Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 15
Branco




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- Branco.

Nina murmurou pra si mesma depois de ter certeza que estava acordada. Tinha dormido pesadamente pelo que lhe pareceu uma eternidade, um sono sem sonhos ou pesadelo algum.

Em cima, o branco estendia-se sobre a sua cabeça, como um manto infinito.

- Branco – repetiu. Lembrou-se do abraço da pequena mancha branca fundindo-se ao seu corpo dentro do banheiro de casa. Ainda agora podia sentir a cor percorrendo suas veias a cada batida do coração. Tinha a sensação de que se alguém a furasse com uma agulha, sairia tinta cor de neve.

Professores de artes ensinam que o branco é a união de todas as cores do universo. Chamam de cor luz. É a cor que reflete todos os raios luminosos, sem realmente absorver nenhum. Era mais ou menos assim que Nina se sentia.

 Um murmúrio sonolento veio do seu lado. Nina tirou os olhos do teto e viu uma mulher sentada torta na poltrona de visitas que foi arrastada até ficar colada na sua cama. A mulher tinha cabelos claros como mel cortados bem curtinhos, rente ao queixo. Ela dormia meio coberta por um casaco vermelho de tricô, parecendo tensa mesmo que inconsciente. Vermelho. Eva.

- Você acordou! – Anunciou um médico bem humorado que entrava no quarto, balançando uma prancheta nas mãos. Ele usava óculos de leitura e rabo-de-cavalo prendendo os cabelos castanhos bem escovados para trás. – Dormiu tanto que eu já ia chamar um príncipe pra ver se conseguia algum resultado.

- Droga, será que ainda posso fechar os olhos e fingimos que nada aconteceu? – Nina perguntou, forçando seu bom humor. Apesar de conseguir ver Ícaro perfeitamente, ainda era capaz de sentir a cor verde do médico, assim como sentia o borrão vermelho dormir ao seu lado.

- Você não iria gostar de qualquer forma, as únicas opções eram o velho Lúcio da cantina ou o peixe que teremos pro almoço.

Nina lembrava de Lúcio da época em que ainda era uma das crianças abandonadas no hospital, o velho gordo de avental suspeitamente manchado de vermelho e mãos peludas que sempre lhe negava um pedaço maior de pudim porque se ela engordasse mais iriam ter que assá-la para o almoço. Fez uma careta.

- Coloquem uma coroa no peixe, eu o declaro até rei se precisar.

O médico lhe ofereceu um breve sorriso. Apesar de Ícaro ser muito amigável, sempre tentava manter a postura séria. Nina sabia que ele tinha alguma preocupação sobre não ser levado a sério pelo cabelo grande e as tatuagens escondidas pelas abotoaduras do jaleco.

- Você parece ter aprontado bastante nesses últimos dias, Nina.

  Ela não tinha certeza do quanto ele já sabia: o isolamento, as coisas quebradas, o resgate com um machado. Encolheu os ombros.

- Hormônios.

- Não pode ficar me dando essa desculpa o tempo todo. – Ícaro bronqueou e levantou a prancheta para acertar a garota na testa como sempre fazia. Nina fechou os olhos, esperando a pancada que não veio. Abriu os olhos novamente e o médico lhe encarava, quase surpreso.

- É verdade, então. Você realmente vê, não é?

Ícaro não esperou que respondesse, já tirara do bolso do jaleco uma lanterna pequena e apontava diretamente para as pupilas da garota, fazendo arder uma enorme chama amarela.

- Mais ou menos – Ela disse, sentindo a pele do rosto ser puxada pra todos os lados pelos dedos gelados de Ícaro. – Ainda vejo borrões.

- Um colírio deve resolver. Vou pedir a uma enfermeira que traga.

