Na Estrada escrita por F R Charlie, Isabelle Masen


Capítulo 1
Na Estrada


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura!



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O meu avô costumava dizer que todos tem seu demônio interior. Para ele, foi a guerra que ele lutou no Vietnã. Para minha vó, acho que foi o meu avô e tudo que ele fez ela passar. Para os meus pais... Qual é o demônio deles? Acho que sou eu.

Embora eles quisessem que eu fosse a filha perfeitinha, me pagando aulas de francês, ballet, português e piano, eu nunca conseguia alcançar o título de "sonho de consumo". Pulei a cerca tantas vezes que seria impossível contar nos dedos.

Eu faço isso apenas pra chamar a atenção deles. Não faço muito o tipo "rebelde sem causa", mesmo o que eu tenha falado pareça uma frase típica de rebeldes. 

Eu sonho em ser atriz, ter um namorado ou apenas ser livre, rumar ao vento até onde ele quiser me guiar, conhecer novos lugares, acordar ao meio dia e usar botas de combate. E, já que não aceitam que eu me comporte assim aos meus dezoito, pedi a meu namorado que me ajudasse nisso nesse meu aniversário. Afinal, sou maior de idade - hoje -, o que me torna legalmente livre pra ir onde eu quiser, quando eu quiser. Agora posso ser imprudente e responder pelos meus atos.

Arrumo minha última peça de roupa dentro da sacola e coloco meus óculos escuros no decote da blusa. Fecho o zíper e viro pra trás, dando de cara com uma foto minha ao lado de meus pais. Sorrio e a carrego, colocando-a dentro da sacola. Eu não perderia o contato com eles, são meus pais e não vão deixar de ser. Nunca.

Escuto a buzina de Peter do lado de fora e abro um sorriso largo, colocando o celular no bolso e o bilhete em cima da cama. Pego a sacola rapidamente, meus pais podem acordar por causa desse louco.

Fecho a porta e corro em direção ao carro de Peter, que sorri dentro de seu conversível branco maravilhoso.

--- Para de buzinar, eles vão acordar! - sorrio e ele ri.

Jogo a mala no fundo do carro e corro pra frente, mas ele acelera um pouco o carro.

--- Peter! 

--- Entre - sorriu e eu também, mas ele acelerou o carro novamente. 

--- Peter - falei erguendo as sobrancelhas e ele deu de ombros, acelerando mais uma vez quando eu toquei a porta.

--- Você é um idiota - sorri entrando no carro.

--- Também te amo - sorriu-me e eu lhe dei um selinho demorado, para logo ele começar a dirigir o carro.

Dou uma última olhada pra trás e me despeço mentalmente de meus pais.

--- Olá Los Angeles, adeus Seattle - disse ligando o som alto, rindo e tomando um milkshake - diga adeus, Nic!

--- Adeus Seattle! - rimos e entramos na estrada deserta do caminho da fronteira.

--- Pega o mapa - ele indicou e eu abri o porta luvas, tirando um rolo enorme de papel e abrindo-o. Peguei o celular.

--- Não vai ligar pros seus pais - ele disse me olhando.

--- Mas eu quero ligar - falei já desbloqueando o aparelho.

--- Meu Deus, não.

--- Eles ficarão preocupados - falei fitando o aparelho.

--- Você deixou um bilhete, né?

--- Mas eles não sabem que vou pra outra cidade. Ficarão preocupados - falei mordendo o lábio inferior e ele sorriu de leve.

--- A idéia é essa.

--- Eu vou ligar - falei olhando pra ele e ele voltou a fitar a estrada.

--- Esse é o seu problema. Não se foge de casa e liga pra dizer que está bem - disse gesticulando.

--- Porque não?

--- Dirão pra você voltar. Por isso - disse revezando olhares entre mim e a estrada.

Não respondi. Não quero arranjar uma briga com ele, então simplesmente dei um beijo em sua bochecha e me encostei no banco.

Estrada Columbia River Highway - Portland - 8h20 a.m.

O sol já estava brilhando no céu, e a estrada, graças a Deus estava vazia. Comi mais uma batatinha e balancei os pés, que estavam em cima da porta do carro.

--- Sabe, é o agente que deve segurar sua barra. Porque se você escolhe o papel errado e fica marcado, já era - falava me olhando e gesticulando com as mãos no volante. 

--- Aham - falei enquanto mastigava a batata e joguei uma em seu peito, sorrindo. Ele olhou pra mim e sorriu.

--- Vá se ferrar - disse e eu ri, olhando pra ele. Ele colocou uma mão perto de minha barriga e eu me endireitei no carro, entendendo o que ele iria fazer. E eu particularmente odeio cócegas.

--- Você ficará marcado denovo. Pare - falei e Peter riu, mas logo colocou a mão de volta no volante pra desviar de um caminhão.

Erguemos os braços e gritamos pro motorista.

--- É Los Angeles, Baby! - falei rindo e Peter me acompanhou.

--- Yes! - gritou animado e o homem buzinou pra nós.

--- Vão pra casa! - gritou de volta e eu olhei pra Peter, caindo na gargalhada.

Estrada Fandango Pass, Lake City - Oregon - 9h50 a.m.

Decidimos parar pra dormir, afinal, chegaríamos apenas de noite mesmo. Estava aconchegada com o banco totalmente inclinado pra trás, enrolada no edredom que trouxera de casa. A sanfonar do carro estava cobrindo a vista pro céu. Peter reclamava porque queria levar o cobertor pro mato.

--- Não, deixe o cobertor aqui - falei puxando-o pra mim.

--- Está frio la fora - reclamou com uma mão na porta do carro.

--- Que frescura - falei rindo e ele encarou o vidro.a

--- Deve ter cobras lá - falou parecendo ter medo.

--- Você deve estar brincando né? - falei.

--- Nic! - falou manhoso.

--- Pega um casaco oras! - falei virando o corpo e ele rosnou, dando um beijo em meus cabelos.

--- Lá vou eu - disse e eu virei, vendo-o se preparar pra ir urinar na floresta - um, dois, três! - disse e abriu a porta e saiu correndo - lê-se quicando - pra um tronco derrubado próximo do carro, desviando de alguns galhos e quase tropeçando nos matinhos que tinham ali.

--- Ah, droga! - disse abaixando a calça de costas pra mim e eu gargalhei.

Estrada West Side Freeway - San Francisco - 12h10 a.m.

--- Droga! - Peter jogando o telefone com violência no banco de trás.

--- O que foi?

--- Ernest cancelou nossa reserva - disse em pausas.

--- Como é? - falei já irritada - e onde vamos ficar?

--- Relaxa, damos um jeito - falou, mas sei que também tentava convencer a si mesmo disso. Suspirei.

--- Ainda temos os dois mil dólares, né? - falei lentamente me aproximando dele.

--- Nic...

--- Temos ou não temos? - falei gritando, já enfurecida.

--- Eu dei tudo nesse hotel, no combustível pro carro, pro lanche e pra todo o resto! - disse olhando pra mim e eu arfei.

--- Porque não me contou isso? - falei e ele demorou de responder.

--- Eu vou pensar em algo.

--- Pensar em algo? Eu não vou virar uma mendiga - falei erguendo as sobrancelhas.

--- Não se preocupe, está bem? - me olhou.

--- Meu deus. Ótimo. Droga! - falei abrindo o flip do telefone, pronta pra ligar pra meus pais e pedir que depositassem dinheiro na minha conta. Que merda, o objetivo era nos tornar independentes e não  ficar ligando e pedindo dinheiro pra meus pais o tempo todo.

--- O que está fazendo? - disse e eu fechei o flip novamente, meu celular estava descarregado. Ótimo!

--- Nicole, o que está fazendo? - repetiu e eu peguei seu telefone, mas estava sem sinal.

--- Será infantil a vida inteira? - disse e eu o olhei, irritada e quase chorando - esse filho da puta, idiota! - falou batendo no volante e me olhou. 

--- Está bem? Tudo bem, vem cá - falou me abraçando com uma mão em meus cabelos, me dando um beijo na testa - está bem? pronto, já passou - o abracei forte.

Estrada Velha - Fronteira entre São Francisco e Califórnia - 13:20 p.m.

--- Eu não estou vendo essa estrada, não está no mapa - falei revirando o mapa.

--- Mas estamos indo para o Oeste. Será mais rápido - disse olhando pra mim e sorrindo.

--- Você já viajou de carro antes? 

--- Já... pra Vancouver - disse e eu o olhei incrédula.

--- Acha que aqui é um atalho? Estamos perdidos - falei embolando o mapa e jogando-o nos meus pés.

--- Não estamos - disse sorrindo.

--- Sim, estamos - falei brava - quem está sendo infantil agora? - falei olhando pra estrada cruzando os braços. Ele suspirou.

--- Preciso fazer xixi - falei olhando pra ele de baixo pra cima.

--- Vou encostar - falou passando a marcha.

--- Não vou fazer xixi no mato. 

--- Porque não?

--- Tem cobras aí, e eu não estou sendo infantil. Só encontre um banheiro - falei e ele comprimiu os lábios, se endireitando no banco.

"Parada" 

Peter virou e avistamos um banheiro feminino ao lado de um escritório da guarda florestal, afastado do local do carro. Não haviam carros e nem nada ali, mas concerteza deve ter alguém 

--- Que ótimo - falei constatando que ali era um banheiro abandonado, com risco de ter ratos ou até cadáveres.

--- Eu falei pra ir no mato - falou e eu bufei, saindo do carro. Ele balançou a cabeça em protesto e pegou um cigarro.

Depois de andar 3 metros até o banheiro entrei e constatei que era realmente abandonado. As paredes eram cinzas e descascadas, tinham três cabines onde uma delas tinha a porta arrombada, a pia estava suja de terra e o espelho redondo estava imundo. Haviam manchas pelas paredes e o lugar de retirar o papel estava com algumas coisas escritas, mas ilegíveis. O papel parecia um pano de chão velho, talvez do tempo que estivesse ali sem ser usado. Nojo!

Andei até a primeira cabine e ela estava cheia de papel dentro do vaso e no chão, entupindo-o todo. Gemi de nojo.

O segundo estava imundo, mas ao compará-lo com o terceiro acabei por ficar ali mesmo. Abaixei o jeans preto e fiquei a centímetros daquele vaso. 

Peter, desde ontem quando arrumei as malas, estava tão preocupado quanto um drogado. Entendeu a ironia?

Ele vem tentado bancar o responsável pra cima de mim desde ontem, e se ele quiser bancar o 'paizão' não vai dar certo. Mas não é só isso que vêm me incomodando.

Há tempos - desde que começamos a namorar, eu sinto que não tem química. Quer dizer, temos tudo em comum e nunca ficamos sem assunto, é verdade... E não dá pra mudar isso, sei que não. E isso nos torna mais amigos, e não namorados. Nosso nível de 'amor' não é suficiente pra ser a base de um relacionamento. E é por isso que terminarei com ele em Los Angeles.

Limpei-me e amaldiçoei o maldito cretino que construiu esse banheiro e não voltou pra limpá-lo, indo lavar as mãos. 

--- Credo, nojento - resmunguei vendo que a água era marrom. Fiz uma careta automaticamente e limpei as mãos na calça mesmo,  pra não tocar no pano de chão que chamam de 'papel'.

Andei novamente saindo do banheiro e parei no fim dos matos, procurando pelo carro de Peter.

--- Peter? - gritei olhando pros lados. Andei mais pra frente e olhei em volta da estrada, mas não havia ninguém lá.

--- Peter! - gritei mais uma vez mas ninguém respondeu. Olhei pro chão e vi o cigarro que ele fumava.

--- Droga, droga, droga! PETER, CARALHO! - gritei enfurecida, dando um pulo. Cadê esse cretino?

--- Cretino! - falei chutando o ar e olhei em volta. Claro que não passariam carros pra lá, quem conhece um atalho desconhecido que nem está no mapa? É como se eu estivesse em uma ilha não explorada, sozinha. Sozinha na estrada.

Andei até o escritório da guarda florestal e olhei pelo vidro, mas não encontrei vestígios de uma silhueta ali dentro. Amaldiçoei-me por ter topado vir nessa merda de fuga.

Peguei uma pedra grande no chão e bati contra o vidro, sem muita força. O vidro nem rachou, apenas fez um barulho irritante. Bati denovo, sem muita força. 

--- "Será infantil a vida toda?" - repeti as palavras de Peter e o ódio me consumiu, e joguei a pedra com tanta força que ela atravessou o vidro e ainda atingiu uma estante de livros.

--- Sou uma super mulher - falei orgulhosa tentando humorizar, mas não mudou em nada a raiva que sentia. Peguei outra pedra e quebrei o resto do vidro que tinha, alcançando a fechadura. Quem sabe arrombando a porta de uma propriedade do governo não aciona um alarme ou sei lá o que?

Entrei ali e não era nada muito chamativo. Apenas umas duas ou três estantes de livros com mapas e algumas fotos de uma família, uma mesa executiva com algumas gavetas e papéis em cima com informações sobre o local, as paredes e o chão eram de madeira e tinha uma TV e vídeo cassete antigos em cima de uma pecinha baixa. Tinha uma radiopatrulha desligada conectada a um aparelho. Corri até lá e sentei na cadeira de rodinhas acolchoada que estava na mesa, mechendo em todos os botões até o troço de falar fizesse "pxx". 

Apertei o botão vermelho em cima e comecei a falar, nervosa.

--- Alô, alguém aí? Olá, preciso de ajuda! - falei desesperada e soltei o botão, esperando que alguém escutasse meu pedido e respondesse, mas ninguém respondeu.

--- Merda! - falei chutando o rádio longe. 

Abri as gavetas vasculhando o que tinha ali e encontrei alguns papéis e caneta na primeira. Na segunda tinham fotos e pastas, com uma lanterna vermelha. Coloquei-a na mesa, logo escureceria. Na terceira uma garrafa de vodka rolou até a ponta, e eu a peguei e coloquei em cima da mesa. Tinham também uns salgadinhos em saco. Coloquei-os do lado da lanterna. 

Levantei e andei em círculos pelo local, puxando os cabelos de leve e de olhos fechados.

--- O que você ganha com isso, Peter? Que diabos você queria? Vender meu celular e minhas coisas? Ficar com minha grana? - chutei a grande mesa - Não devia confiar em você. Merdaaaaaaaaaa! - explodi.

15 minutos depois...

Peguei um graveto e sentei numa pedra grande e alta. Devem passar das quatro da tarde. 

