasma que não conseguiu a liberdade do corpo?

Aí eu percebi o quanto doía. O quanto me doía ver Lote daquela forma, vi o quanto ela tinha emagrecido, o quanto estava pálida, quanto tempo fazia que seus olhos não assumiam aquele brilho esmeralda de alegria que eu tanto gostava? Eu via o quanto havia um vazio nela e percebia naquele momento que esse vazio doía em mim também, eu era um cara com concepções diferentes da minha irmã. Era mais propenso a amizades do que ela, era mais exposto, não me importava com isso, mas Lote era reservada, ela colocava a cabeça por cima de um muro e saia dele por uma portinha bem pequena, com uma rapidez tão grande pra que ninguém talvez tivesse tempo de vê-la, pra que seu tempo de exposição a esse mundo externo fosse menor.

Lote devia se sentir pequena, uma pessoa pequena em um mundo tão grande. Não tinha tanto haver com ser madura, afinal, ela era uma pessoa muito responsável, não nego que o modo como ela cumpria seus deveres, ainda com aquela sombra nos olhos, era louvável. Só que de tanto se trancar dentro de si mesma, ela havia sufocado e chegado até ali. Me pedir algo dessa natureza chegava a ser desesperador, mostrava o quanto apesar das suas lutas para se proteger, Lote havia fracassado e estava mais perdida e exposta do que nunca. Além do que o porto seguro que ela possuía se havia ido também, com ele, ela conseguia aguentar mais as coisas, isso era indiscutível.

- Sei que você saberia como fazer isso. Tem conhecimento á respeito. Eu também sei, mas seria muito suspeito eu procurar os meios para a minha morte, diferente de você. Sei que é estranho, porque quando se quer morrer, não se precisa de ajuda, mas eu preciso, não por falta de coragem, mas pelo excesso de cuidado.

- Isso é assassinato. – disse eu finalmente.

- Não, não é. Assassinato é quando você tira a vida de uma pessoa contra a vontade dela, suicídio é quando você tira a vida de si mesmo e não outro. E eutanásia é caso eu estivesse á beira da morte e você tivesse a “misericórdia” de me matar. O que eu estou pedindo é uma coisa no meio disso tudo. Mas já percebi que você não fará isso, tudo bem, só peço que fique entre nós. Vamos, eu te pago um crepe.

Lote se levantou do balanço e foi andando. Fiquei estático por um tempo, sem saber o que fazer. Ela sabia como jogar as coisas pra dentro de seu muro e fazê-las permanecer lá, Lote não mencionou nada depois daquela tarde. Eu, por minha vez, varava a noite pensando mil e uma coisas, achando que a qualquer momento poderia acontecer algo de muito ruim. Mas tudo continuava igual, Lote sentava a mesa normalmente, falava com nossos pais, ouvia suas críticas, sempre calada e mantendo o respeito que lhes devia. Mal sabia que tudo estava tomando um caminho que fugia a tudo que aparentava.

                                                ***

A festa de formatura de uma prima nossa muito querida estava se realizando naquele sábado. Lote se vestiu com muito esmero, cabelos presos, vestido escuro que acentuava sua pele morena e maquiagem que destacava seus olhos. Mamãe ficou orgulhosa, da postura dela, de como estava bonita, mas eu notei. Notei que ela era como uma boneca de porcelana, muito fina e bonita, porém imóvel, automática, fria. Notei que seus olhos escuros escondiam lágrimas não choradas e o quanto ter que representar que estava tudo bem nesse evento público de família lhe era desagradável.

Depois dos proclamas e de ouvir toda a família dizer pra que ela se animasse, chegou a hora do jantar. Muita gente dançava, Lote tentou, mas não conseguiu então ela foi comer. Eu me entrosei com alguns primos e tias mais animadas, mas quando fui pegar um drink, notei que Lote havia sumido. Senti um aperto no coração. Um mau pressentimento.