- Não. Borrões de cores. – Explicou, meio constrangida. A última vez que confessou isso a alguém foi a um psicólogo e ele disse que aquilo era impossível e que se tratava apenas das sensações que ela captava e que um cego nunca seria capaz de distinguir dois tons de preto. Um super babaca. - Era assim que eu via as pessoas quando estava cega, com borrões. Todos tinham uma cor diferente e passavam por mim, saindo de um fundo preto. Como se meus olhos fossem feitos de aquarela. Você é verde. Como seus olhos – acrescentou, quase sem perceber, vendo os olhos brilhantes como esmeraldas do médico analisando a sua íris.

 Ícaro recuou, de sobrancelhas levantadas, impressionado. Guardou a lanterna no bolso e escreveu qualquer coisa na prancheta do hospital.

- Isso é fascinante, Nina – ele ajeitou os óculos no rosto. – Eu gostaria de conversar mais com você sobre isso. Vou dar uma olhada nos seus arquivos e marcamos uma consulta, pode ser?

Nina hesitou.

- Eu meio que roubei meu arquivo daqui – confessou, sentindo suas bochechas arderem. O dia em que entrou no hospital com Alex na missão Resgatar o Passado da Coala Teimosa parecia tão distante que poderia ter acontecido em outra vida. – M-mas vou trazer de volta, prometo.

            Ícaro suspirou pesadamente, em tom de reprovação.

- Eu já devia esperar. Você não se comporta de jeito nenhum. Passe na minha sala de qualquer forma, vou procurar seu registro nos computadores e gostaria de fazer mais perguntas para algumas anotações.

- Entendo que tenha sentimentos demais pra conseguir ficar longe de mim, doutor, mas seria melhor mantermos nossa relação médico-paciente. Não é você, sou eu, venho passado por uma fase difícil, preciso de um tempo sozinha, me dedicar à minha família.

- Pare de dizer bobagens, se alguma enfermeira passa por aqui e escuta isso eu fico encrencado. – Ícaro bronqueou e bateu com a prancheta na testa da garota. – E não me dispense fácil assim, eu sou um ótimo partido.

  Um gemido baixinho e sonolento veio da poltrona ao lado, chamando a atenção dos dois que sorriam com a brincadeira.  Eva despertou devagar e arregalou os olhos castanhos quando encontrou os de Nina, ao mesmo tempo surpresa e aliviada. Ícaro fingiu olhar sua prancheta rapidamente e disse, de forma discreta:

- Bem, preciso ir, tenho uma colonoscopia muito importante daqui a dez minutos. Vou pedir que tragam um café para você, Eva.

O médico saiu da sala, deixando mãe e filha sozinhas na imensidão branca do quarto. Apesar de estar feliz por finalmente ter a mãe por perto Nina sentiu todo o bom humor da conversa com Ícaro esvaziar o seu corpo, deixando-a cheia de medo e vergonha.

- Bom dia, mãe – Se apressou a cumprimentar. De alguma forma ainda era capaz de sentir a cor vermelha que ela tinha, cheia de energia e carinho.

- Nina – Eva passou a mão sobre a sua, cuidadosa para não tocar nos fios de soro que furavam caminho para as veias. Sorriu carinhosa. – Como se sente, meu anjo?

- Meio branca – A mãe franziu levemente a testa e ela achou melhor consertar. – Estou bem, mãe.

     Um silêncio pesado caiu sobre as duas. Nina tinha mil coisas que precisava dizer, todas rodando pela sua cabeça como mosquinhas perturbadoras. Podia ler no rosto da mãe um cansaço e tensão enormes e imaginou por quanto tempo teria desmaiado e se ela por acaso saiu alguma vez do seu lado. Pensou em como estaria o apartamento. E como estavam Daniela, e Cícero. Oh, não, Cícero estava morto. E eu nem fui ao enterro dele, lembrou com certo amargor. Estava ocupada tendo um surto psicótico.

- Como estão o vovô e a vovó? – perguntou por fim.

Eva não largou a sua mão nem pareceu relaxar com a pergunta distrativa.