--- Peter, eu te amo - falei olhando pro graveto - será que você é o meu demônio interior? 

Assim, escureceu e eu estava cada vez mais puta. Se a vovó tinha o vovô como seu demônio interior e ele era severo com ela, Peter tinha tudo pra ser o meu. As vezes que chamava ele de Peete, quando tentava cozinhar pra ele, ou essa de me deixar incomunicável no meio de uma estrada desconhecida pelo mundo sozinha, sem roupas e sem nada pra comer exceto uma garrafa de vodka vagabunda e um salgadinho com gosto de isopor que eu mesma encontrei. Eu estava certa: ele era o meu demônio interior.

"Não seja tão infantil" ele diria se me visse fazer isso. Mas estou tão entediada e tão irritada intimamente que vou fazer uma insanidade. 

Peguei a caneta piloto preta da gaveta do escritório florestal e fui até o banheiro, na mesma cabine que tinha ído antes do babaca puto vagabundo desgraçado pau no cú miserável  Peter me largar nesse fim de mundo e comecei a escrever na porta.

"Eu encontrei o meu demônio interior!" escrevi em letras garrafais e logo encostei minha testa na porta.

--- Eu te amo, Peter - falei e comecei a chorar. 

--- Figpiff - ouvi e logo afastei o rosto da porta, atônita e desesperada. 

--- Tem alguém aí? Olá! Peter! - falei rápido olhando na outra cabine mas não tinha ninguém lá.

--- Figpiff! Figpiff! - ouvi denovo e virei-me, saindo das cabines e quando olhei pra pia...

---AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH! -  berrei assustada e arrombei a porta que dava pra entrada do banheiro, correndo. 

--- CARALHOOO! - gritei fechando a porta e puxando-a pra não se abrir mais.

--- Ratos! Puta que pariu, era só o que me faltava! OBRIGADA PETER! - gritei irônica fingindo alegria. Bufei e sentei-me apoiando as costas na porta.

O dia escureceu rápido, e suspeito que sejam mais de 20h00min p.m. 

Andei até o escritório florestal e liguei a TV e o vídeo cassete. Deviam estar uns 3 graus, que frio do caralho!

Aconcheguei-me na cadeira giratória de rodinhas e um filme começou. Era uma festa de casamento, na verdade. A câmera chacoalhava nas mãos de quem a conduzia, e pra piorar era em preto e branco.

--- Brega - ri comigo mesma e depois que o letreiro apareceu levei um choque. 

Edward Norton & Tracy Kenton, 1947

Abri a gaveta que tinha fotos de uma família e ví eles mesmos, em fotos coloridas e estavam com a mesma aparência do vídeo. Verifiquei atrás e... 

--- Caralho! 

22 de outubro de 2012, Kodak Express

--- Será que... - falei já considerando a hipótese de serem vampiros, quando olhei pra tela.

A lua de mel dos anos 80, estrelando: Edward Norton, Tracy Kenton.

Logo apareceu uma noiva com um vestido finíssimo e um noivo com ela no colo e a jogou na cama, e começou a gemedeira. Ri.

--- E eu pensando que eram vampiros - falei e caí na risada, para logo depois adormecer.

Domingo - 12h30min a.m.

Abri os olhos e cocei a testa. 

--- Que pesadelo mais estranho - falei sorrindo, mas quando me ergui e olhei em volta vi que não era um pesadelo. Eu estava mesmo na droga da estrada velha e abandonada. Puta merda!

De repente fiquei com fome. Não comi nada desde ondem!

--- "Não beba álcool de manhã cedo, criatura. Faz mal pro fígado!" - repeti as palavras de minha mãe.

O pior é que ou eu bebia, comia terra, bebia água de terra ou morria de fome e descontentamento. Cruzei os baixos abaixo do peito.

--- Porra Peter, podia pelo menos deixar um pãozinho! - bufei e saí dali, contrariada. Fui até o banheiro e lavei meu rosto, borrando toda a maquiagem que eu colocara no dia anterior e esqueci de tirar, e o sono e quando chorei, parcialmente a borrou. 

Sei que posso correr o risco de pegar uma micose na cara, mas também corro o risco de morrer. Então, pra que me preocupar?

Saí do banheiro com um puta calor.

--- De noite faz frio e de dia faz calor. E olha que estamos em uma... - olhei pra estrada e pra alguns montes baixos - savana. Que terra mais estranha. Não tinha outro lugar pra me abandonar, Peter? Por isso esse lugar é inabitável - chutei as gramíneas de mato que estava pisando. 

Tirei a blusa xadrez que usava e a amarrei na cintura, depois fiz um coque mega-ultra-super bagunçado, com meio coro cabeludo de fios soltos. Mas pouco me importava, quem veria? E, além do mais, tirar o peso de cabelo das costas eliminaria um pouco minha transpiração. 

Olhei pra cima e o sol estava bem acima de minha cabeça, sinalizando meio dia. Hora do almoço em que Maria, a empregada, traria a comida que mais gosto: lasanha.

Peraí: Sonho+Me perder+Meio-dia. 

Entendi mais ou menos a armadilha do destino. Relembrei do ditado de minha querida vó: "Deus escreve o certo por linhas tortas" e sorri. Bom, meu próximo sonho seria ser aprovada no Bolshoi, mas agora tudo que mais quero é um pão com queijo e um bom refrigerante. Isso pode acontecer, mas aí entrei em dúvida, já que minha vó me deu aquele ditado depois de achar o remédio pra gases que precisava dentro da mochila da mamãe. 

Mas já que estou no meio do mato sem ninguém pra me julgar infantil, gritei:

--- Ok, Deus. Eu quero pão com queijo e refrigerante. E também quero uma muda de roupas, essa blusa está molhada de suor. Se puder, também, faça um telefone aparecer - falei mesmo sabendo que era tolo pedir aquilo.

Geralmente, só rezamos quando estamos apertados em uma situação, como se Deus fosse um pronto-socorro que atendesse nossas maiores emergências ambiciosas e interesseiras, e nunca pra nossa saúde. Por isso minha vó passava duas horas na missa da igreja. Ela agradecia todos os dias pela saúde que tinha e pela família maravilhosa que ele a deu. 

Andei em círculos em volta da placa anunciando a parada, totalmente entediada. Mais uma razão pra minha morte ou possível suicídio: tédio. Até agora minhas opções eram: me matar, morrer de fome, me enterrar no mato e morrer ou morrer entediada. 

No tempo seguinte, dancei, cantei, falei meus problemas pras árvores e até inventei uma coreografia legalzinha pra uma música que combinava com a situação. Só não escrevi um livro porque não estou com vontade de fazer NADA. Isso significa que minha morte por tédio está tomando conta de mim, já que não tenho nada pra fazer, e realmente não quero fazer nada. Não entendi muito essas palavras, mas minha mente está tão vazia quanto a de Peter. Só de pronunciar o nome daquele cretino, dou mais um forte chute no mato, arrancando algumas gramíneas que se colaram na frente das minhas botas. 

--- Saco! - falei me sentando numa grande rocha e dei batidinhas na ponta, tirando a sujeira. Uni as sobrancelhas por um instante e fitei meus coturnos, que chamo de 'botas' porque mais parecem botas de combate.

"...conhecer novos lugares, acordar ao meio dia e usar botas de combate."

Senti que todas as peças do quebra-cabeças estava se encaixando. Minha vó estaria certa? Meus sonhos estão de um jeito tão estranho por ter sido escrito em linhas tortas? Tudo ficaria bem? Tentei raciocinar, mas pelo calor do sol ou talvez pela fome, não conseguia ligar o que estava tentando entender.

--- Deus, me dá um sinal! - falei olhando pro céu e após 10 segundos rumei até o banheiro, torcendo pra não encontrar ratos novamente naquele chiqueiro. 

Agachei-me centímetros afastada do vaso sanitário, deixando a porta aberta. Afinal, não tinha ninguém aqui mesmo pra vir me espionar, a não ser ratos ou cobras.

--- Esse banheiro está um nojo, olha só pra isso - falei fitando o  "porta pano de chão" - não vejo a hora de morrer, ou de ir embora daqui.

Rapidamente coloquei a calcinha novamente e fechei a barguilha da calça, indo até a pia e abrindo-a pra tirar os vestígios de vaso podre com uma possível AIDS ali. A terra que saiu da pia me fez fazer uma careta. Nojo!

--- Banheiro dos infernos, nojento... - falei e fitei meu reflexo no espelho. 

Estou com uma olheira tenebrosa e meus lábios estão mega inchados e secos pela sede. Pareço uma canibal descabelada e esfomeada.

Sacudi a cabeça pros dois lados e o coque bagunçado soltou-se, fazendo as camadas de meu longo cabelo apontarem pra todos os lados. Um fio ficou dentro de minha boca, e quando toquei o canto dela pra tirar, vi um cano de descarga de carro preto entrando pela porta e logo uma silhueta masculina me fitou.

--- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHH! - berrei assustada, dando um passo pra trás e acabei sentando dentro da pia.

--- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHH! - o homem me imitou, dando um passo pra trás e jogando alto o cano, mas quando pisou pra trás acabou caindo, porque havia um pequeno degrau pra subir no piso do banheiro.

Logo o cano caiu, bem na cara dele. 

Quando meu coração parou de bater como uma britadeira em meu peito, minha consciência conseguiu voltar pra meu cérebro e me toquei: 

Minha salvação! Ele veio me salvar, foi um sinal divino! Mas a essa altura o cara deve estar morto. Morto?

--- PUTA MERDA! - consegui gritar e corri em direção à porta, dando de cara com um homem de jeans largo, blusa regata preta e um casaco no ombro verde escuro. Seus cabelos estavam colados à testa suada e seus lábios carnudos e rubros formavam uma linha perfeita. Seus olhos estavam fechados, o que me trouxe de volta à situação.

Ajoelhei-me ao lado de seu ombro e passei os dedos desesperadamente por sua cabeça, fazendo ele gemer de dor.

Notei que havia uma parte de sua testa, centrada no meio, uma bola da cor de sua pele e em volta tinha uma mancha bem alinhada, vermelhíssima, como uma explosão nuclear ou como o desenho de um sol, em vez que os raios são vermelhos e a grande bola era de pele.

--- Vai ficar um galo - falei preocupada e contornei sua testa, já sentindo uma bola sendo formada. Fiquei tão distraída que nem percebi que o indivíduo me observava, com duas gotas d'agua brilhantes que pareciam luas cheias azuis. Fiquei hipnotizada!

--- V-você não é um c-canibal? - gaguejou, começando a tremer.

--- Eu? HAHAHAHAHAHA - quase chorei de rir dando uma tapa em seu peito, tentando controlar as lágrimas que queriam descer com a hipótese ridícula. 

Aos poucos fui deitando no chão, começando a ficar vermelha. Eu ria de nervoso, e não por causa da suposição. Ele achava realmente que eu era canibal porque tinha um fio de cabelo na boca? Porra, essa foi ótima.

--- Vai ficar um galo. O que está fazendo aqui? Como veio pra cá? - perguntou sentando e tocando a testa.

--- Eu... Eu... - falei cessando as risadas - sou Nicole Carrow, e estava... viajando.. com meu EX namo... com meu ex namorado e ele me abandonou a-qui - falei em meio à gargalhadas e ele me fitou confuso.

--- O quê? - disse sem entender e eu bufei. Odeio essas pessoas surdas que não entendem o que falo!

Depois de acalmar o cara, fomos pra minha rocha e sentamos lá, mais calmos, sem crises de riso ou pancadas.

--- Eu sou David Lerman, estou aqui porque perdi o combustível do meu cadillac e tentei empurrá-lo, mas estou muito cansado. Cara, agora me responde, você é ou não um canibal? - dizia esfregando a testa de olhos semiabertos pela dor.

--- Não, cara! - falei meio ofendida - eu estava fugindo pra Los Angeles e parei pra ir no banheiro, e quando voltei não tinha mais ninguém aqui! - falei passando a mão na testa.

--- Você estava com alguém?

--- Meu ex namorado, Peter Baloni. Viu um conversível prateado no caminho?

--- Vi, ele amassou a capota do meu carro, e estourou o cano da gasolina - falou apontando pro cano que estava na porta do banheiro, jogado - ele é bem grosseiro.

--- Eu sei - revirei os olhos - e você também foi idiota de pegar um atalho? 

--- Ei - disse me fitando - não sou idiota, apenas gosto de explorar lugares desconhecidos.

--- Hum... então você sai por aí num cadillac mil novecentos e setenta e poucos pelo mundo sozinho? - uni as sobrancelhas, fitando David, que deu de ombros. 

--- Qual o problema em não ser fã de construir raízes em um lugar só?

--- Nenhum, eu entendo - dei de ombros, tentando tirar uma sujeira qualquer das minhas botas de combate. 

--- Sério? - havia um misto de choque e surpresa em sua voz. Olhei pra ele e sorri irônica, já imaginando mais ou menos o que ele imaginava em sua mente o que eu era.

--- Que foi? Acha que eu sou uma patricinha que nem a Paris Hilton e tenho medo de dar um passo? Está enganado, parceiro - falei e ele sorriu de leve, mostrando seus brilhantes dentes brancos.

--- Leu minha mente. É telepata? Ou canibais tem super poderes? - disse gesticulando e não tive como não rir.

--- Não sou uma canibal, sério.

--- Então porque comia o próprio cabelo com a boca seca? - perguntou curioso.

--- Porque tinha cabelos na minha boca? - respondi, mas saiu como uma dúvida.

--- Sei - disse desconfiado me olhando dos pés a cabeça - não está com fome, né? 

--- Pra ser sincera estou morrendo de fome - olhei pro chão - desde ontem. Não comi nada a não ser uma vodka e um salgadinho com gosto de isopor - ele me fitou pensativo.

--- Tem certeza que não é uma alcóolatra, que saiu bêbada de uma festa com amigos e parou aqui pra fazer xixi e seus amigos te roubaram o carro?

--- Sabe, você é muito criativo - falei erguendo uma sobrancelha - mas aposto que é um mecânico do Texas.

--- E você é uma vampira telepata - falou rindo e se levantou, apoiando-se na pedra.

--- Onde vai? - perguntei curiosa.

--- Pegar uns pãezinhos, você disse que está com fome - deu de ombros e eu franzi o cenho.

Sonho+Me perder+Meio-dia+Botas+Fome = sinal divino!

--- Deus, eu te amo! - sussurrei pra mim, sorridente. 

Enquanto David ia até o carro, pude observá-lo mais detalhadamente.

