Nem queria tanto assim sair de casa naquele dia. Foi complicado convencer minha mãe de que era apenas um aniversário qualquer de uma amiga qualquer, afinal sempre usei essa desculpa para poder sair à noite. Mas eu não queria tanto ou hoje eu não queira que naquele dia eu quisesse, hoje depois de tanto tempo, de tantas lágrimas, de tanto medo, que passou e foi bom quando passou, pois finalmente pude abrir meus olhos para o mundo, uma explosão de fatos novos de sensações antes nunca experimentadas, não foi pela magia, foi pela realidade.

            Ah, aquele dia. Peguei carona com uma amiga, fomos a uma festa um tanto quanto alternativa, não costumávamos a freqüentar lugares como aquele, mas estava feliz por finalmente ter conseguido escapar. Era uma festa realmente boa, pessoas legais, música de qualidade, bebida a preços acessíveis e duas amigas sozinhas dançando no meio da pista que logo se encheu de gente.

            Outra garota que eu conhecia somente de vista se aproximou de nós dançando de uma maneira singular. Ela parecia que conhecia cada batida da música, seu cabelo preto cortado em chanel totalmente molhado de suor dava a impressão de que ela acabara de sair da chuva, seus olhos permaneciam fechados atrás das lentes do óculos de armação retangular dando um charme próprio, estava completamente concentrada em seus movimentos. Invejei-a. A maneira que ela estava ali ao meu lado me deixava me sentir como uma qualquer, ela era linda, simplesmente linda.

            Percebi que a moça abriu seus olhos saindo de seu transe perfeito e me encarou, de repente ela tomou uma de minhas mãos, estava dançando comigo. Meu coração acelerou naquele momento, não sabia se ela estava querendo me mostrar como se dança ou se estava de zoação comigo, mas correspondi usando de todas minhas habilidades para superá-la na dança, o que era claramente impossível. Conforme os compassos iam passando e a batida ia se alterando, o corpo dela estava se aproximando mais do meu. Sabia o que ela queria e naquele momento eu também queria.

            Não demorou muito e estávamos nos beijando, como o hálito dela era doce. Seus lábios perfeitamente macios se encaixavam nos meus em poliritimia com a música ao fundo, obedecíamos somente a nós mesmas. Nossos braços se entrelaçavam em carinhos mútuos dotados de uma inocência pueril e ao mesmo tempo curiosa. Perguntei-me várias vezes mentalmente o que estava fazendo, mas fiz questão de logo esquecer essa dúvida, não importa, estava bom.

            Não sei quanto tempo ficamos assim, dançando e por vezes nos beijando, nem quantas pessoas pararam para ver ou comentar, parecia que essas coisas sempre acontecem nesse tipo de lugar. O tempo pra mim foi curto. Ouvi gritarem meu nome, pior, ouvi meu pai gritar o meu nome. Perdi completamente a noção do tempo, eram quase duas horas da manhã, sem dúvida ele tinha ligado para alguma outra amiga perguntando onde de fato eu estava já que o combinado era de que eu voltaria à meia-noite como boa cinderela. Foi horrível. Meu pai gritando comigo na frente de todas aquelas pessoas, na frente dela... e eu nem me lembro de seu nome.

            Durante muito tempo fui o fracasso da família, não possuía talento algum para as artes ou para o estudo. Durante muito tempo continuei sendo o fracasso da família, a mim não me interessavam mais namorados, como se um dia isso tivesse feito alguma grande diferença. Fui me aproximando mais das minhas amigas e descobri que esse negócio de homem com homem e mulher com mulher acontece mais do que eu imaginava, a questão era só uma: a compreensão. Como hoje eu sinto repúdio a incompreensão, como dói não ser entendida.

            Tudo o que houve naquela noite foi apenas um começo, um grotesco começo para o palco de minha vida, foi quando passei a perceber que era assim que eu me sempre me senti é assim que eu quero me sentir.