- A sinusite passou e obriguei mamãe a tomar alguns remédios pra aliviar as dores do reumatismo – suspirou. – Chamei-os para vir morar no Rio comigo, mas conseguem ser mais teimosos que você. Contratei uma enfermeira para tomar conta deles e me deixar informada se algo acontecer. Eles acham que ela é só uma vizinha boazinha que é mandona demais para arrumar marido. Vão querer me bater se descobrirem que vem de um hospital.

       Nina sabia, pelas histórias que sua mãe contava, que os avós apesar de serem adoráveis e inteligentes, sempre odiaram hospitais, remédios e tudo o que parecesse artificial demais. Por isso moravam em uma casinha afastada dos barulhos das invenções do homem e não assistiam TV. Imaginou como deviam se parecer e falar e quais seus costumes. Nunca tinha conhecido seus avós de assinatura. Por alguns segundos ficou triste por Eva não ter a chamado para ir com ela. Nada daquilo teria acontecido se Nina tivesse ido com ela. Nada de ruim teria acontecido se ela não tivesse ficado sozinha.

- Sinto muito pelo que eu fiz com a casa – falou de repente.

Eva deu tapinhas na sua mão e se deixou encostar as costas na poltrona.

- Eu estava louca pra redecorar aquele lugar, mesmo. O que você tinha na cabeça quando me deixou comprar um ventilador verde? Um roxo vai com certeza ficar muito melhor.

As duas riram juntas, algo que soou familiar e saudável dentro do quarto do hospital. Nina sabia perfeitamente que a mãe só não queria deixa-la culpada e aceitou o disfarce, feliz.

- Você consegue me ver, não consegue? – Eva perguntou, por fim.

Nina concordou com a cabeça. Já tinha se acostumado àquele tipo de pergunta.

- Quer me contar o que aconteceu enquanto eu estive fora? – Eva assumiu o seu tom preocupado e materno.

    Nina contou tudo até onde era capaz de se lembrar. O encontro com Alex no ônibus, a agonia de ser capaz de ver e então ter de voltar à escuridão, o ataque cardíaco do porteiro, o monstro da vizinha, a delegacia, a loucura. Achou melhor não falar sobre as pessoas sem rosto, sobre a sua versão criança chorando no banheiro ou sobre o demônio de mil olhos que queria lhe devorar. Quando terminou, estava suando.

 Eva a encarava com os olhos marejados, sem fôlego, o que Nina não estranhou. A história das suas últimas semanas parecia uma montanha-russa de desgraças e alucinações.

- Você... você o viu? – A sua mãe deixou escapar em um sussurro que ela mal conseguiu entender.

Eva pareceu se dar conta das palavras que saíam da sua boca ou do olhar interrogativo da filha, pois remexeu-se na cadeira e pareceu se livrar do que fosse que estivesse lhe assombrando.

- Oh, meu anjo – fungou. Apertou a mão da filha entre as suas e lhes deu um beijo molhado. – Deve ter sido horrível para você passar por tanto. Por que não me ligou?

- Eu não queria te incomodar – Nina disse, sincera.

- Você nunca me incomoda, meu anjo. Já te disse tantas vezes, eu estou aqui pra tudo que você precisar, se você só tivesse me chamado... – Eva tentou dizer, mas Nina lhe interrompeu.

- Então por que não me levou com você? – Perguntou, magoada. – Por que você me esconde da sua família? Por que nunca contou pros seus pais que adotou uma bastarda?

        Eva levou a mão à boca, como se as palavras lhe tivessem atingido o rosto com tapas. Pareceu tão surpresa e sentida que Nina imediatamente desejou poder engolir de volta o que disse.