Era musculoso sem exageros, tinha as costas bem torneadas e a blusa estava um pouco molhada devido ao calor, permitindo-me ver alguns gominhos. Seus olhos realmente pareciam gotas d'água, quase como os do Ian Somerhalder, nossa... Se um Deus grego fazia parte do pacote, eu é que não vou pedir reembolso!

--- Nossa - falei alto demais, fazendo ele olhar pra trás. Olhei em volta procurando uma desculpa pra meu pensamento pervertido - nossa, esse lugar fede! - passei a mão nos cabelos, nervosa.

--- Como você descobriu esse lugar?

--- Não fui eu, meu ex namorado pegou um atalho que nem ele mesmo conhecia.

--- Bom, não é tão desconhecido assim - disse fechando a mala com uma bandeja prateada embalada com plástico nas mãos - já que tem um banheiro e um escritório florestal arrombado.

--- Eu arrombei - dei de ombros e ele me olhou estranho, vindo até mim. Quando ele ia dizer algo, fui mais rápida, imaginando o que ele ia dizer.

--- Eu não sou um canibal! - falei inconformada e levemente ofendida.

(...) 14h25min

David pegou pãezinhos e algumas latinhas de refrigerante. Agradeci aos céus por isso, era exatamente o que eu queria comer. Embora tomar refrigerante ao meio dia sem ter comido nada antes não seja nada bom pra meu estômago. 

  --- Me diz - falei e mordi mais um pedaço do DELICIOSO pãozinho de queijo, que superava, com certeza, o da starbucks - você é padeiro? - falei e ele riu fazendo aparecer covinhas lindas em suas bochechas.

--- Não, eu só comprei pra não passar fome no caminho - disse tirando uma sujeirinha do canto da boca - quando eu quero comer alguma coisa, vou até o fim do mundo pra comprar.

--- Não me parece o tipo de pessoa que come coisas gordurosas - murmurei mais pra mim mesma, me referindo aos seus músculos fortes.

--- O quê?

--- Nada - falei automaticamente, corando de timidez, tomando um gole do refrigerante que mesmo morno satisfez minha sede.

--- Acho que deveria ligar pra polícia vir nos buscar - disse pensativo. Ergui as sobrancelhas, voltando ao meu objetivo com o estranho.

--- Deveria não, deve! Ligue agora! - falei engolindo de vez o resto do pãozinho.

--- Ah, liga você, eu vou comer - disse com descaso. Bufei.

--- Você é muito preguiçoso - falei puxando o celular de seu bolso, sem nenhuma vergonha ou constrangimento pela ousadia. Ele nem pareceu se importar.

Digitei os números do 911 da polícia dos EUA e esperei chamar.

--- Alô, tenente Wilheam da polícia federal americana. Em que posso ajudar? - meu peito parecia que ia explodir a qualquer a momento com a alegria súbita que senti.

--- Oh, graças a Deus! - falei ficando de joelhos sorrindo tanto que quase rasguei minhas bochechas - Ajude-me, por favor!

--- Espere, querida. Informe sua localização.

--- Estou em uma parada de estrada na Califórnia, um lugar chamado... - olhei à minha volta - Estrada Velha, eu acho.

--- Estrada Velha? Nunca recebemos pedidos pra ajudar pessoas neste lugar. Aí é um local abandonado, o que faz aí?

--- Eu... eu... Fui abandonada pelo meu namorado, que deve estar a caminho de Los Angeles e...e... eu... - falei e inevitavelmente comecei a chorar, despertando a atenção de David, que antes brincava com um rasgo em sua calça. Ele se inclinou pra frente pra me encarar.

--- Acalme-se senhora. Eu estou em Fresno, mas acho que posso contatar um de meus policiais pra mandar uma viatura pra ajudá-la. Precisa também de uma ambulância?

--- Não - funguei - não estou ferida fisicamente, só meu emocional que está péssimo - falei amargamente e David me encarou com suas gotas d'água azuis. Ignorei.

--- Ok, ok. Está com mais alguém?

--- Com um homem de... - ergui a cabeça, perguntando sua idade e ele respondeu - 21 anos que está sem combustível. 

--- Olha, eu ligarei pra uma viatura e a mandarei até aí, mas provavelmente ela chegará pela manhã pois ocorreu um acidente na estrada de Newman, e também pela chuva que se aproxima. Acha que conseguirá se manter segura até amanhã?

--- Tudo bem, tudo bem, eu me trancarei no escritório florestal e vou esperar. Muito obrigada, sério mesmo!

--- Às ordens, senhora. Mas uma coisa: se chegarem aí e isso for um trote... - comecei a balançar rapidamente a cabeça, devido ao meu nervosismo.

--- Não, isso não é um trote.

--- Tudo bem, então, aguente firme.

--- Muito obrigada - agradeci sorrindo abertamente e a ligação foi encerrada por ele.

--- Yahoo! - gritei começando a pular pela terra, dando socos no ar e me sacudindo. Estou aos prantos de felicidade!

--- Você está bem? Acho que devia chamar uma ambulância também... Ou um hospício, ou o Ibama, ou cientistas canibalescos - disse entre meus gritos de felicidade.

--- Oh, é mesmo! - parei de dançar e tomei o celular de suas mãos novamente, discando os números de minha casa.

--- Alô, residência dos Carrow - ouvi a voz de Maria, a empregada, e meu coração explodiu em felicidade, quase saindo pela minha boca ao responder.

--- Alô, Maria? Chame meus pais, aqui é a Nic, eu estou... - falei tão animada que nem percebi que o telefone estava mudo. Afastei-o da orelha e pude vê-lo descarregando.

--- Puta merda! - chutei o ar e David se levantou.

--- O que o policial disse?

--- Que virá pela manhã e que vai chover.

--- Ótimo, estou morrendo de calor - disse tirando a camisa e quase tive um piripaque ali mesmo.

(...) dez minutos depois...

Apresentei o local abandonado pra ele, como se fosse uma guia turística muito ruim, já que expressava minha opinião sem ninguém pedir. Mas David só ria, então não precisei ficar constrangida em momento nenhum. 

Mostrei a placa, o banheiro, o porta-pano de chão nojento e fiz tantas caretas que o cretino correu atrás de mim com a droga do pano na mão. Por último, apresentei o escritório florestal abandonado. Minha testa pingava de suor, minhas pernas estavam se derretendo como cera de vela e eu sentia as gotas de suor frias escorrerem de meu cabelo até minha coluna, me dando raiva. O calor tem um efeito raivoso sobre mim, me deixa irritada e com vontade de soltar os cachorros em quem se meter em minha frente. Minha mãe diz que é TPM, mas nem sempre estou menstruada quando acontece. Acho que sou um pouco masculina no assunto 'raiva', já que papai queria meninos. 

--- Onde você dormiu? - perguntou David passando os olhos pelo escritório, que já estava mal bagunçado.

--- Na cadeira giratória. Eu até queria brincar nela, mas estava com tanta fome e tão desesperada que acho que enlouqueceria de vez - ri com minhas palavras e ele murmurou algo pra si e riu baixinho, colocando a mão nos lábios olhando pro chão.

--- O que é tão engraçado? - falei fingindo irritação.

--- Já não é louca o bastante?

--- Cara, porque você insiste em me tirar do sério?

--- A cara que você faz é engraçada - disse rindo sem esconder mais. Bufei em descontentamento e olhei pela porta, avaliando seu carro.

--- Você trouxe roupas também? - perguntei timidamente e ele ergueu uma sobrancelha, parando de rir.

--- Claro, porque?

--- E água? - não respondi e lhe lancei mais uma pergunta.

--- Sim... - respondeu devagar e eu mordi o lábio e enlacei uma mão na outra nas costas, mexendo o pé, tentando fazer manha. 

--- Está com roupas sujas? - disse caindo na minha armadilha. MUAHAHAHAHA!

--- Muito... Sabe, essa água é nojenta e Peter não me deixou nada - ele ergueu uma sobrancelha e sorriu como resposta, indo até o carro. 

Logo ele voltou com uma blusa cinza de moletom, bonita, e ficaria enorme em mim, uma regata masculina preta e uma... Uma cueca?

--- Você tá de calcinha? - disse se aproximando de mim e eu arregalei os olhos, fazendo ele rir.

--- Se não tiver, pode usar uma boxer minha. Tá calor mesmo - deu de ombros como se estivesse explicando um simples jogo. 

--- Você é um tarado, sabia? Sua mulher não sabe disso? - falei pegando a blusa, totalmente envergonhada. Ele riu.

--- Tenho cara de velho por acaso? - disse passando o dedo indicador e o polegar no queixo, com um sorrisinho. Ri, não deu pra evitar.

Saí do escritório e fui até o banheiro, fechando a porta. Não ia me trocar na frente dele, claro que não!

Depois de tirar as roupas sujas, me meti dentro da blusa que ficou dois palmos abaixo do meu quadril.

Fitei a boxer mordendo o lábio. E se ele tiver alguma doença? Esses ratos de rua sempre trazem doença consigo, mas ele não me parece mal fisicamente. E que físico que ele tem...

--- Olha, eu não tenho doença não, sério - disse com a voz tão próxima que dei um grito, jogando todas as minhas roupas pra cima e batendo as costas contra a porta de aço.

--- Caralhooo! Você tá me espionando! - falei estagnada, procurando por ele.

--- Não, estou me olhando no espelho - disse e eu subi no vaso pra conferir, e discretamente pude vê-lo sorrindo e passando as mãos nos cabelos.

--- Coisa de boiola! - falei rindo e ele riu sem graça.

--- Há Há. Sai logo daí - disse e eu acabei por colocar a boxer. Nem daria pra notar, ao menos que eu sentasse de pernas abertas pro vento. 

Fiz um coque e saí do banheiro. Ele se virou pra mim e dei uma voltinha, como se perguntasse o que ele tinha achado.

--- Parece eu, só faltou o bonézinho - fez uma careta se apoiando na pia - mas não uso boné.

--- Obrigada - agradeci ainda meio envergonhada. Não sei se isso foi um elogio ou uma crítica.

--- Iai, o que vamos fazer até amanhecer? - disse olhando pros lados, sorrindo.

(...) 15h05min

Estamos há mais ou menos meia hora conversando e rindo no escritório florestal, sentados no chão e encostado nas estantes um de frente pro outro, bebendo o uísque que encontrei na gaveta do possível proprietário desse lugar.

--- Cidade que mora? - perguntei, tomando um gole do gargalo.

--- Mundo - riu - eu não consigo ficar parado. O máximo que eu consigo passar em uma cidade é uma semana - tomou um gole do uísque, sorrindo.

--- Então é vagabundo, rico ou assaltante? - falei e ambos rimos, nos olhando nos olhos.

--- Sou herdeiro de uma rede de Burger King em Chicago, mas só vou lá pra dar um olá pro meu pai às vezes - disse cruzando os braços, relaxado.

--- Vai lá tapear o cara pra ele não parar de te dar grana. Isso que é amor fraternal - assenti e rimos, quando ele sinalizou um mais ou menos com uma cabeça.

--- Então, tem alguma namorada? - perguntei mordendo o punho fechado e ele sorriu, erguendo as sobrancelhas, relaxado.

--- Como eu já disse, eu apenas dou algumas poucas paradas pelos lugares em que passo viajando. Eu paro só pra comer, então pode-se dizer que eu faço dois lanchinhos - riu malicioso e eu o acompanhei, jogando um pouco de uísque que estava na garrafa nele.

--- Cara, você é um taradão! Vou te prender por assediar sexualmente a uísque - falei fingindo bancar a policial enquanto ele ria.

--- Faz parte do meu charme. Não pode me prender, não é uma policial.

--- Sou sim, estou investigando um assalto à loja de pãezinhos inocentes e o assassinato de várias prostitutas - falei fingindo ser policial, com direito à cara durona e voz de macho. Ele riu passando o dedo indicador e o polegar no queixo.

--- Não pode me prender! - fingiu ser durão.

--- Eu posso sim! - falei  e peguei uma mecha solta de cabelo colocando entre o nariz e a boca, fazendo um biquinho pra segurá-la tentando fazê-la se passar por um bigode - e você está preso por desacato à autoridade! - falei apontando pra ele com uma mão na cintura.

--- Me rendo, gata. Se você não me assediar à caminho da delegacia, pode me colocar na solitária que nem tentarei fugir - disse erguendo as mãos, como se esperasse uma algema.

--- Convencido - falei rindo e ele puxou a camisa diante do peito.

--- Eu me garanto, né?

--- Diria mesmo isso pra uma policial?

--- Só se eu quiser morrer. Mas agora vamos mudar o rumo da arma, agora eu faço as perguntas.

--- Tudo bem, mas não faz como eu.

--- Viu como é legal? - riu maquiavélico - vou começar por umas fáceis e bem chatinhas. Qual seu apelido?

--- Nic.

--- E um que você odeia bastante?

--- Bom - falei e ri, tirando uma mecha de cabelo do rosto - quando eu tinha uns sete ou oito anos, eu tinha uma peça no colégio que tinha que ser uma anjinha, sabe aquelas com auréolas na cabeça - coloquei o dedo indicador acima da cabeça e o girei em círculos, indicando uma auréola - e asinhas bonitinhas. Mas como minha vó só tinha tecidos pretos, eu fui fantasiada de anjinho preto, parecendo o drácula, já que eu era meio dentucinha - falei fazendo uma careta - e até hoje, as amigas que tenho que foram da quarta série me chamam de morceguinha

--- Você realmente é dentuça, morceguinha - enfatizou bem o morceguinha, me deixando levemente irritada - agora vamos pras perguntas interessantes - sorriu malicioso e engoli em seco, com medo do que esse tarado ia perguntar.

--- Tá com medo? - desafiou-me, me olhando de olhos semicerrados. Fiquei numa postura ereta, cerrando os olhos e chamando-o com o dedo indicador, aceitando um desafio.

--- Quando deu seu primeiro beijo?

--- Aos quinze.

--- Quando perdeu a virgindade? 

--- Aos dezessete.

--- Qual a cor dos seus olhos?

--- Verde-escuros.

--- E a da sua calcinha?

--- Vermelha - falei e só depois que ele começou a gargalhar alto da minha resposta me toquei. Corei imediatamente.

--- Porque você tem que ser tão maldoso, hein?

--- Faz parte do meu charme, morceguinha - disse passando os braços cruzados para trás da cabeça, relaxado.

--- As garotas realmente gostam disso?

--- Amam - disse convencido e eu segurei o riso, engolindo um gole do uísque que já não ardia mais em minha garganta. Eu estava meio que bêbada.

