Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 12
O Estranho Fedido




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A polícia chegou algumas horas depois e encontrou um cadáver gigantesco no chão com garotas abraçadas em cima da poça de sangue, uma delas sem roupas. Por mais incrível que pareça, não foi uma situação difícil de se explicar para o policial que estava atendendo os chamados naquela noite. Ele estava acostumado com esse tipo de coisa e desde a primeira olhada ao corpo machucado de Daniela foi como se nada mais precisasse ser dito.

Ainda assim as duas tiveram de fazer os procedimentos de praxe. Primeiro, Dani foi levada ao pronto-socorro para tratar seus ferimentos e receber alguns calmantes, enquanto Nina foi levada à delegacia para dar seu testemunho e abrir o caso. Depois de algumas horas Dani também apareceu, usando uma roupa de moletom emprestada do hospital e, mesmo levando em conta sua aparência de boneca quebrada, estava algemada e com dois policiais a escoltando. Nina viu quando chegou e logo seu sangue subiu à cabeça. Estava prestes a levantar da cadeira e gritar sobre como eles eram capazes de fazer algo desse tipo com ela. Estavam machucando-a, mais ainda! Mas antes que pudesse dar voz à indignação, Dani a viu nas cadeiras de espera e desviou seu caminho até ela com alguns passos.

- Nina! Desculpe por tudo isso. Você pode ir pra casa dormir um pouco, acho que vou demorar aqui.

- Por que colocaram algemas em você? Eles estão te machucando? – Encarou com um olhar fulminante o policial que não soltava o braço da sua vizinha.

- Esse é um procedimento de segurança, senhorita – respondeu o policial, com um mau-humor semelhante.

- Ela não é perigosa.

- Ela matou um homem.

- Porque não teve escolha!

- Chamar a polícia era uma escolha.

Nina estava prestes a rebater novamente, quando Dani interrompeu.

- Está tudo bem, de verdade. – Sorriu, com um olhar sonolento de quem estava fazendo muito esforço para se manter acordado – A pessoa que me machucava já se foi. Vai ficar tudo bem agora, lembra? Dorme um pouco, eu volto já.

Os policiais deixaram Dani na sala de interrogatório, e Nina se encolheu na sua cadeira. Finalmente começara a pensar na possibilidade de Dani ser acusada como culpada e acabar sendo presa. Como seria injusto! Isso não poderia acontecer, de forma alguma. Ela só fez aquilo pra poder salvar a sua vida. Ela não poderia ir presa por sua causa. E mais, ela tinha livrado o mundo de um monstro. Em que tipo de universo isso seria recompensado com uma prisão ao invés de uma estátua com seu nome e um banquete com porco assado?

- Esse mundo é uma droga. – Concluiu, resmungando baixinho.

O depoimento de Dani realmente demorou. Foi tempo o suficiente para que Nina desenvolvesse sua raiva, xingasse todas as formas de vidas possíveis, sentisse medo, observasse as pessoas ao redor – a maioria jovens com aparência de drogados -, se esquecesse de tudo e pegasse no sono. Teve pesadelos estranhos e agonizantes com pessoas gritando sem que ela conseguisse enxergar coisa alguma. Acordou algum tempo depois, com um cheiro terrível a deixando nauseada.

Nina estava encostada de lado na cadeira acolchoada de espera e quando abriu os olhos já estava encarando o perfil de um daqueles garotos que tinham cara de drogado e passeavam pela delegacia chorando que queriam a mãe ou fingindo ser um avião. Testa suada, cabelos castanhos quase pretos de tão sujos, a cabeça encostada na parede, o rosto e as roupas imundas, mas de alguma forma não parecia um sem-teto. Talvez porque aquele garoto fosse novo demais pra isso, talvez porque suas roupas apesar de sujas não eram tão velhas, talvez porque sem-tetos sempre estivessem sempre mais deprimidos que irritados.

- Você está fedendo – Nina resmungou para o garoto, com o sono bloqueando seus canais de tolerância e simpatia. Aliás, que canais de tolerância e simpatia?

O garoto a encarou por poucos segundos, sem dar importância, e virou a cara.

- Bom dia pra você também – ela insistiu. Queria poder mandar ele embora, o cheiro estava terrível demais e fazia seu nariz arder. – Será que você pode ser preso logo? Eu queria dormir.

Outra vez o garoto apenas a olhou com uma cara irritada, virou pro lado e afundou na cadeira, ignorando completamente a sua existência.

O pouco caso do drogado a irritou, mas Nina preferiu guardar a raiva para mais tarde e ter ânimo o suficiente para discutir com os policiais quando declarassem Dani culpada. O que já tinha acontecido, dentro dos seus pensamentos pessimistas.