- Nina... Por favor, meu anjo, eu não quero que você duvide nunca do quanto te amo e de que faria qualquer coisa por você – disse, os olhos marejados fixos na garota de forma tão sentida que Nina acreditou. – Você foi uma verdadeira benção na minha vida e mal tenho coragem de pensar onde eu estaria se não te encontrasse nesse hospital, há tanto tempo atrás. Talvez você não entenda ainda o motivo pelo qual eu faço algumas coisas mas não duvide, nem por um segundo, que eu não te amo como amaria a meu próprio filho.

 O olhar entre as duas durou por longos instantes e Nina sentiu a mãe tensa como a corda de um violino apertando sua mão contra o corpo. Quis responder, pedir desculpas e dizer que a amava também, abraça-la e sentir-se segura como não fazia há tempo, mas permaneceu quieta, com o pressentimento lido nos olhos de Eva cheios de lágrimas de que ainda havia coisas a vir.

- Acho que já está na hora.

Eva suspirou profundamente e abaixou-se para pegar algo encostado debaixo da cama do hospital. Trouxe para o colo uma pequena caixinha branca enfeitada com tranças douradas e com uma tranca minúscula, aberta.

- Eu sempre imaginei o que faria se esse dia chegasse. – Ela dizia de olhos baixos, passando o dedo devagar pelos relevos brilhantes da caixa. - Demorou tanto. Eu já não tinha mais esperanças que realmente acontecesse. Talvez... Talvez seja mais fácil se você mesma ver...

 Por dentro a caixa era coberta por veludo vermelho, parecida com uma rosa aberta ou uma garganta inflamada. Eva tirou de lá um bloco de papéis lustrosos e ofereceu.

- Eu espero que um dia você possa me perdoar, meu anjo – disse.

   Nina pegou o bloco de folhas com medo. O peso nas suas mãos parecia leve demais para ter todo o poder que pesava sobre a sua mãe. Eram fotos, ela reconheceu, depois de um olhar tímido e receoso. A primeira foto mostrava uma mulher de cabelos loiros como trigo presos em um rabo de cavalo e sorrindo, abraçada a um homem pelo menos uma cabeça mais alto, de terno e com o rosto sujo de marcas de batom.

- É você – Nina disse, passando o dedo pela imagem reluzente. O cabelo estava mais claro e o rosto tinha menos marcas, mas podia reconhecer perfeitamente a sua mãe de assinatura. – É seu marido?

  Eva deu um sorriso triste. Nina entendeu e passou para a próxima.

  A foto seguinte mostrava as mesmas duas pessoas da primeira, sentados na areia da praia ao redor de um garoto loiro de olhos azuis e de bermuda vermelha que olhava emburrado para a câmera, tentando fugir do abraço da mãe. Deveria ter pouco menos que quatro anos e seu cabelo loiro brilhava como o sol. Nina sentiu um calafrio ruim e passou para a próxima foto.

  A terceira foto era de duas crianças. O mesmo garoto loiro da anterior, fantasiado de índio apenas com suas cuecas, um cocar de cartolina na cabeça e tinta nas bochechas, e uma garotinha ao seu lado, de calcinha, barriga pintada e uma máscara do batman na cabeça. Nina riu, sem saber ao certo o porquê.

Todas as outras fotos eram das duas crianças. O garoto empurrando a menina em uma bicicleta, ela fazendo xuxinhas no seu cabelo loiro, os dois dando sorrisos banguelas e sujos de lama até o umbigo. A última foto tinha várias pessoas sorridentes entre duas mesas cobertas de xadrez e uma churrasqueira. Nina encontrou o menino loiro enfiando um pedaço de carne maior que a sua cabeça na boca, com a versão mais nova de Eva de óculos escuros abraçada pela cintura por seu marido com uma blusa de Brasil Rumo ao Penta. Do outro lado da foto estava a garotinha, com a bochecha sendo amassada por um beijo do homem que a segurava, só de calção azul, e uma mulher bonita do seu lado, com cabelos pretos compridos e um macacão cor-de-rosa. A garotinha usava vestido azul-claro, sapatilhas pretas e sorria, com um dente fazendo falta.