--- Próxima pergunta, garanhão - falei e ele sorriu.

--- Tem algum talento secreto?

--- Diz você - ri e ele deu de ombros, me puxando pelo braço pra me levantar e me arrastando pra fora do escritório florestal, onde me deixou parada e pegou um caco de vidro grande que eu tinha quebrado.

--- O que está fazendo? - falei.

--- Uma insanidade, não tenho nada sério pra fazer e estou bêbado mesmo, talvez nem lembre disso amanhã.

Meu sorriso se congelou quando ele tocou a palma da minha mão delicadamente, depositando o caco. Uma pequena descarga elétrica desceu por todo meu corpo, exalando uma sensação deliciosa. Ele também deve ter sentido, já que se afastou rapidamente e uniu as sobrancelhas piscando rapidamente enquanto assoprava os dedos, colocando-os novamente nas minhas novamente. Os efeitos colaterais do uísque são os culpados, eu acho...

Logo ele pegou minha outra mão livre e colocou ela em cima da que segurava o vidro, bem afastada.

--- Sinta - falou e eu olhei pras suas mãos, acompanhando o que ele fazia.

Ele fez uma linha invisível pelos dedos e a passou em meu pulso, arrodeando várias vezes, dando várias voltas como se estivesse  dando um nó bem apertado em um sapato. Então ele apertou as cordas e eu senti um...

--- Au! - falei jogando longe o caco de vidro e fitei meu pulso - como fez isso? Que...

--- Fodástico - ele riu de si mesmo e eu continuei lá, que nem uma retardada olhando pro meu pulso. Eu senti como se ele estivesse apertado, de verdade!

--- Como fez isso?

--- Ah, é só um truque velho - deu de ombros e levantou meu queixo com os dedos, me fazendo olhar pra ele. Um tremor atingiu minha espinha ao fitá-lo.

--- Vai acabar babando - caiu na gargalhada e até limpou uma lágrima. Corei envergonhada e mordi o lábio inferior, sorrindo.

--- Agora me mostra o seu talento - disse assumindo novamente a posição de crítico. 

--- Hum...- falei coçando o queixo com o dedo indicador, pensativa - atuar - dei de ombros e ele negou com a cabeça.

--- Não talento artístico, talento normal, que poucas pessoas saibam.

--- Ok - revirei os olhos e andei até os matinhos que tinham perto do banheiro e puxei as mangas da blusa de David, pra não correr o risco de sujá-las. Ergui os braços no ar e joguei-os pra frente, com a intenção de dar uma estrelinha de capoeira, mas foi mais como um mico cacetástico já que a blusa subiu até o meu umbigo e eu caí sentada, sujando a cueca do cara. 

Olhei pro lado e o babaca ria quase se jogando no chão. Levantei abobalhada e envergonhada. Até um pouco nervosinha.

--- Se ficar rindo, lavarei suas roupas com a água do banheiro! - resmunguei limpando as mãos.

--- Você tem um talento oculto, Nicole Carrow. Qual seria... - disse com o dedo indicador no queixo, pensando, enquanto olhava pra minhas mãos chocando-se uma contra a outra.

--- Não pensa muito, não é o seu forte - ri mas ele parecia mesmo concentrado. Sorriu abertamente como se tivesse tido uma ideia e sinalizou pra eu esperar, entrando correndo no escritório.

--- O que? Sério, desiste, eu só sei atuar. Nem pra fritar ovo eu sirvo, aliás, eu sei mexer em... Caralho! - falei quando dois livros foram jogados contra mim e eu, por impulso, joguei um pra cima enquanto segurava o outro, por uns quinze segundos, fazendo um malabarismo quase profissional.

--- Sabe mexer em caralho? - o maldito encostou-se na soleira da porta com as mãos enfiadas nos bolsos da calça e um sorriso sacana na cara. 

--- Ei, eu sou uma fracassada, não precisa me fazer assinar um atestado disso - falei e ele riu.

--- Você não é uma fracassada - falou vindo até mim e colocando uma mão em meu ombro - você sabe mexer em caralho e sabe equilibrar livros, morceguinha - disse e explodiu numa gargalhada descontrolada. Dei-lhe um tapa no ombro.

--- Chega de jogo de perguntas - falei decidida e ele ergueu uma sobrancelha - quero te mostrar uma coisa - falei e puxei seu braço pra dentro do escritório novamente, empurrando-o contra a cadeira giratória e fui em direção ao vídeo cassete, ligando-o. Quando o letreiro começou a rolar, corri pro lado de David e remexi as gavetas atrás da foto.Agora eu ia curtir com a cara do malandro pervertido, ah se ia!

--- 1924? O que, vai me mostrar uma sessão de filmes de Charles Chaplin? - perguntou sem me olhar.

--- Charles Chaplin é de 1914 - revirei os olhos - gosta de Charles Chaplin?

--- Sou fanático - falou e eu sorri discretamente. Até hoje só eu e minha vó gostávamos de Chaplin, Peter odiava-o, achava antiquado e muito "engraçadinho". Legal saber que mais alguém aprecia meu divo inspirador.

Achei a foto e peguei-a, correndo pra dar pause na vida cassete.

--- Ei, porque tirou? - disse tentando olhar pra tela. Virei-me de frente pra ele com a minha melhor cara de maluca.

--- Olha isso - falei e entreguei a foto do casal, nos anos atuais. Ele viu a foto.

--- Tinham fotos coloridas em... 2012?!? – disse alarmado vendo o verso da foto, onde indicava a data que tinha me assustado a um dia atrás. Ri mentalmente, prendendo o riso com os lábios comprimidos.

--- Sabe de uma coisa? – falei olhando pros dois lados, fingindo procurar por alguém e coloquei minhas mãos no descansa-braços, aproximando meu rosto do seu.

--- Eu vi uns vultos por aqui ontem à noite. Eu estou realmente assustada, os livros começaram a se sacudir e vi sombras andando em volta de mim... AAAAAAAAAAAH! – gritei olhando pra uma estante e ele empurrou bruscamente a cadeira giratória pra trás, fazendo ela ir com tudo na parede.

--- AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHH! – gritou e eu não me aguentei. Explodi em uma risada escandalosa, quase urrava de rir. Me joguei no chão e meus olhos se embaçaram com as lágrimas que queriam descer.

--- Ei, porque fez isso? Queria curtir com a minha... – disse inclinando-se da cadeira pra dar uma tapa na minha coxa – cara?

--- E você não curtiu com a minha?

--- Mas eu sou um troll – bateu no peito e me ergueu nos braços, me ajudando a levantar. Aos poucos, os risos foram se cessando e eu evitei olhar pra ele, se não nunca pararia de rir!

--- Olha pra mim – pediu com a voz rouca e eu estremeci como um galho de árvore.

Levantei lentamente a cabeça e quando meus olhos encontraram os seus, fiquei hipnotizada pela íris expressiva, com um misto de ansiedade e nervosismo. Apertei um pouco suas mãos, que me erguiam com facilidade. Ele também me olhava, podia ver nitidamente meu reflexo em seus olhos. Ele analisava-me com cautela e com calma, como se quisesse gravar minha imagem em sua mente. Meus olhos desceram pra sua boca entreaberta, que estava seca e levemente ruborizada, assim como a minha. Expirei o ar discretamente e senti seu hálito de menta, doce. Senti-me tão embriagada que, mesmo que não estivesse bêbada, cairia no chão. Mas me sinto segura, pois sei que ele me seguraria se eu caísse, aqui mesmo ou se estivesse à quilômetros de distância.

Inesperadamente, senti sua mão acariciar minhas costas pela grande blusa, causando-me leves arrepios na pele.

Ele tentou aproximar seu rosto do meu de olhos fechados, mas virei o rosto deixando-o parado com a boca entreaberta de olhos fechados.

--- Não vou fazer isso denovo – consegui dizer com muito esforço. Ele entendeu e se afastou, olhando pro chão.

(...) 16h10min

Começou a chover, e da rocha, pude ver David arrastando uma mala marrom de couro até aqui.

Não sei o que senti quando me aproximei dele, só sinto que é... Errado. Eu não posso, eu não devo me sentir assim diante dele. O que está acontecendo comigo? O que eu fiz de errado?

Conheci esse estranho não tem nem um dia. Pode parecer atração, mas não é. Uma parte de mim sente que isso pode ser a coisa mais errada, imprudente e idiota que eu faria, se isso acontecesse. A outra parte sente que isso é a coisa mais certa a se fazer em toda a minha vida. Estou afogada em um mar de dúvidas em relação a esse homem e ao meu íntimo. Seria ele o meu demônio interior?

Quando estive com ele, essa tarde, esqueci-me de tudo. De meus sapatos sujos, do maldito fedor do banheiro público abandonado, da fome, dos palavrões, de minha família... Até de que estou há quilômetros de tudo que desejo pra mim... Ou não? Ou tudo isso que eu acho que quero, foi uma armadilha do destino para me trazer até essa estrada? E se tudo fosse uma emboscada para conhecê-lo?

Temos muitas coisas em comum, e o que não temos, não é importante e não afeta a nós. Ele é engraçado, extrovertido, insano, infantil e misterioso. É moderadamente pervertido, excessivamente modesto e inacreditavelmente lindo. Eu sinto o perigo em sua voz quando fala sobre rumar pelo mundo, eu me enxergo nele.

Algumas pessoas dizem que, olhar nos olhos de homens mentirosos é como se olhar o próprio reflexo nos olhos de um tigre. Dizem que ele dirá tudo que você quiser ouvir. Por isso eu quebrei todos os meus espelhos. Não preciso me ver em lugar nenhum, pois sei que se ele me olhar, estarei segura de que não sou uma simples presa fácil, porque enxerguei além de seus olhos. Eu enxerguei seu coração. E, assim, sei que ele não mentiu pra mim.

Muito pelo contrário, ele me contou tudo. Que sai com mulheres “lancháveis”, que não consegue se prender a raízes firmes e que vaga pelo mundo em seu cadillac. E que mocinha vai querer isso pra si?

Sei que devia estar reprimindo-me a gostar desse homem, mas não posso negar a conexão que sinto por ele. É estranho, confuso, distorcido e desfocado. Eu sinto algo por ele, mas não consigo dizer o que é, nem o que não é. Perguntas sem respostas, cartas sem remetentes, palavras desconexas. Um turbilhão de sensações estranhas percorrem meu corpo, mas nada é comparado a dúvida que martela em minha mente.

O que eu sinto por David?

A lua ofuscou o brilho do sol, dando lugar à uma noite estrelada e nublosa. Sentei-me na pedra enquanto não chovia.

--- Ansiosa? – ouvi David perguntar se sentando ao meu lado.

--- Sim,... Não... Eu não sei – falei perdida em pensamentos.

--- O que há com você? Cadê a morceguinha alegre e saltitante que eu conheço? – disse tocando minhas costas. Olhei pra ele.

--- Nunca fui alegre e saltitante.

--- É sim, você sabe dar estrelinha de capoeira, você é um gênio – disse bagunçando meu cabelo e eu ri. Não dá pra ficar séria com esse cara.

--- Tá tirando com a minha cara, né?

--- E deu certo? – disse erguendo as sobrancelhas abaixando um pouco a cabeça, tirando uma mecha de cabelo de meus olhos. Seu toque me fez estremecer.

--- Você me tira do sério – falei e ele riu, e depois olhou pro céu.

--- Parece que vai mesmo chover – falou e eu observei seus olhos visualizando o céu acima de nós e percebi que minha antiga teoria estava certa: Ele não mente. E quando olho pra ele, não é o meu reflexo que eu vejo.

Seus olhos estão calmos e não refletem o céu, como refletiram a mim. Estão calmos e de uma cor fixa, como um botão de rosa que só desabrocha nas primaveras.  

--- O que você faz quando não está explorando ou comprando pãezinhos? – perguntei ignorando sua afirmação.

--- Faço a coisa mais gay do planeta – disse me olhando apoiando os cotovelos nas coxas.

--- Tira fotos sem camisa? – falei e ele caiu na gargalhada.

--- Não, que tipo de gay faz isso?

--- É, tem razão – falei fazendo um biquinho e esperei ele continuar.

--- Eu escrevo poemas. Mas não aqueles românticos chatinhos, escrevo sobre lugares e sobre o que sinto – disse e semicerrei os olhos.

--- Porque é tão fechado pro amor? – perguntei com sinceridade e ele fechou a boca, revezando olhares entre o chão e meus olhos. Como eu sabia que ele não responderia, sentei-me mais perto dele, colando nossos braços.

--- Porque eu tenho que amar? Sério, me diz, cara. Porque um homem não pode viver sozinho sem ter que ficar idolatrando uma pessoa pro resto da vida? – disse seco e olhei fundo em seus olhos.

--- Covarde.

--- Me diz porque sou um covarde.

--- Porque precisamos encontrar uma pessoa que nos faça ainda mais feliz do que já somos quando estamos sozinhos. Pra multiplicar a felicidade, entende? Alguém pra nos fazer sorrir quando estamos tristes, nos esquentar nas noites frias e nos fazer sentir sensações maravilhosas. Precisamos nos sentir especiais, todos precisam. Todos precisamos de alguém que nos ame verdadeiramente. Só os fortes conseguem amar uma pessoa pra vida toda. Por isso, você é um covarde. Se fosse forte, teria uma pessoa, já que vai pra vários lugares sozinho.

--- O que uma coisa tem a ver com a outra? – perguntou curioso e aproximou um pouco seu rosto do meu. Dei de ombros.

--- As vezes a pessoa certa mora do outro lado do mundo e você não sabe. Por isso existe tanta tristeza em alguns relacionamentos, nos encaixamos no quebra-cabeça errado porque necessitamos de alguém enquanto não achamos a certa.

--- Isso quer dizer: enquanto não acho a certa, me divirto com as erradas – ele deu um sorriso torto e eu sorri.

--- Mais ou menos isso, só que as mulheres não pensam assim.

--- Eu já sei como as mulheres pensam, não é tão difícil assim.

--- Não, elas não são iguais. Cada uma pensa diferente, por isso que cada uma é especial.

--- Eu vou dizer o que você pensa – disse piscando e eu revirei os olhos.

--- Vá em frente.

--- Você quer que todos querem – falou tocando minha bochecha – você quer um amor que a consuma. Quer paixão e aventura. E até um pouco de perigo – disse e eu sorri no final, já que ele tinha acabado de fazer uma auto avaliação nele mesmo. E minha também. E esse fato me deixou nervosa e surpresa.