Não tinha muita noção do tempo, talvez tivesse cochilado por dois minutos, talvez por duas horas. De qualquer forma, se sentia mais cansada do que antes. Mas, por Deus, como aquele garoto fedia. Um cheiro horrível de frutas podres com ovos podres e gambás podres fazendo a festa numa caçamba de lixo podre. Isso estava a deixando inquieta. Ficou encarando-o. Poderia mudar de lugar, claro, mas o fato é que nunca tinha estado tão perto de uma pessoa naquele estado, e provavelmente drogada. Outras pessoas achariam isso idiotice, ou até mesmo preconceito, mas Nina achava que drogados um tipo diferente de gente, e o encarava da mesma forma que alguém encararia um alienígena. Estava escrito em seu olhar, “de que planeta você é?”. Isso e “Será que ele sabe que eu ainda estou aqui? Será que acha que tem ninjas escondidos em algum lugar? Será que está vendo cogumelos azuis plantados no teto cantando hakuna matata?”. Encarou as mãos dele nervosas se esfregando, o pé direito batendo no chão impacientemente, os movimentos profundos da sua garganta quando respirava.

Ele percebera que estava sendo observado, claro, não era idiota. Mas preferiu ignorá-la. Uma opção não muito boa.

- Você tá drogado? – Ela perguntou, por fim, estreitando os olhos.

- Não.

- Mas está fedendo.

- Eu estou fedendo, você está uma bagunça. Ninguém é perfeito.

Nina não se deixou intimidar, apesar de não se lembrar de ninguém ter a tratado da mesma forma antes. Os estranhos sempre pareceram amigáveis. Ou isso teria alguma coisa a ver com ela não ser mais cega? Seria a gentileza um mecanismo de compensação que as outras pessoas usavam por ela ter uma deficiência? Era um pouco estúpido, mas não parecia tão impossível.

Mesmo assim, as pessoas não costumavam ser tão respondonas. Só... Alex. Poderia ser uma coisa de drogados. Poderia ser uma coisa de alucinações. Nina estreitou ainda mais os olhos e inclinou o rosto para ele, de forma acusadora.

- Eu estou imaginando você?

O garoto franziu a testa e dessa vez a encarou de volta.

- Você tá drogada?

- Por que você está fedendo tanto, então?

- Olha, - ele começou, impaciente, virando-se para ela – eu caí, tá legal? Eu caí dentro do aterro de lixo, as pessoas estranharam, chamaram a polícia, e agora eu estou aqui, com uma garota enchendo o meu saco. Entendeu? Nada de drogas, nada de gente imaginária. Eu só caí.

- O que você foi fazer em um aterro de lixo?

- Eu estava fugindo.

- De quem?

- Uns caras malvados.

- Por que?

- Eu gosto de gatos.

A frase percorreu solta no ar, com um silêncio constrangedor. Ele esperava que a garota rebatesse de cara, não que aquela fraqueza admitida se estendesse no vácuo silencioso da delegacia, pesando sobre seus ombros. Não deveria ter falado nada, mesmo. Ela acabaria pegando no sono de qualquer jeito. Hesitou, sentindo o olhar acusatório lhe atravessando a alma, até achar que devia explicar de uma vez tudo o que tinha acontecido.

- Encontrei uns brutamontes babacas colocando gatos dentro de sacos de pano e chutando como se fossem bola de futebol. Atirei uma pedra em um deles e xinguei a mãe do cara, então todos eles decidiram me caçar pra arrancar a minha pele dos ossos. Me perseguiram por seis ruas e foi quando eu decidi pular o muro do aterro pra me esconder. Eles ficaram lá gritando e quebrando garrafas de vidro, os vizinhos ligaram pra polícia reclamando do barulho, eles fugiram quando ouviram as sirenes e a polícia me encontrou lá, enfiado em uma pilha de lixo de nove meses atrás.

- Que história estranha.

Nina encostou a cabeça na parede, se esforçando pra ficar com os olhos abertos com todo o sono que voltava. Deveriam ser umas cinco da manhã. O garoto bufou uma risadinha, é claro que era uma história estranha. Não devia ter falado nada.

- O marido da minha vizinha tentou me matar – Nina confessou, sonolenta demais pra ter alguma expressão.

O garoto olhou para ela e só então percebeu no seu pescoço fino as manchas roxas e pretas de sangue pisado se fechando como um colar.

- Sinto muito.

- Tudo bem, ela matou ele depois. Aí me deixaram aqui esperando.

Nina se espreguiçou, bocejando.

- E agora já tenho quase certeza de que inventei você. Já estava sentindo falta do Alex, também. Você o viu em algum lugar?

- Alex?

- Sssh. Ninguém pode saber que vocês dois não existem, ou vão achar que estou louca. Posso me encostar seu ombro?

- Pra quê perguntar? Sou uma alucinação mesmo.

- Eu sei, mas minhas alucinações costumam ser muito teimosas.

Nina se aninhou no ombro dele, se encolhendo toda como um gato.

- Você ainda vai estar aqui quando eu acordar? – Ela perguntou, de olhos fechados.

Ele olhou para a garota, olhou ao redor, pensando se algum policial apareceria com algemas e um sedativo dizendo “graças a deus que ela dormiu”, e olhou novamente para ela. Bem, pelo menos dormindo ficava de boca fechada. Achou um pouco de graça em alguém ter tanta intimidade com um estranho suspeito de história duvidosa como ele. Sorriu, percebendo que também tinha feito o mesmo.