Nina reconheceu a garotinha da mesma forma que reconheceu a garota do espelho e o borrão branco medroso no banheiro. Eram todas a mesma pessoa. Eram ela.

  Seus dedos tocaram o papel cintilante, percorrendo o rosto familiar da mulher de franja preta bagunçada pelo vento, sorridente. Nina abriu um sorriso doloroso. Sentia que devia lembrar de alguma coisa, mas não sabia o quê. Algo estava faltando.

- Ela era linda – Eva disse, com modéstia, um sorriso triste tentando mostrar conforto no seu rosto.

- Esta... sou eu, não sou? – Nina perguntou, percorrendo com a ponta dos dedos o rosto amassado da menina. O homem que a segurava também tinha a pele clara e cabelos escuros como piche, o rosto mal aparecia escondido pela barba e pela baixa resolução da foto.

Eva concordou com a cabeça.

- Você se lembra, meu anjo? – Perguntou, esperançosa.

Nina não respondeu. Passou seus dedos pelas cores impressas, sentindo os pequenos relevos e ondulações, até chegar no rosto do menino, com os cabelos loiros compridos e dentes de fora mordendo o pedaço de carne como um pequeno cachorro. Alex.

- Alexander sempre foi um ótimo garoto. – Eva falou, parecendo distante. – Vocês dois estavam sempre juntos. Sempre, mesmo.

“Baixinha, vamos brincar!”

Eva suspirou profundamente e prosseguiu, esforçando-se para não deixar a voz fraquejar. Fazia tanto tempo mas a ferida ainda lhe doía com forças recentes.

- Seus pais se mudaram para o prédio em que eu e Santiago, meu... meu marido morávamos, quando Alexander tinha um ano. Sua mãe ainda estava grávida. Ah, Carola sempre foi um amor, tão doce e delicada. Mesmo assim quando os dois brigavam voavam panelas para fora de casa e dava para ouvi-la gritando a duas esquinas do prédio. Seu pai sempre voltava umas duas horas depois, com uma flor roubada do jardim do vizinho e um pote de sorvete – sorriu. – Eles foram as melhores pessoas que eu já conheci.

 Nina sentia o latejar dentro da sua cabeça, a sensação frustrante de que algo faltava, e deixou-se emergir dentro da história. Eva pigarreou suavemente e continuou.

- Quando você nasceu, Alexander jurou que era a coisa mais feia que ele já tinha visto e que precisava cuidar de você até que parecesse gente, ou os outros garotos iriam te ver e querer te bater – riu e balançou a cabeça, pesada de saudade. - Ele tentou te ensinar a brincar com bonecos, mas você sempre comia a cabeça deles. Eu lembro que quando vocês dois começaram a ler gibis você passou mais de um mês usando aquela máscara do batman. Uma vez fizeram o filho do vizinho do terceiro andar comer tantos bolinhos de massinha que o menino foi parar no hospital. Ah, não tinha como separar vocês dois. Tinham até mesmo um esconderijo secreto, chamavam de A Caverna. Era uma portinha onde ficavam antes os estabilizadores de luz do prédio, mas desde que renovaram o sistema elétrico ela ficava vazia e vocês dois se intocavam lá dentro com biscoitos, giz de cera e o boneco do batman sem cabeça. Era um inferno tirar vocês dois de lá, como era! Nos dias de vacina ou quando era hora de tomar banho nós precisávamos chamar os bombeiros para arrancar vocês. Eram tempos realmente agradáveis até... Bem, até aquilo acontecer.