--- Isso é o que você quer – falei e ele deu de ombros.

--- Todos no mundo não tem uma “outra metade”? Então, minha metade também deseja isso. Eu conheço um pouco das mulheres. Já estive com todos os tipos.

--- Esperto – sorri e alguns pingos de chuva começaram a cair do céu.

--- Melhor a gente entrar – falou e se inclinou pro meu lado pra levantar, mas eu acidentalmente estava levantando ao mesmo tempo e nossos lábios se tocaram. Ficamos tão atônitos que não conseguimos nos mexer.

Acompanhado do nosso roçar de lábios senti tremores por todo o meu corpo e minha barriga ficou leve e gelada. Minhas pernas fraquejaram, me fazendo sentar novamente. Tentei me afastar de David, levantar e me proteger da chuva que já molhava meus cabelos, mas simplesmente fiquei presa à seus lábios parados. Sua respiração quente bateu contra meu rosto, me fazendo involuntariamente abrir um pouco a boca, só pra deliciar-me com a sensação nunca sentida antes, e que era, sem dúvidas, a mais prazerosa e deliciosa que já sentira com um simples toque.

Involuntariamente e já sem paciência pra relutar contra, moldei meus lábios nos seus, pedindo passagem, que ele cedeu sem pensar duas vezes.

Raios irradiaram por meus dedos, dando aos mesmos vida própria para percorrerem seus cabelos molhados e insuportavelmente lisos e sedosos, impedindo-o de se desgrudar de mim. Ele reagiu ao meu movimento ao passar um braço em minha cintura e enterrar os dedos em meus cabelos, desmanchando o coque que eu tentara fazer.

Nossas línguas travaram uma batalha deliciosa, com cautela e sem pressa, como se estivéssemos gravando cada movimento em nossas mentes. Eu queria, já ele eu não sei.

Durante nosso beijo longo e lento não éramos mais os dois estranhos, perdidos na estrada. Éramos apenas eu e ele, experimentando uma das coisas mais únicas, raras e prazerosas da vida. E eu gravaria aquele momento, mesmo que não acontecesse outra vez.

Logo o beijo tornou-se mais urgente, tornando uma batalha perigosa ao meu ponto de vista. Minhas mãos correram pra suas costas e eu me ‘joguei’ em cima dele, indo parar de frente em seu colo e ele me agarrava com um braço enquanto alisava meus cabelos com a outra. A pedra abaixo dele o fez escorregar e cair nos matinhos. Rimos contra a boca um do outro e eu mordi seu lábio inferior. Ele inclinou a cabeça pra frente quando me afastei, retomando o beijo voraz. Agora ele passava as mãos por todo meu corpo, e eu fazia a mesma coisa, como se quiséssemos nos juntar e ser um só.

O ar nos faltou e nos desgrudamos ofegantes. Desci o rosto e distribuí beijos, lambidas e mordidas por seu pescoço. Ele grunhia ofegando, para logo virar-se por cima do meu corpo, invertendo as posições. Agora ele apoiava-se nos cotovelos enquanto me beijava com desejo e cobiça.

Meu coração disparou com tamanha intensidade que gemi contra sua boca.

Essas sensações ao seu toque e o estranho modo que eu reagia contra eles eram a peça que faltava do quebra-cabeça: estou apaixonada por David Lerman. Pesar dos pesares, ele é meu demônio interior. Ao pensar nisso, me afastei abruptamente de seus lábios quentes. Amaldiçoei-me por isso.

Procurei alguma boa desculpa quando ele me encarou curioso, mas minha boca não colaborou. E os lábios entreabertos dele muito menos.

--- Está chovendo – falei com o pouco fôlego que tinha. Você só percebeu que estava chovendo agora? Anta, diz alguma coisa!

Por incrível que pareça, ao invés de ele atear pedras contra mim, ele riu! Puta merda!

Ele levantou de cima de mim sem constrangimento e me puxou pelo braço, ajudando-me a ficar de pé.

--- Continuamos lá dentro? – sussurrou safado em meu ouvido enquanto eu andava e eu estremeci fechando os olhos com sua voz rouca misturada com o som das chuvas. Ele riu novamente e veio pro meu lado enquanto andávamos a caminho do escritório florestal.

Quando entramos ele se sentou na cadeira giratória e eu tentei cobrir o vidro quebrado com alguns livros deixando o local iluminado apenas pelas cortinas venezianas que encobriam a janela, fazendo ficar tudo com listras pretas. Sequei os cabelos com as mãos e me sacudindo que nem um pinto molhado e me permiti bagunçar os de David antes que ele se resfriasse, enquanto ele bufava como uma criança teimosa. Ri disso.

Depois de me certificar de que estávamos num estado suportável, ele foi até sua sacola de roupas e jogou-me uma blusa de moletom e um jeans largo. Eu iria ficar parecendo um badboy com aquilo, mas era melhor que ficar gripada.

Ele se aproximou de mim antes de eu começar a trocar as roupas e roçou nossos narizes, e tive que intervir antes que minha respiração fosse embora.

--- Eu não posso... Minha família não aceitaria, eu ainda não terminei direito com o Peter e...

--- Só uma noite – ele falou simplesmente – não estou te pedindo pra casar, só quero uma noite. E não negue que também não quer – disse em sussurros em minha orelha e mordeu meu lóbulo.

--- Você é tão... tão...

--- Direto?

--- Convencido! Aquilo foi um vacilo – falei menos nervosa.

--- Vacilo seu ou meu? – falou sorrindo malicioso.

--- Tá bom – revirei os olhos – foi meu – falei o que ele tanto desejava ouvir e virei de costas, pra tirar os sapatos, ouvindo ele rir.

--- Eu sou uma moça de família, sabia? – zombei e ele gargalhou dando uma tapa na minha bunda que me fez pular.

--- E esse sou eu, lindo, charmoso e gostoso – falou rindo e eu bufei sentando na cadeira giratória. Tirei uma mecha do cabelo e lá estava ele, com a garrafa de vodka em mãos tentando tirar a camisa.

--- Olha, só porque eu to indecisa não quer dizer que você possa ficar tirando a camisa pra ficar me tentando. Isso é golpe baixo – falei fazendo um biquinho e ele me olhou confuso.

--- Eu to tirando a camisa pra abrir a garrafa – disse sorrindo – mas se quiser, eu posso te tentar até você implorar pra ficar comigo – piscou sorrindo sacana e eu ri.

Oh, ele está tirando inocentemente a camisa e exibindo seus músculos molhados só pra abrir a droga da garrafa. Parabéns Nicole, você se superou dessa vez!

--- Você vai implorar primeiro – falei com um sorriso sacana igual ao dele.

--- Eu sou bem paciente – sorriu abrindo a garrafa e jogando a camisa longe.

--- Espere sentado, meu bem – pisquei e levantei com as roupas dele em mãos. Ele sentou na cadeira que eu estava e... Caralho, a visão de seus gominhos ma-ra-vi-lho-sos se flexionando é... Ah, pare agora com isso Nicole!

Sacudi a cabeça e me virei de costas pra ele, totalmente ruborizada enquanto tirava o moletom, ficando apenas com meu sutiã de bojo preto.

--- Dá pra pelo menos tapar os olhos?

--- Porquê se daqui a pouco eu te verei sem nada disso? – disse rindo sacana e eu o olhei, implorando com o olhar. Ele fechou os dentes em um sorriso tão singelo e modesto que eu dei um sorriso torto sem nem perceber.

Surrender – Digital Daggers

Virou-se de costas e eu também, tirando a boxer branca ficando apenas de calcinha preta de renda, combinando com o sutiã. Prendi os cabelos em um coque e me abaixei pra pegar as roupas que ele me dera.

--- “Vermelho tornou-se minha cor favorita. Pelo rubor tímido que é esboçado em seu rosto, seus lábios carnudos, seu cheiro de rosas silvestres e seus olhos ardentes em fogo de paixão” – virei-me lentamente para encará-lo de costas olhando pra um ponto fixo no chão. Entreabri a boca envolvida por sua voz de veludo.

--- “Seu hálito, menta doce que sopra os ventos indecentes da noite, beijos rosados em lábios ofegantes. Cabelos negros rebeldes caem em suas costas nuas e dessa vez meus olhos ardem em vermelho escuro. Paixão é como te descrevo, magistrais são suas costas e paraíso é o teu corpo. Perco-me em tua voz, chamando por meu nome” – parei de lutar contra a maré e lentamente andei até ficar parada atrás dele.

--- “Nem o melhor dos poetas saberia descrever seu corpo com palavras inocentes. Ver-te é privilégio para os egoístas. Lábios virginais avermelhados naturalmente fazendo a paixão arder como fogo em nossos corpos, atiçando a ira vermelha oculta em teus tímidos sorrisos... – toquei seu ombro e sorri, estou realmente mexida com o poema. Não sabia que por trás dessa máscara sedutora e pervertida, poderia existir um poeta surpreendente.

Ele se virou e analisou-me dos pés a cabeça com cautela e abraçou-me pela cintura, fazendo-me sentar em seu colo. Beijou meu pescoço, fazendo meus pelos eriçarem ao seu toque.

---...”seja minha, só uma noite, para apagar o fogo vermelho que sai de meu coração – beijou-me a bochecha – morceguinha – sorriu e eu ri, para assim, beijá-lo.

Escorregamos da cadeira até o chão com nosso beijo calmo à princípio. Cada toque, cada sensação proporcionada apenas revelavam a mim um mar de emoções e sentimentos que sentia por David Lerman. Todo seu mistério me encanta, todo seu conteúdo me fascina e seus princípios me atraem. Não só no físico, mas em seu modo de pensar.

--- Linda – sussurrou ao pé de meu ouvido e roçou lentamente seu nariz até minha bochecha. Sem aguentar os joguinhos dele, cedi e beijei-o voraz.

O que sentira com David nunca foi sentido com nenhum outro rapaz que estive em toda minha vida. Pelos eriçados, desejo incontrolável e relutância em me afastar do corpo molhado e quente dele era tão diferente e prazeroso quanto uma criança em frente à uma loja de doces. A paixão acendeu-se em mim como fogo de mil sóis, permitindo as minhas mãos e pernas vida própria.

Ele mordeu meu lábio inferior e foi soltando-o lentamente. Ofeguei empurrei-o no chão, me sentando em seu colo. Ele passou lentamente os dedos por minhas costas até encontrar o fecho do sutiã que eu usava. Quando a peça caiu em seu umbigo, ele cobiçou-me com o olhar. Sorri timidamente e me joguei em cima dele, beijando-o com desejo. Suas mãos acareciaram minhas costas, quadril até parar em minha bunda, onde deu algumas apalpadas e apertava algumas vezes. Ajudei-o a tirar sua calça para logo, a cueca. Dessa vez era ele por cima de mim, beijando minha boca e fechei os olhos quando distribuiu selinhos lentos em minha bochecha. Depois orelha, pescoço, ombro e quando parou em meu seio, um calafrio me atingiu com seu toque úmido. Gemi e ele enterrou o rosto ali.

Naquele momento não éramos mais duas pessoas perdidas em um mesmo lugar, mas sim dois amantes cedendo ao fogo da paixão que arde com tamanha potência que nos impede de relutar.

Não faço ideia de quanto tempo se passou desde que começamos a fazer amor, mas já dava pra perceber o sol cruzando o horizonte e a chuva, aos poucos, cedia para nuvens alvejadas. David já dormia com um braço por debaixo de minha cabeça, seu ressonar despreocupado era tranquilizador, e se eu dormisse ali teria o mesmo efeito de paz que seu rosto está transmitindo. Mas devido à agitação dessa noite, perdi completamente o senso de sono ou de qualquer coisa ligada a “descansar”.

Em breve policiais invadiriam esse lugar e tudo isso vai acabar. Nosso mundinho perdido seria redescoberto e esqueceríamos do que ocorrera aqui. E se eu não quiser esquecer? E se eu fugir? David aceitaria fugir comigo?

Meu pai nunca aceitaria uma pessoa sem moradia ou mulher fixas. Minha mãe enfartaria e minha vó, tadinha... Peter realmente era a melhor escolha que eu poderia ter feito: era rico, tinha uma boa família e meus pais o idolatram. Acho que mesmo que ele tenha feito o que fez, a notícia seria esquecida em menos de uma semana. Sei que David nunca vai mudar, e se mudar, não vai ser de uma hora pra outra. Eu preciso parar de ficar criando ilusões tolas que nunca vão acontecer. Eu esquecerei, assim como ele vai esquecer e viveremos felizes pra sempre em nossas vidas distintas. Isso é o que eu irei fazer? Isso é o que eu quero fazer?

A dúvida permanecia: realmente quero parar de sentir as sensações proporcionadas por David? E se eu não conseguir senti-las novamente em outros braços?

Virei um pouco a cabeça e fitei seu rosto.

De repente imaginei-me em um mundo só meu, onde as portas estariam abertas pras possibilidades e um mundo em que eu e David poderíamos ficar juntos. Meus pais o aceitariam com um sorriso caloroso nas faces, ele alugaria um apartamento, compraríamos um cachorro, pediríamos pizza por telefone, faríamos juras de amor um ao outro e, acima de tudo, faríamos amor até o sol cruzar o horizonte.

Levantei ignorando meu íntimo que desejava ficar ali pela eternidade e fui até as roupas que eu estava vestindo antes de fazer amor com David. As roupas deslizaram com facilidade por meu corpo, já que eram largas o bastante pra me deixar parecida com um projeto de cantor de rap, que nem os que aparecem em filmes.

Sentei na cadeira giratória e me aconcheguei, dispersa em devaneios e pensamentos bem adolescentes. 

Uma lágrima desceu de meu rosto, correndo livremente pela minha face.

Eu não queria me afastar dele enquanto não conseguisse colocar ordem em meus sentimentos. Uma teia gigantesca se misturava e se embaraçava cada vez mais em minha mente.

Querendo afastar todos esses pensamentos e decisões que eu teria de tomar, deitei-me me aconchegando nos braços de David, que se remexeu sem abrir os olhos, abraçando-me mais contra ele.

--- para sempre minha, dia, amor... – murmurou nos seus sonhos. Sorri de leve e dei um beijo em sua bochecha, para logo dormir.

(...)

Dormi por pouco tempo, ainda estava agitada. Quando abri os olhos, o sol já adentrava pelas frestas dos livros e pelas venezianas da cortina. Uma leve corrente de ar soprou meus cabelos.

Abri os olhos e não encontrei mais David.