Saí apressado perguntando por ela, passei por meninas fúteis querendo me agarrar, garotos bêbados, mulheres rebolando até o chão, mas dentro de mim sentia uma sombra, uma urgência em encontrá-la e percebi o motivo. O local da festa tinha dois ambientes, o segundo andar não tinha ninguém, todos se amontoavam no primeiro andar, no meio das luzes e da dança. Foi quando olhei para cima, Lote estava na sacada do segundo andar. Algo no seu olhar me desesperou.

Ela olhava para baixo e depois para frente, um olhar vazio, ela não parecia ver realmente. Vi que segurava as bordas firmemente, algo dentro de mim disparou e foi num impulso que corri para o segundo andar. Atropelei algumas pessoas e saí empurrando para chegar até as escadas. Subi de dois em dois degraus, vi Lote já debruçada, com metade do corpo para fora ela havia subido em um dos níveis da grade, se preparava pra subir no segundo e eu corri e a abracei por trás, puxando-a pro chão. Caímos os dois pesadamente. Por um instante eu fiquei digerindo aquilo tudo, Lote parecia disposta a se jogar mesmo, ali no meio da festa. Tal qual foi minha surpresa quando ela se virou pra mim e começou a esmurrar meu peito:

- Eu odeio você! Você, Miguel, é um cretino! Não quero mais isso!

Depois da dor que passou, só pude abraçá-la, ainda que sentisse uma resistência, ela começou a chorar muito e ficamos ali, sentados no chão por longos instantes. Naquele momento, soube que Lote, a minha Lote, havia chegado ao seu limite.

                                            ***

Naquela noite não consegui concatenar as ideias. Todos nós fomos dormir, eu não consegui. Aí decidi, procurei minha maleta de trabalho e de lá tirei uma seringa, luvas e duas ampolas de adrenalina. A casa estava ás escuras, o quarto de Lote era praticamente em frente ao meu, rumei para lá. A porta estava aberta, Lote estava deitada olhando para o teto, o pequeno abajur que ela tinha no quarto mostrava seus olhos brilhantes de lágrimas. Aproximei-me de sua cama, vi que ela me olhou levemente, com um olhar desolado.

- Tudo bem, Lote. Vou fazer o que me pediu. Só eu sei por ser seu irmão o que está passando e o quanto me custa fazer isso. – eu estava prestes a chorar.

- Vai doer?

- Não, você fecha os olhos e o resto eu faço. Minha querida.

Eu arrumei os instrumentos, Lote antes de fechar os olhos teve um lampejo do brilho de outrora.

- Obrigada, meu irmão... – nesse momento apliquei a injeção e coloquei a seringa na mão de Lote, dando a entender que ela mesmo aplicara. Vendo que seus sinais vitais se esvaiam, senti um vazio dentro de mim, como se estivesse caindo.

- Lote... te amo. – murmurei antes de sair do quarto e me livrar dos aparatos para que ninguém desconfiasse, mas não conseguia me livrar da culpa e do negro que se apossava de mim.

No dia seguinte, foi um choque. Meus pais quase enlouqueceram. Nesse momento vi o quanto eles sentiram suas falhas com Lote pesarem. Todos ficaram chocados. E quanto a mim, não consegui chorar, sentia, mas as lágrimas não conseguiam vir á tona. Passava pelo quarto de Lote, sentindo ás vezes uma brisa como se ela estivesse ali a me agradecer, mas sabia que ela ainda não estaria bem como queria. O que me consolava era seu olhar de gratidão no momento em que eu fechei seus olhos.

Hoje, anos depois, estou longe de casa. Por opção quis sair, fazer minha vida. Nossos pais ficaram sós com suas lembranças, suas culpas, acertos e conflitos. Por incrível que pareça, quanto mais o tempo passa, mais presente Lote fica em minha vida, acho que ela é meu anjo da guarda agora, me ajudando também a passar pelos meus problemas.

Se um dia tiver uma filha, eu já sei, lhe darei o nome de Charlote.


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Notas finais do capítulo

Mereço reviews? XD



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