“Você sabe como são esses prédios antigos, principalmente os que ficam pra lá do Centro... Naquela época nós tínhamos problemas com rachaduras, infiltrações bobas, um dia o ventilador da sala até caiu, mas ninguém esperava que realmente acontecesse... Era quarta-feira. Ninguém espera por desgraças em uma quarta-feira. Eu estava lavando a louça da janta com Alex, Santiago estava na sala xingando a mãe de todos os jogadores de futebol e então... Tudo, tudo caiu. Eu ouvia Santiago xingar e depois uma explosão e gritos. Um buraco abriu a sala, levando Santiago pra longe e o chão se abriu para baixo, dividindo a cozinha em dois pedaços. Eu não consegui segurar Alex. Eu vi seus olhinhos assustados, ele gritou por mim, mas quando levantei os braços para abraça-lo um pedaço do teto caiu e desapareceu com ele. Até mesmo com seu choro. Não sei ao certo se, naquele momento, vi meu filho ser esmagado. Eu... prefiro achar que não. Pouco lembro do desastre depois disso. Só de cair, de sirenes e de muita dor.”

Eva pigarreou pesadamente. Tirou da caixa no seu colo um recorte de papel frágil e amarelado e alisou com os dedos finos enquanto falava.

- Nos jornais disseram que os alicerces do térreo estavam muito velhos e por isso ruíram, o impacto destruiu as ligas das paredes e o prédio se partiu em três antes de desabar, parte caindo para frente e as outras duas partes uma sobre a outra. Disseram que foi rápido. Em segundos o prédio estava lá e então não mais. Mesmo assim, em todos os sonhos que tenho aquele momento dura uma eternidade. Santiago gritando. Meu filho desaparecendo na frente dos meus olhos. Tudo passa devagar o suficiente para durar uma vida. – Suspirou, de coração saturado, e pôs o recorte de jornal sobre a cama branca de hospital. “Prédio residencial desaba e acaba com família inteiras”, diz a manchete em letras gordas de um preto fúnebre e manchado. – Os bombeiros me encontraram ainda na madrugada. Pelo que parece, o armário pesado da cozinha caiu sobre mim e me salvou dos pedaços do prédio que caíam. Disseram que foi um milagre, uma sorte. Disseram que Deus me protegeu. A mim, ao invés do meu filho de seis anos. Muita sorte, eu diria. – Eva soltou um sorriso seco e logo lembrou de se repreender, limpando com as costas da mão os olhos molhados e ajeitando a postura. - Procurei desesperadamente pelas outras pessoas resgatadas, por Santiago, por Carola, qualquer um. Fugi do meu quarto no hospital mais de mil vezes, mas não conseguia ir muito longe arrastando minha perna quebrada. Encontraram o corpo do meu marido pelos destroços. Encontraram Carola e Hugo. Nunca encontraram Alex. Seu caixão foi vazio para dentro da terra. Eu procurei por você, meu bem, procurei tanto – e a olhou, com doçura. - Quando os bombeiros te encontraram você foi levada para um hospital diferente, faltavam pediatras. Veio para aqui. Ninguém sabia quem você era, de onde tinha vindo. Esperavam que você dissesse quando acordasse, então o dia chegou e você não lembrava de nada.

 Toda a mágoa, o abandono, o sentimento de ter sido esquecida pela própria família voltaram a Nina como um peso conhecido e amargo. Lembrava-se da menina cega que chorava todas as noites porque a mãe esqueceu de vir lhe buscar. A menina doente que não tinha alguém que a levasse para casa. Até Eva aparecer.

- Eu entrei em depressão por mais tempo do que gostaria de admitir. Acordava todos os dias completamente sozinha e achava o maior dos pecados que eu continuasse viva quando todas as pessoas que amo não estavam mais aqui. Os médicos disseram que poderia me fazer bem trabalhar em algum hospital, me manter ocupada. Então me inscrevi para muitos projetos voluntários, visitei ONGs, comecei um curso de enfermagem. – Eva sorriu com carinho entre as lágrimas que escorriam. – E finalmente eu encontrei você.