Levantei e caminhei sonolenta até a saída do escritório e o encontrei sentado no para-choque do carro, com um moletom cinza e um jeans escuro, comendo pãezinhos, fitando o horizonte, com um papel e caneta ao seu lado.

Sonolenta caminhei até ele, sem me importar com as pedras no chão.

--- Empolgado? – perguntei com a voz fraca sentando ao lado dele e ele me olhou, sorrindo triste. Porque será?

--- Você... quer pãezinhos? – perguntou e inclinou a cabeça pro lado, apontando o pote de pãezinhos e eu peguei-os, fixando meus olhos no caderno branco em sua perna. Mordi um pedaço do pãozinho e prestei atenção em cada movimento dele.

--- O que anda escrevendo? – tentei parecer indiferente ao fato de que em poucos minutos iríamos nos separar, definitivamente. Estremeci com o pensamento e coloquei uma mão no cotovelo que me apoiava sentada no carro, fitando suas mãos.

--- Nada demais, só passando aquele poema que fiz pra você pra cá – sorriu-me e eu corei fortemente.

Ficamos em silêncio apenas fitando o horizonte. Empurrei pro lado a bandeja de pãezinhos e deitei a cabeça em sua perna, com os joelhos dobrados pra cima sustentando meu corpo no carro. Ele colocou uma mão em meus cabelos e o afagou, me trazendo sono.

--- O que você acha que vai acontecer? – falei curiosa dessa vez. Eu realmente estava querendo saber o que ele sentia em relação a isso, e se estava tão atônito quanto eu.

--- Os policiais vão vir pra cá e você vai embora, assim como eu – disse frio, como se estivesse em outro lugar, sem me encarar, com os olhos fixos no horizonte.

--- E... Para onde vai? – perguntei como quem não quer nada. Mentira, eu queria saber muito. Mesmo sabendo que se eu o seguisse não o encontraria, já que ele pula de um galho pro outro rapidamente.

--- Talvez pro Colorado, ou Jersey – falou sem dar muita importância e afagou mais uma vez meus cabelos, tocando minha bochecha com o polegar.

--- E ontem...?

--- Um vacilo seu e meu – falou sem dar muita importância – e foi só uma noite. Fica na lembrança, já que não vai acontecer denovo – falou dando de ombros e me fitou. Escondi o rosto em sua perna, escondendo uma lágrima que ameaçava cair.

Eu estava aqui, toda preocupada com meus sentimentos por ele e é isso que ele pensa? Só uma noite, ficar na lembrança, vacilo? Essas palavras perfuraram um buraco fundo em meu coração. Mais lágrimas desceram livres por meu rosto, fazendo eu me sentir extremamente decepcionada e mais fraca e frágil que uma pena. Me sinto a criatura mais ridícula e infantil do planeta terra.

Não seja tão infantil!” as palavras de Peter ecoavam em minha mente e, agora sim, faziam sentido.

Logo ouvimos o som das sirenes se aproximando e David virou a cabeça, olhando pra trás de onde elas vinham. Apertei forte a mão de David e a beijei, fazendo ele me olhar confuso. Quando ele limpou as lágrimas de meus olhos foi que me toquei que elas ainda rolavam contra minha vontade. Sorri em meio a elas.

--- É de emoção – falei com a voz embargada e ele sorriu, me levantando e, de mãos dadas, fomos em direção dos policiais.

(...) Duas horas depois...

O tenente Conwell nos encaminhou pra um hospital, onde fomos analisados e felizmente não tínhamos doenças. Descobri que aquele local fora abandonado  por uma infestação de ratos há alguns meses. Depois de contar sobre tudo que aconteceu pro homem – exceto a melhor parte para mim – David conseguiu abastecer o carro. Tudo que consegui ver depois que David se afastou de mim sem se despedir foi um papel branco caindo de seu bolso e o som da porta do carro batendo, assim sumindo pelo norte.

Novas lágrimas ameaçaram em descer e, quase sem forças, andei até o papel e sem lê-lo guardei-o na calça que era dele. Seu cheiro estava impregnado em mim através delas e me mantinham aquecida, não por serem roupas quentes, mas sim pelo calor do corpo de David.

--- Você está bem sr. Carrow? – perguntou-me o tenente aparecendo de surpresa e eu limpei as lágrimas de meus olhos rapidamente.

--- E-estou sim. Podemos ir – falei passando por ele e entrando no carro, assim, indo de carona pra casa.

Where The Lonely Ones Roam – Digital Daggers

Passaram dias, semanas, horas e horas e eu aqui, sem tirá-lo da cabeça. Por sorte, minha família me recebeu feliz e sem tantos sermões como os que eu recebo normalmente quando faço algo de errado. O paradeiro de Peter ainda é desconhecido, tanto pra mim, meus pais ou pros pais dele.

Minha prima, Beatrice – vulgo Bea - vendo meu estado de depressão veio passar alguns dias conosco pra tentar me reanimar. Mas festas, saídas de madrugada e videogame não vão me fazer esquecê-lo.

Seus toques calmos, suas palavras, sua voz, seu estilo rebelde, suas roupas, seus pãezinhos, nossa noite... Cada mínimo detalhe está gritante em minha mente, quase dá pra ouvi-los se prestar bem atenção em meus olhos.

Estou em um estado lastimável, tanto no físico e interior. Cabelos sem vida pela falta de cuidado, unhas roídas e com esmalte borrado, lábios secos e olheiras profundas. Não contei pra ninguém que estava de “rolo” com o outro resgatado, e pra minha sorte ninguém pareceu notar. Estavam todos comentando sobre o ultimo jogo dos Knicks e porque meu pai fora promovido no mercado de ações, conseguindo receber mais milhões de sua empresa.

Também estou mais magra. Minha dieta? Pãezinhos, refrigerante, sol e vodka. Sei que pareço masoquista em ficar sempre provando de tudo que possa me lembrar do meu dia, mas eu definitivamente não consigo e, sinceramente? Eu não quero esquecer.

Se não tivesse passado uma semana, eu juro que teria roubado um carro e ido pra Nova Jersey, apenas eu, o rádio e a estrada em minha frente.

Essa era uma das coisas que mais gostava de lembrar sobre David: ele me transmitia segurança. Liberdade estava escrito em sua testa. Ele poderia viajar pelo mundo se quisesse, e vem apenas algumas vezes em casa pra ver os pais e pegar mais grana.

Eu viajaria pelo mundo com ele, com toda certeza. Ligaria pra casa de vez em quando, mandando notícias.

Meu novo sonho era:

Ter David comigo+ Meus pais aceitarem David+ Alugarmos um apartamento +comprar um cachorro + ouvir David dizer que me ama+ o que o futuro nos reservar.

Minha sanidade mental continua a mínima possível. Fico fazendo planos e mais planos, ilusões e mais ilusões a cada minuto, cada hora, cada segundo. E o desejo de vê-lo aumenta, a saudade me sufoca e a ansiedade me corrói. Me sinto um zumbi ambulante.

Tudo o que eu queria era voltar no tempo, naquela noite em que dormi em seus braços, e descobrir que tudo isso não passa de um pesadelo.

A única coisa que me faz sorrir agora é quando Bea me leva ao shopping pra comprar roupas. Não que eu tenha virado uma patricinha, mas porque compro a cor favorita dele, que também tornou-se minha: Vermelho. Comprei peças e mais peças de roupas em todos os tons de vermelho, de vinho até rosa. 

O papel que David deixara cair na delegacia era o poema que ele tinha escrito quando o encontrei, mas no final tinha algo acrescentado que eu não conseguia ler, pois estava molhado por algo. Talvez pela chuva ou pelo calor de seu bolso.

Aproveitando o poema mais incrível que já li em toda vida, passei a escrever também. Mas não sobre ele ser cafajeste ou sobre me automutilar, como a maioria dessas adolescentes fazem. Eu escrevo sobre as melhores coisas que pude ter o prazer de saber sobre ele. Quem diria que eu escreveria algo em minha vida que não fossem memórias guardadas para provas de livros escolares ou desenhos no fundo do caderno?

Se meu íntimo não quer esquecê-lo, eu terei que aturá-lo de uma forma menos cortante. Eu pensaria no melhor dele, assim me sentiria menos decepcionada comigo mesma por querer tanto algo que nunca irá me pertencer.

Meus pais continuam na grande mesa de jantar com minha avó, prima, primo e até Maria, a empregada. Meu pai sorri enquanto fuma mais um de seus charutos e fala sobre seu antigo sonho de “dominar o mundo” com intelectualidade e poder. Minha mãe ri enquanto se gaba de ter o marido dos sonhos. Bea fica apenas fofocando com Riley, meu primo. Ela vem demonstrando sinais de afetos excessivos e discretos, mas pra ele parece que ainda não caiu a fixa. Como sei disso? Porque quando ficamos calados por muito tempo passamos a apenas observar o que nos cerca.

Minha vó apenas come em silêncio, assim como eu. Ambas não concordamos com a obsessão de meu pai por poder em negócios, mas não era por isso que estávamos quietas. Eu devorava pãezinhos e ela me observava com suas grandes esmeraldas verdes, tentando decifrar o que se passa em meu torto e iludido coração, como sempre fez.

---... e as ações simplesmente subiram! E o que significa? Mais renda pra nossa família! – papai falava gesticulando ignorando a presença de comida na mesa.

--- Eu sabia que meu marido era um vencedor! – mamãe gabava-se abraçando papai.

--- Você quer ser médico? Que incrível! Você merece coisas boas em sua vida, Ry – Bea sorria tanto que achei que sua boca se partiria a qualquer momento. Riley comia e assentia, me olhando como se pedisse socorro. Atendendo ao seu pedido – lê-se obrigada a atender seu pedido -, cansada de olhar pra cara de cachorro pidão que ele tinha, afastei um pouco a cadeira da mesa e, do meu celular, liguei pro telefone de casa.

--- Eu atendo! – Riley praticamente gritou e sumiu pelos corredores. Bea suspirou apaixonada e pegou a colher que Riley tomava sopa, lambendo-a.

--- Eca – falei fazendo uma careta.

O resto do jantar se passou monótono. Saí da mesa depois de todos e resolvi dar uma ajuda pra Maria na louça. Depois, sentei-me na escada que levava pro jardim e peguei o poema de David, colocando-o no chão enquanto abria meu caderninho, que se tornou meu maior aliado nessa última semana.

Olhei pro lado de fora e vi um cadillac, muito parecido com o de David. Deve ser dos Coleman que trocam de carro como alguém troca de roupa. Isso não me incomoda, mas deixa meu pai extremamente furioso.

Fitando o carro com película preta, lembrei-me das feições de David e comecei a rabisca-las no papel. Como não sou nenhum Pablo Picasso, saiu um desastre. Se algum ser humano tem essa cara, que Deus tenha piedade da alma dele!

--- Querida – vovó chegou me pegando de surpresa. Imediatamente sentei em cima do caderninho.

--- O-o-oi, vó! – falei fingindo entusiasmo.

--- Olha, seu pai e sua mãe podem estar cegos por causa dessa promoção inútil da empresa, e por isso pararam de observar você – disse puxando uma cadeira pra si e sentando nela – mas eu não.

Mordi o lábio inferior. E agora? Conto ou não conto?

--- Sei que não quer falar sobre isso, e respeito sua vontade. Só saia hoje a noite com Bea e Ry, eu garanto que todos os seus problemas se esvairão pelo vento. Ah, e leve um casaco, deu na TV que iria chover – sorriu olhando pra algo próximo a minha perna, mas não me incomodei em olhar o que era. Fitei meu joelho

Como eu queria que você estivesse certa vovó, e como eu queria sair e encontra-lo por acaso aqui em minha casa, me esperando de braços abertos.

--- Vó, eu... – falei quando levantei a cabeça e ela já não estava mais lá. Ri fraco, minha vó tem essa mania doida de dar conselhos e desaparecer. Gosto disso nela.

Peguei o papel do poema de David que estava próximo a minha perna e entrei porta adentro.

As horas passaram rapidamente e eu me arrumei nas roupas dele. Quero acreditar que um milagre vá acontecer, mesmo sabendo que estou me automutilando sentimentalmente.

Quando passei pela sala vovó falava ao telefone e sorriu piscando pra mim. Uni as sobrancelhas e sorri de volta pra ela, estranhando. Ela está aprontando alguma.

Encontrei-me com Bea e Ry e seguimos caminho até uma churrascaria. Lá eles comeram, encheram a cara com bebidas que nem em anos eu decoraria os nomes e os outros amigos deles pareceram se divertir. Com a exceção de uma garota loira de cabelos ondulados chamada Katherine, que me olhava torto. Talvez ela também gostasse de Ry, e o fato de ele estar sempre ao meu lado puxando assunto poderia estar a incomodando. Não me importei, sempre que ela puxava-o de mim me observando com cara de cachorro eu simplesmente ignorava. Ele voltava como um cachorrinho pra meu lado novamente.

Alguns dos amigos homens de Bea me passaram cantadas esquisitas, e alguns eram até bonitinhos, mas nenhum deles me proporcionou o turbilhão de sensações maravilhosas que sentia com apenas um roçar do meu braço com o de David.

Em minha volta, eu via apenas corpos, os rostos eram todos desfocados e as vozes não pronunciavam palavras legíveis pra meu cérebro processar. Credo, devo estar com algum transtorno obsessivo!

Depois da bebedeira, enfim fomos pra casa. Bea gargalhava sem parar e Ry dormia nos braços dela, enquanto meu rosto estava colado na janela do táxi.

--- Quarenta e dois dólares, senhora – o taxista disse e Bea arregalou os olhos pra ele sorrindo, uma expressão assustadora.

Depois caiu na gargalhada e murmurou algo entre os risos, fazendo o homem me olhar confuso. Dei de ombros, não tenho cara de dicionário de bêbados.

--- O que disse? – ele perguntou.

--- Vasifud ererehehehe – disse mas no final se transformou em uma gargalhada contagiante. Eu riria disso se não estivesse tão cansada.

--- Senhora, por... – ele começou, mas Bea colocou, ou melhor, bateu a mão no ombro dele, fazendo o pobre senhor sobressaltar assustado.

--- Eu disse vásifúuuu dehehehehe – disse e caiu na gargalhada novamente. Arregalei os olhos e o senhor me olhou na esperança de eu ter entendido. Infelizmente eu entendi, e antes que ela repetisse de uma forma que ele entendesse e também porque ele tem cara de policial, o que ferraria com tudo.

Paguei a ele e arranquei Ry e Bea dele e os empurrei o máximo que pude, mas eles acabaram caindo na grama, o que me deu mais trabalho.

--- Puta que pariu, não preferem desmaiar na cama? – falei irritada puxando os dois pelos pés.

--- Eu estou na cama! – Bea disse e me chutou com o pé que eu segurava, me fazendo cambalear pra trás e cair sentada no chão, levando comigo o tênis de Riley.

Levantei e ela fazia um anjinho na grama. Bufei.

A Thousand Years – Christina Perri

--- Vermelho tornou-se minha cor favorita. Pelo rubor tímido que é esboçado em seu rosto, seus lábios carnudos, seu cheiro de rosas silvestres e seus olhos ardentes em fogo de paixão – ouvi e estaquei, senti meu corpo todo congelar e não consegui mais dar um passo ou respirar.

--- Seja minha essa noite, morceguinha – ouvi e foi o suficiente pra conseguir retomar a respiração e virar-me lentamente, para ver quem eu mais desejei nessa última semana.

Ele estava lindo; usava uma jaqueta de couro preta, uma blusa verde escura por dentro, uma calça jeans escura bem surrada, um tênis vermelho e seu sorriso dessa vez não era sacana, mas sim sincero e parecia inofensivo, parece... Saudade?

Quando ele abriu os braços, meu coração disparou tanto que acho que podia ver minha pele toda acompanhar sua batida. Sorrindo e já com lágrimas em meus olhos, corri que nem uma louca pra ele, que riu e me carregou e me girou no ar. A sensação de sentir novamente seu cheiro e vê-lo em pessoa me deixavam tonta. Aquilo era real? Não importa! Eu só quero aproveitar esse momento!

--- David! – falei num fio de voz com o rosto em seu pescoço, ofegando como se estivesse sem respirar a um dia.

--- Morceguinha – ele riu e me deu um beijo nos cabelos. Me afastei de seus braços e colei nossos lábios, como a tempos desejava fazer.

O beijo começou como um verdadeiro ‘desentupidor de pia’ da minha parte, e eu estava me importando com isso? Claro que não! Lágrimas caíram de meus olhos, tamanha era a emoção que sentira ali. Logo as mãos de David agarraram-me com força pela cintura me colando ainda mais a ele, e eu enlacei meus braços em seu pescoço. Estávamos tão próximos que senti que viraríamos um só a qualquer momento.

A Thousand Years – Christina Perri (tradução)

O dia em que nos conhecemos

Congelado, segurei minha respiração

Desde o inicio

Sabia que encontrei um lar pro meu coração

Bate rápido, cores e promessas

Como ser corajoso?

Como posso amar quando estou com medo de cair?

Mas olhando você sozinho

Todas as minhas dúvidas, subitamente se foram de alguma maneira

Um passo mais perto

Eu morri todos os dias esperando por você

Querido, não tenha medo

Eu te amei por mil anos

Eu vou te amar por mais mil

O tempo para

Beleza em tudo o que ela é

Eu vou ser corajoso

Não deixarei nada levar pra longe

O que esta na minha frente

Cada respiração

Todas as horas vieram para isso

Um passo mais perto

Eu morri todos os dias esperando por você

Querido, não tenha medo

Eu te amei por mil anos

Eu vou te amar por mais mil

E o tempo todo eu acreditei que eu iria encontrá-lo

Tempo trouxe seu coração para mim

Eu te amei por mil anos

Eu vou te amar por mais mil

Eu vou te amar por mais mil

Um passo mais perto

Eu morri todos os dias esperando por você

Querido, não tenha medo

Eu te amei por mil anos

Eu vou te amar por mais mil

E o tempo todo eu acreditei que eu iria encontrá-lo

Tempo trouxe seu coração para mim

Eu te amei por mil anos

Eu vou te amar por mais mil

Tradução: http://www.letras.mus.br

Paramos o beijo, ofegantes com selinhos lentos, que me faziam estremecer e me sentir nas nuvens. Falando em nuvens, senti gotículas de chuva começarem a molhar meu cabelo. Não tiramos por um segundo sequer os olhos um do outro. Não haviam palavras para serem ditas, não haviam gestos a serem feitos, não havia plateia nos observando. Éramos só eu e ele, ali, dizendo através de nossos olhares, o quanto sentimos falta um do outro.

O abracei com força e ele retribuiu, e senti seu corpo estremecer e o ouvi fungar. Me afastei e olhei em seus olhos. Ele estava chorando? Eu quero morrer!

--- Senti sua falta – falei sem pensar. À aquela altura eu não podia pensar em mais nada.

--- Eu também – disse e rimos, dando um selinho demorado para logo nos abraçarmos novamente. Tanto eu quanto ele sentimos falta dos corpos um do outro. Eu sentia, ele, eu ainda não descobri. Pensando nisso, perguntei:

--- Porque não me procurou? – falei com a voz alegre.

--- É uma longa história – riu e eu olhei em seus olhos – e eu irei te contar tudo – disse e levantou a cabeça, sinalizando um ‘joinha’. Uni as sobrancelhas e quando olhei pra trás, quase caí morta.

Lá estava a vovó, sorrindo e acenando da janela.

--- O que. Está. Acontecendo. Aqui? – falei e ele riu.

Quando notamos que chovia, entramos em seu carro e eu segurei sua mão o tempo todo. Tinha medo de soltá-la e acordar, descobrindo que aquilo não passava de um sonho ou que eu estava ficando louca, tendo a alucinação mais maluca da minha vida.

Olhei pra David determinada e ele suspirou, começando a explicar.

--- No dia em que te deixei eu não me despedi – ele fez uma breve pausa – eu nunca fui bom em despedidas. E quando eu entrei no carro andei alguns segundos e percebi que te devia pelo menos um ‘adeus’, porque, acredite se quiser, naquela noite em que nós dois “vacilamos” – ele riu – eu nunca senti nada parecido do que eu senti com você. Então eu voltei, e segui você na viatura do policial. E quando descobri onde era sua casa, te espionei por vários dias daqui dessa calçada – riu olhando pro volante, provavelmente lembrando – coloquei até películas pretas pra ninguém me reconhecer. Era difícil ver você, ficava sempre em casa, mas eu não perdi a esperança. Fiquei aqui dias, horas, noites e até dias aqui. Tentei uma vez escalar sua janela porque estava querendo te ver, já que você nunca saia de casa e acabei na janela errada. A da sua vó – ele alisou minha mão com o polegar, sem tirá-la da minha enquanto continuava fitando o volante – e eu expliquei tudo pra ela. A princípio ela não acreditou em mim, então eu lembrei que esqueci o poema na sua mão e ela o leu e acreditou em mim. Ela disse que me ajudaria, e então bolamos de eu ir em sua casa amanhã, mas, como eu nunca fui paciente, decidi que queria vê-la agora mesmo. Fiquei nervoso, fiquei com medo da cara que você ia fazer quando em visse. Mas eu estava desesperado. Você era como uma droga pra mim, eu não conseguia ficar longe. Precisava dar uma tragada forte, em vez de ficar me conformando em apenas vê-la. Eu sei que parece meio egoísta, mas eu queria que você me desculpasse por tudo que fiz. Te fiz sofrer, fui idiota com você e não consigo me perdoar por isso. Vim aqui só pra te pedir desculpas e só sairei se você me mandar embora – disse pegando minhas duas mãos. Eu ainda estava processando a história.

--- E porque você fez isso tudo? – falei e ele empalideceu – o que você sente por mim?

--- Eu... eu... – ele olhava pros lados, atônito e piscava várias vezes, procurando uma palavra que definisse o que sentia.

--- Eu te amo – falou e minha respiração parou e pareceu ser sugada pra baixo, e logo eu senti o ar saindo como tudo pra cima, assim, iluminando todo meu corpo. Um sorriso radiante e alegre se formou em meu rosto, e lágrimas caíram imediatamente. Senti a adrenalina dar vida a toda parte de meu corpo, como se estivesse levando um choque de parada cardíaca.

--- Eu também te amo, e é claro que eu te perdoo – falei e ele sorriu, mas tratei de tampar sua boca com a minha, subindo em seu colo e beijando-o intensamente.

Enquanto apreciávamos a luta desesperada de nossas bocas uma contra a outra, eu estava feliz por saber que nada tinha mudado entre nós. O fogo que ele acendia em mim continuava, cada vez mais forte. E nossa separação não afetara meus sentimentos, nem um pouco.

--- Eu – falei entre o beijo -    quero... Perguntar uma... coisa – falei enquanto parava o beijo com alguns selinhos, quase caindo pra trás, já que ele não queria afastar a boca da minha.

--- Pode – disse entre o beijo e dessa vez fui eu a ir pra cima dele – falar – disse e quando eu ia falar ele sugou minha língua, me fazendo perder a linha de raciocínio, e esqueci-me de tudo à minha volta, entregando-me totalmente ao beijo.

(...) Alguns minutos depois...

Parei de beijá-lo suspirando alto, assim como ele. Colamos nossas testas e olhamos pra baixo. Ele pegou minha mão e a colocou em seu coração, e pude sentir as batidas aceleradas como as minhas. Parecem que foram ensaiadas pra serem tão idênticas. Sorri pra ele me roubou um beijo, e quando ia se inclinar pra me dar outro beijo sugador de ar, coloquei a mão em seu peito.

--- Me deixa respirar um minuto! – exigi e ele riu, ainda ofegante.

--- Tudo bem, eu vou conversar, mas só um pouquinho – falou me colocando de lado pra porta em seu colo. Deitei a cabeça no vidro e passei uma mão em sua nuca. Sua outra mão ficou em cima de minha perna enquanto a outra ficava em minhas costas.

--- Qual era sua dúvida mesmo? – perguntou agora menos ofegante.

--- Sei lá, você me deixou desnorteada – fiz um biquinho e ele o mordeu e o beijou. Ri com isso.

--- Ah, lembrei! – falei e ele me olhou – o papel do poema que você escreveu tinha alguma coisa a mais, mas estava molhado, o que era? – perguntei e ele ruborizou, olhando pra mão em minhas pernas.

--- Fala! – falei não contendo a curiosidade e ele me sorriu.

--- Eu já falei – deduzi que era o “Eu te amo”, mas pra provocar, insisti:

--- O que? Eu acho que não ouvi – falei e ele revirou os olhos.

--- Facilita as coisas pra mim, vai – disse e eu ri.

--- É que é tão bom saber que você me ama que eu quero ouvir isso o tempo todo – falei manhosa dando de ombros e ele baixou a cabeça. Depois a levantou com um sorriso e uma sobrancelha levemente arqueada. Sorri abertamente.

--- Eu te amo, eu te amo, eu te amo – disse me agarrou, voltando a me beijar – te amo, te amo, te am.%&$*¨%*$¨&(&&*( - suas palavras ficaram desconexas enquanto ele aprofundava o beijo, puxando-me para si denovo.

(...)

Alguns segundos depois nos afastamos e ele desenhava círculos em minha perna, enquanto eu estava com a cabeça deitada em seu pescoço.

--- E o que fazemos agora? – perguntei não aguentando mais o silêncio. Eu queria ouvir sua voz, agora, mais tarde, pra sempre!

--- Você manda, chefia – disse e eu me ergui, pegando um pãozinho no fundo do carro e deitei novamente em seu colo. Segurei-o na boca e David mordeu um pedaço, tirando-o pra ele. Ri e mastiguei o salgado.

--- Você disse que queria conhecer meu quarto – sorri sacana e ele assentiu – então, vamos conhecer meu quarto – falei saindo de seu colo e indo pro banco do passageiro novamente e ele segurou meu braço.

--- Está chovendo canivete aí fora. Não quero que adoeça – ele pareceu falar sério. Suspirei apaixonada e relaxei no banco. Ele voltou a olhar pro volante e eu fiz um biquinho olhando pro teto.

Logo percorri os olhos pelo carro e achei uma grande capa de plástico preta. Sorri maliciosa e ele me olhou com uma sobrancelha erguida.

(...)

--- Não acredito que estou fazendo isso! – falou irritado debaixo da capa abrindo a porta para mim.

--- Vamos logo! – falei saindo pela porta e a batendo. Segurei a ponta da capa com uma mão e ele me abraçou com um braço enquanto segurava a ponta com o outro.

--- Cuidado com a grama – ele alertou e eu dei dois chutes no ar, tirando os saltos, mas quase escorreguei. Ele me segurou e parou.

--- Pula nas minhas costas – falou e eu o obedeci. Ele começou a andar mais rápido e paramos na varanda da minha casa, onde tinha teto e batiam poucos chuviscos. Nos sacudimos como dois pintos molhados e me preocupei.

--- O que foi? – ele falou tirando sua jaqueta.

--- Eu vou ter que te apresentar pros meus pais agora – falei mordendo o canto do lábio inferior e ele engoliu em seco.

--- Fudeu – falou e eu assenti, passando um braço por sua cintura.

--- Não... tem a entrada nos jardins, vamos por lá – disse e eu arregalei os olhos, o olhando surpresa. Ele parou de ofegar e me sorriu sacana.

--- Acha que não conheço a casa da minha namorada? – disse e eu sorri mordendo o lábio.

--- E quem disse que sou sua namorada? – falei zombeteira e ele riu, pegando minha mão e a erguendo na altura de seu rosto.

--- Nicole Carrow, aceita ser minha namorada? – falou e meu coração disparou. Não pensei duas vezes, como dizer não pra ele?

--- Claro que quero! – falei e me joguei em cima dele, beijando-o. As sensações que mais amo sentir vieram de imediato: Arrepios constantes na pele, pernas bambas, pelos eriçados e vida própria nas mãos.

--- Continuamos quando entrarmos – disse parando o beijo pegando meu rosto em mãos, dando um beijo em minha testa e eu assenti, enlaçando meus dedos nos dele. De onde arranjei coragem pra fazer isso? Minhas mãos ficaram dormentes ao toque.

Preparamos a capa e corremos abraçados pelo jardim.

--- Cuidado! – falei quando ele quase escorregava pela grama. Rimos e continuamos arrodeando a casa gigante. Nunca parei pra pensar no tamanho dela, ela é enorme!

--- Olha pra frente! – ele falou e quando fui olhar tropecei no maldito regador, me fazendo cair e ele por cima de mim.

--- Puta merda, não tinha outro – falei olhando pro lado e batendo no maldito alarme tentando  arrancá-lo – lugar pra... ficar não... caralho! – bati tanto que ele começou a apitar e jorrar água pra todo lado.

--- EITA PORRA – ele falou e me olhou. Merda!