“Estava magra e mais velha, brincando com as outras crianças, mas eu tive certeza de que era você desde a primeira vez que te vi. Perguntei a todos os médicos, puxei sua ficha e seus documentos. A sua data de entrada batia com quatro dias depois da queda do nosso prédio. Procurei pelos médicos que fizeram plantão naquele dia e eles me disseram que você tinha sido transferida para um hospital mais distante pela falta de pediatras e esperaram que algum parente vivo viesse dar parte do desaparecimento de uma criança, mas Carola e Hugo não tinham outros parentes aqui e eu nunca pensaria em procurar por uma menina cega.”

“Eu conversei com todos os médicos pelos quais você passou e quando souberam de onde você vinha ficou mais claro seu diagnóstico. Eles disseram que você esteve consciente durante todos os quatro dias de escavações. Quatro dias inteiros, sozinha, com medo e machucada, ouvindo os gemidos de centenas de pessoas esmagadas ao seu redor. Disseram que você passou por um terror tão grande que quando saiu apagou tudo da sua memória para não precisar se lembrar da dor. Foi o mesmo com a sua visão. Quando lhe examinaram tudo parecia perfeitamente normal, mas você não enxergava porque estava com medo demais de aceitar o que tinha acontecido. Foi a única forma que você, tão pequena e frágil achou para se proteger.”

“Eu fui cuidadosa para que durante todos esses anos você não encontrasse nada ligado ao nosso passado. Os médicos disseram que era importante que você levasse uma vida saudável e normal, porque qualquer lembrança forçada poderia te traumatizar ainda mais. Disseram que a sorte tinha sido lançada ao destino. Você poderia lembrar quando estivesse pronta ou esquecer para sempre. Então eu... Eu esperei.”

Eva tentava conter o próprio choro e sorria para assegurar que estava tudo bem. Aos poucos, tudo voltava à cabeça de Nina.

As memórias chegaram em um turbilhão de imagens e pensamentos. Carola, a sua mãe. Hugo, o seu pai. E Alex, Eva, os vizinhos, o cachorro do síndico, o velho pirata do andar de baixo, todos, tudo o que tinha ficado soterrado a tanto tempo. Nina sentia-se zonza mas feliz. Lembrava de correr com Alex usando uma capa, porque se fossem rápidos o suficiente conseguiriam voar. Lembrava da sua mãe, linda, lavando roupa e cantando em espanhol com ela sentada no tanque, espalhando espuma pela casa. Seu pai, gigantesco, correndo atrás desesperado quando ela rolou de um barranco na Quinta da Boa Vista. Os dois juntos colocando-a para dormir com histórias de princesas que viravam super-heróis.

Os anos perdidos da infância encheram a sua cabeça, fazendo-a querer rir e chorar. O dia em que foram ao zoológico e Alex, loiro, magricelo, implicante, apontou para os coalas gritando “Olha como eles são feios e chatos! Você é um coala, Nina!”, e depois de esfregar banana no garoto para que os macacos quisessem pegá-lo como filho. Lembrava daquele Alex, de joelhos ralados, chamando na porta de casa, segurando na bicicleta. “Baixinha, vem, vamos brincar”. A caverna em que se enfiavam para escrever histórias de heróis ou quando não queriam comer a couve-flor. Ficavam lá horas depois do jantar, desenhando com giz de cera nas paredes, para os homens do futuro lerem suas histórias incríveis como fizeram com os homens das cavernas. Lembrou da noite em que Alex disse “Baixinha, vai lá pra caverna, me espera”.

A caverna. Era lá onde Nina estava quando tudo aconteceu. Quando o teto caiu e as paredes engoliram toda a sua família. Ela estava esperando por Alex, com um cobertor da Turma da Mônica e um estojo já sem nenhum giz de cera cor-de-rosa.

A caverna a protegeu. Era graças a Alex que ela ainda estava viva.