--- Quem está aí fora? – ouvi a voz de meu pai – eu tenho um rifle! – disse e eu ouvi o gatilho sendo acionado. David arregalou os olhos e eu uni as sobrancelhas, sorrindo confiante, mas o medo estava estampado em meus olhos. Merda dupla!

--- Fu

--- Deu – completei – Deus, me manda um milagre, uma salvação, qualquer coisa! – pedi fechando os olhos os apertando.

--- AAH SOCORRO! TO MORRENDO! – ouvi a voz de minha vó e logo um grito desesperado de meu pai. Sorrimos e agradeci mentalmente pelo sacrifício.

Tirei um pouco a capa e olhei ela no colo de meu pai, de olhos fechados e gemendo de dor. Ela fez um sinal com as mãos e eu entendi,  puxando a gola da jaqueta de David pra que ele olhasse. Ele assentiu e, rindo, me puxou consigo.

Com muito esforço, conseguimos entrar pela varanda e quando subimos, abandonamos a capa na grama e quando eu o olhei ele me beijou. Abri a porta atrás de mim e entrei, sem parar de beijá-lo. Ouvi um barulho de xícaras e abruptamente empurrei David porta afora, fechando-a atrás de mim. Merda tripla!

--- Prima, você por aqui – disse Bea tonta pela cachaça.

--- Bea, o que foi? – perguntei preocupada com sua cara inchada e um de seus olhos estava semiaberto.

--- AH, to zica! To muito doida! Acredita que eu vi gnomos? Uuh, cara! – falou tonta e gargalhou. Andei pra fora da cozinha e não encontrei ninguém na sala e nem um som vindo das escadas. Voltei despreocupada pra cozinha e a louca ainda estava lá, enchendo a cara com um dos licores caríssimos de meu pai. Abri a porta pra David e ele entrou, ao ver Bea paralisou e eu sinalizei um “tá tudo bem” com as mãos e ele veio andando atrás de mim, me dando a mão.

--- Wow cara! – Bea disse batendo a xícara com tudo na mesa de vidro, arregalando os olhos – eu to realmente doidona. Pega uma aspirina pra mim e levem o gato pro veterinário. Temos um gato?

Levei David pelas escadas e subimos até o segundo andar. Entramos em meu quarto e ele se jogou na cama. Ver aquilo me deixou embriagada. Só a visão me deixava louca!

--- Melhor tomarmos um banho ou vamos nos resfriar – falei preocupada indo até o armário pra pegar algumas toalhas. Ele sorriu sacana e eu fiz uma careta pra ele.

--- Hum, anda escrevendo é? – disse e arregalei os olhos, deixando as toalhas caírem. Virei pra trás e lá estava ele, indo pegar meu caderninho.

--- Não! – falei e pulei na cama ao seu lado. Ele segurou-me com um braço e ergueu o caderno para o alto com o outro.

--- Ah deixa eu ler, eu deixei você ler os meus! – falou zombeteiro tentando me afastar.

--- Não, é sério, me dá! – falei e pulei em cima dele, o fazendo gritar um “AH” e cair na gargalhada, jogando o caderno longe. Tentei me levantar pra ir pegá-lo e escondê-lo em um lugar seguro, mas fui puxada pelos braços fortes do meu namorado e caí de boca nele, deixando-o me beijar.

Foda-se o caderno. Nossa batalha de línguas era mais interessante. Esse cara é insaciável!

--- Parecemos dois loucos viciados – falei me separando dele colocando uma mão em sua boca e levantando.

--- E não somos? Você escreveu um livro pra mim e eu fico te espionando – falou e eu caí na gargalhada. Peguei uma toalha e joguei na cara dele, enquanto ele se sentava na cama.

--- Você toma banho primeiro. Tenho umas roupas suas – falei ruborizada colocando uma mecha de cabelo pra trás e ele sorriu sacana.

--- Roubando minhas roupas né, sua tarada...

--- Não! – gritei assustada – você tinha me emprestado, lembra?

--- Pensa que não vi quando você saiu pro jardim da sua casa usando minha blusa? Admita, você é completamente apaixonada por mim – disse se aproximando de mim de cabeça baixa, prontamente pra me beijar.

--- E você é obcecado por mim, seu maluco – falei e o empurrei pelo peito, girando-o e o empurrando pra dentro do banheiro, fechando a porta na cara dele.

Sentei-me na cama e tirei meu casaco.

--- Entra aqui morceguinha, a água tá ótima! – ouvi sua voz e joguei um tênis qualquer na porta dele, o fazendo rir alto. Sorri abobalhada e balancei a cabeça.

Depois que ele saiu, entrei e tomei um banho rápido, pegando a única blusa dele que eu tinha e vestindo-a porque sou muito má e porque a ideia de ver novamente seu peito desnudo me agradava MUITO.

Deitei-me com ele em minha cama e ficamos abraçados por causa do frio e da chuva que batia contra a janela. O sol já estava aparecendo, deixando o quarto azul. Rimos, conversamos, brincamos e namoramos ali, mas infelizmente adormeci quando ele inventou de fazer cafuné em meus cabelos. Adormeci com um sorriso satisfeito e feliz no rosto.

Acordei com batidas incessáveis na porta do quarto.

--- Ah, o que éah? – falei virando-me e colocando o rosto nos braços de David, que dormia tranquilamente.

DAVID!?!

--- Filha, estamos te esperando pro almoço! Já é Meio-dia! – ouvi a voz de meu pai e sobressaltei da cama, assustada.

Corri pro banheiro e tranquei a porta, enfiando-me de baixo do chuveiro. A água fria me fez gritar a princípio, mas quando passei o shampoo ela já estava mais suportável.

Enfiei-me em um jeans preto colado e uma blusa preta soltinha, com um colar prata e um colete preto com minhas novas parceiras, botas de combate. De qualquer forma eu teria que devolver a camisa de David, afinal, não poderia apresenta-lo sem camisa. Ainda mais com pais tão críticos como os meus.

Penteei rápido os cabelos e escovei os dentes. Quando saí do banheiro, puta merda... O que eu faria com David? Não dá pra escondê-lo aqui, Maria chega a qualquer momento!

--- David, acorde – falei sentando ao seu lado e cutucando seu peito – David...

--- Hm.. Morceguinha – ele disse de olhos fechados e eu sorri, dando um selinho em seus lábios. Ele abriu os olhos e me fitou com aquele mar azul.

--- Acorda, namorado. Precisa se arrumar pra encontrar meus pais – falei sorrindo, já não me sentia mais tão preocupada. Com ele é sempre assim, mas eu me preocuparia mais tarde, então teria que me apressar.

--- Ah, deita aqui comigo – disse me abraçando e eu ri quando ele enterrou a cara nos meus cabelos.

--- Não dá, são 12h e estamos atrasados.

--- 12H?!? – ele sobressaltou assustado e voou pro banheiro, batendo a porta. Levantei e enquanto desamassava minhas roupas, a porta se abriu e David veio em minha direção.

--- O que está fazendo? Precisamos... – me calou com um beijo que fez minhas pernas fraquejarem e meus braços ou voz terem força pra falar qualquer coisa que fizesse sentido.

Ele me deu um beijo lento, onde sua lingua explorava minha boca sem pressa e despreocupado. Até com seus beijos mais lentos me sinto como se estivesse amarrada contra seu corpo! 

Quando ele me soltou, abri os olhos, voltando pra realidade.

--- Bom dia, morceguinha – piscou e foi pro banheiro. Mordi o lábio e saí do quarto, descendo as escadas quase tropeçando nos meus próprios pés.

Entrei na cozinha e já fui atacando a cesta de pães, enfiando um de vez goela abaixo enquanto abria a geladeira em busca de um suco ou qualquer coisa que ajudasse a descer.

--- Olá Nic! – ouvi a voz da vovó e fechei a geladeira assustada, mas como eu estava com a cabeça enfiada nela, acabei enfiando o rosto num pudim de leite. Me afastei lentamente e minha vó limpou minha cara com um pano de prato.

--- Vó, para de ficar me assustando! Avisa quando estiver perto! – falei pegando o pano e passando em meu rosto, tirando o resto do pudim.

--- Desculpa, da próxima eu uso um sininho – falou e eu ri – vim avisar que seu pai está de ótimo humor hoje, e que é a oportunidade perfeita pra apresentar David.

--- Eu deixei ele no quarto, não sei o que eu faço – falei e ouvimos o som da campaínha tocando. Meu coração? TATATATATA TUTUTUTUTUM

--- Quem deve ser? – falei sentando-me na pedra do balcão terminando de comer o pão.

--- Ah, uns amigos sócios do seu pai. Devem ter vindo falar de negócios aí com uma tal de Burger King – deu de ombros e eu arregalei os olhos, dando um grito de histeria.

--- AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHH! – gritei e vovó sobressaltou com a mão no peito.

--- Querida? Você está bem? – ouvi meu pai falar de longe e engoli em seco.

--- O que está acontecendo? – uma voz desconhecida me despertou e eu só tive tempo de sinalizar pra vovó se aproximar.

--- É ele, o pai do David é dono da... da... – falei e vovó se tocou, colocando uma mão na testa.

--- Mas que merda, e agora?

--- Vou ter que ver em que esse almoço vai dar. Se fechar negócio, vai ser ótimo pra papai ter a filha unida com um de seus sócios – falei – mas meu pai é impulsivo, se não der...

--- Você vai apresenta-lo de qualquer jeito, oras! – disse cruzando os braços.

--- Mas...

--- Filha, quero que conheça Richard Lerman, dono das redes de Burger King em Chicago – disse aparecendo na cozinha e finalmente me toquei: Era o pai de David!!!

O homem parou em minha frente me estendendo a mão e eu o cumprimentei, ainda meio desnorteada. Eu queria sair correndo dali, mas minhas pernas não respondiam a meus comandos.

--- Nic... Nic.. Nicole Carrow – consegui sorrir e apertei sua mão, balançando-a. O homem achou estranho, mas não protestou.

--- Bom, já que conheceu minha família, acho que podemos almoçar – disse Papai satisfeito e ouvimos a campainha tocar.

--- Eu atendo! – ouvi Bea gritar. Papai e o tal Richard caminharam pra sala de jantar.

--- Pode ir, estou mais tranquila – falei suspirando e vovó me sorriu.

--- Tudo bem, garanto que nada de catastrófico vai acontecer hoje – falou e saiu andando. Andei depois dela e quase tive um mau súbito quando passei pela sala. Parei e olhei de olhos arregalados pro sofá, onde estavam meu pai, Richard, Bea, Ry e... e...

--- Nicole, quero que conheça meu filho, David Lerman – Richard me sorriu animado e minhas suspeitas foram confirmadas. Cara... Era o David, de terno preto justo, um gato...

--- Prazer em te conhecer – ele me sorriu e estendeu sua mão. Engoli em seco e todos em volta de mim caíram na gargalhada, inclusive meu namorado.

--- O que está acontecendo? – falei desnorteada com cara de paisagem.

--- Eu já contei pra seus pais, está tudo certo – David me sorriu e deu um beijo em minha mão.

--- Eu acabei de fechar negócio com o pai dele, esse namoro veio em boa hora – meu pai sorriu e David piscou pra mim. Nesse momento eu entendi que ele trouxe o pai aqui apenas pra tornar as coisas mais fáceis. Sorri pra ele.

--- Vamos comemorar – mamãe disse e gritou por Maria, pedindo o almoço. Papai se dirigiu com mamãe e vovó até a sala de jantar. Na sala ficamos apenas eu, David, Ry e Bea.

Abracei David e ele retribuiu.

--- Esperto você né? Trazer o pai rico é golpe baixo pro meu.

--- Eu, esperto? – riu sacana – imagina, eu sou um moço de família! – falou e eu ri, dando-lhe um selinho.

--- Ah, agora eu entendi! – Bea disse colocando o dedo nos lábios sorrindo – foi você que eu vi ontem, quando estava bebum! Ufa, pensei que estava louca.

E o resto do almoço decorreu tranquilamente. E eu? Estava um poço de simpatia e felicidade!

Tudo aconteceu rápido demais: quando entardeceu, lá estava David conversando com papai, rindo com direito a tapas amigáveis nas costas e conselhos sobre “negócios”. Até o fato de que ele viaja pelos EUA o agradou. Não sei como, mas a vida de David virou um livro aberto pra nós – exceto a parte dos seus lanchinhos – e, por incrível que pareça, todos rimos de suas histórias pelo país e ele acabou virando a atração da tarde.

Fiquei com um aperto no coração quando ele foi embora, mas ele disse que isso faria parte dos planos. Ele me impediu de pular a janela, e eu briguei com ele. Mas tudo bem, sei que poderei ficar com ele mais tarde e não me incomodo com isso.

Com o decorrer do tempo, fugimos de casa pra viajar, ele não perdeu o hábito de ficar pulando de galho em galho, mas eu não o questiono. Sempre gostei de viajar, e respirar novos ares é mágico. Eu estava feliz, David estava triplicando de felicidade e meu pai? Conseguiu fechar negócio com um banqueiro e acabou ficando montado na grana. Eu sei que todos precisamos de um pouco de ambição na vida, mas meu pai é um louco. Porém, não vejo nada de errado se fizer isso honestamente, sem roubar nada de ninguém.

O paradeiro de Peter foi finalmente localizado em um programa de TV Venezuelano. Quem diria que Peter gostava da Kukaratcha?

Quem diria que a felicidade que tocava a campainha e saía correndo decidiria finalmente entrar em minha vida? Cá estou eu, realizando meus sonhos, ao lado de quem amo e com saúde. Está tudo perfeito. Claro que sempre surgirão brigas, desafios e metas a alcançar, mas eu não desisto na queda.

Quanto a Peter e eu, estamos infinitamente apaixonados um pelo outro. Ele não consegue se afastar de mim, assim como eu dele, e minhas sensações maravilhosas com nossa união sendo pública pareceram alcançar o céu.

Cá estamos nós agora: Cadillac, pãezinhos e refrigerantes como combustível na maratona da estrada que me levaria ao meu sonho. Agora que já tinha quase tudo que sempre quis, pouco me importava em conseguir um papel em alguma coisa, mas ele queria insistentemente me ver completamente feliz. Há, como se eu não estivesse agora!

Tudo que eu mais queria aconteceu, bem na ordem que eu queria:

David comigo+ Meus pais aceitarem David+ Alugarmos um apartamento +comprar um cachorro + ouvir David dizer que me ama+ o que o futuro nos reservar.

O que eu quero da minha vida agora?

Ser feliz.

FIM


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Notas finais do capítulo

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