Tudo desabou, mas a caixa metálica que guardava os antigos estabilizadores protegeram Nina. Ela ficou presa e machucada no escuro, chamando pela mãe e pelo pai, sem ninguém vir. Nenhum dos dois nunca mais apareceu. Aquela memória doía tanto dentro do seu peito, incomodava, mas ainda assim Nina não queria mais que fosse embora. Eram uma parte sua, tudo aquilo que ela tinha sufocado há anos atrás e agora era capaz de aceitar.

- Eu sinto como se tudo o que te aconteceu fosse minha culpa – Eva confessou, magoada, trazendo Nina de volta de toda a confusão e compreensão em que mergulhara de repente, forçando-a a se lembrar de tudo o que acontecera nos últimos dias. – Eu tive medo que te apresentar outra vez aos meus pais pudesse forçar sua memória e te deixar em choque. Estive tão preocupada e neurótica por cuidar de você mas então por culpa minha você quase... Ah, Nina, você quase...

Eva soluçou alto, sem conseguir concluir a frase e com lágrimas incontroláveis escorrendo pelo seu rosto. Durante todo o tempo em que Nina dormia ela observava com terror os pontos que os médicos deram em suas mãos, os hematomas de asfixia na pele do seu pescoço e a palidez e fragilidade que o seu corpo tinha adquirido desde que ela viajara.

Nina se precipitou para fora da cama, puxando fios e tubos das máquinas, e abraçou a mãe. Todo o seu coração se encheu por uma compaixão enorme por aquela mulher que enterrou a própria família e os melhores amigos e ainda encontrou forças para continuar a viver.

- Os últimos dias aconteceram porque eu precisava que acontecessem. – Garantiu Nina, sentindo a mãe molhar o seu ombro dentro dos seus braços. – Obrigado por cuidar de mim e me oferecer uma vida nova. Eu te amo, mãe.

As duas sorriram, de olhos vermelhos e rosto molhado. Ficaram abraçadas até que uma enfermeira passasse pelo quarto e trouxesse alguns sedativos para as duas. Nina reclamou, tinha muitas coisas para fazer, pessoas para ver e conversas para terminar, mas acabou aceitando e pegou no sono novamente.


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Notas finais do capítulo

Finalmente, o passado de Nina é revelado!
Quantos segredos! Quantas reviravoltas! Quanto valium pra acalmar essas duas no final!
Devo confessar que, quando eu comecei a escrever a história e o nome dela ainda era Blind Love, a história principal era estilo Romeu e Julieta. Uma garota gostava demais de um garoto, mas a família dos dois se odiavam a ponto de uma família armar o assassinato da outra, mas algo errado atrapalha os planos e o menino morre para salvar a vida da garota. Por pura culpa e para compensar o próprio erro, a mulher da outra família "adota" a garota que, pelo trauma de perder a mãe e o primeiro amor bloqueou as memórias e a visão. Então, aconteceu aquela tragédia horrorosa, em que um prédio comercial caiu no centro do Rio de Janeiro. Todos os que moram por aqui sabem como lá é cheio de construções antigas e lindas, mas perigosíssimas. Eu só conseguia pensar em quão horrível é estar em um lugar ouvindo música e grampeando folhas em um segundo e no seguinte ver um pedaço de concreto cair em cima da cabeça da sua colega de trabalho, perder o chão debaixo dos seus pés e sentir todo o seu corpo ser esmagado. O caso me afetou tanto que decidi escrever sobre isso, e foi um dos motivos de eu ter reescrito toda a história, inclusive abrasileirando tudo.

Ok, foi uma história bem comprida auhsuhauhsuas
Semana que vem temos o últimos capítulo! O fechamento de todas as pontas soltas, algo bem leve para ajudar a cicatrizar o drama passado por esses capítulos amargos!
E mais uma vez, gostaria de agradecer às minhas meninas preciosas, Nina, Bunny e PécoraLine, por continuarem comigo apesar de todos os pesares e por fazerem minha felicidade todos os finais de semana. ♥33
Ok, é só isso, podem ir ver o Fantástico, eu deixo aushuahas