- Eu não sei – respondeu, mas ela já estava dormindo.

Nina acordou sozinha. O estranho tinha sumido e ela mal lembrava se tinha realmente o inventado ou se somente sonhou tudo. A delegacia estava cheia de policiais e pessoas com cara de quem precisa de ajuda ou de quem planeja fugir. Se espreguiçou, estalando as costas, e deu uma olhada na sala do interrogatório, que estava aberta e vazia.

- Oi, com licença – chamou pelo policial gordo que atendia os telefonemas, ele levantou uma sobrancelha para ela, com um telefone enfiado entre o ouvido e o ombro. – Eu queria saber se a minha amig... se a senhorita Daniela Cunha já foi liberada pelos oficiais.

- Cunha? - O gordo perguntou. Puxou um papel de anotação amarelo pregado na mesa e entregou para a garota. – Ela pediu para deixar isso aqui para a senhorita.

Nina leu o papel, escrito com letra caprichada por um piloto preto.

“Bom dia! Pare de se preocupar tanto, esse tipo de coisa não se resolve fácil, e disso eu consigo cuidar. Vá para casa descansar um pouco. E tome um banho, você está fedendo. - Dani”.

- Você sabe que horas ela... – Nina viu o policial gordo girar na sua cadeira de rodas para o outro lado com o telefone pregado na orelha, e desistiu.

Nina guardou o bilhete no bolso da calça, seu estômago roncou. Fazia bastante tempo que não colocava nada na boca, na verdade. Viu alguns policiais passando com copos de café, e enquanto saia até viu uma cafeteira solitária ansiando pelo contato de um copo para encher, mas seguiu em frente.

Estava um dia ensolarado lá fora, o relógio de ponteiros de um prédio gigantesco apontava para as oito e meia. Nina estava descendo a escadaria da delegacia, quando avistou uma cabeleira loira conhecida sentada nos degraus lá embaixo.

- Ei! Alex!

O garoto se levantou enquanto ela descia, com um sorriso agradável no rosto. Ela se atirou no pescoço dele quando ainda estavam a dois degraus de distância, quase o derrubando em um abraço apertado.

- Isso tudo é saudade ou foi só porque eu trouxe comida? – Ele falou, divertido, ainda sufocado pelo abraço dela.

Nina o soltou e viu um copo grande de café soltando fumaça nas suas mãos.

- Onde conseguiu isso? – Perguntou, depois de o aceitar e soprar um pouco da fumaça para longe.

- Você pegou dentro da delegacia, só se esqueceu disso.

- Ah – limitou-se a fazer e deu um gole no café. Já estava se acostumando com aquela brincadeira toda de não existência e as pegadinhas pregadas pela sua mente. – Você ficou bastante tempo sumido. Por que?

- Você me mandou esperar lá no apartamento, não lembra?

- E o que está fazendo aqui, então?

- Fiquei com saudades.

Nina sorriu e tentou disfarçar seu constrangimento dando outro gole no café, seu rosto corou ainda mais com a bebida esquentando a garganta.

- Não fiquei tão longe assim, também – ele disse. - Quem você acha que teve a brilhante ideia de chamar o monstro de “monte de bosta inútil”?

- Foi você! – Ela falou, surpresa, como se estivesse concluindo um mistério bem difícil do Scooby Doo. – Eu sabia que nunca chamaria ninguém assim! E por culpa sua, nós dois quase morremos!

- Eu sei. Disponha.

Uma velha senhora com óculos muito grossos passou olhando intrigada para os dois. Para Nina, pelo menos. Ela a ignorou, bebeu o resto do café e jogou o copo vazio em uma lixeira.

- O que vamos fazer agora? – Alex perguntou.

- Vou voltar pra casa, tomar um banho e talvez ir pro hospital ou voltar aqui. Quero ver Dani de novo. Não gosto do jeito que as coisas estão indo.

- Bem... Pelo menos uma coisa boa no meio disso tudo – Alex falou, encolhendo os ombros.

- O que?

- Você tomar um banho. Porque, sério, você está fedendo.

Nina fez uma careta de ofendida, e riu. Lembrou-se do garoto da noite passada. Ou madrugada, ou sonho. Ainda não conseguia assimilar muito bem.

- Acha que eu consigo imaginar outras pessoas além de você, Alex?

Os dois atravessaram um cruzamento, ele franzindo o cenho como quem estivesse considerando a ideia.

- Talvez. Talvez você seja uma velha louca solitária presa em um manicômio que inventou toda essa realidade paralela para se divertir.

- Alex! – Nina deu uma risada, então parou de andar, e ficou séria. – Você tá falando sério?

- Quem sabe?!

- Alex! – Ela gritou, quando ele recomeçou a andar, rindo, e o seguiu, dando passinhos apressados - Me diz agora: eu sou uma velha esquizofrênica? Tenho gatos? Como faço pra acordar?

- Pula de um telhado, ué.

- Mas se eu não for, eu vou morrer!

- A gente arrisca.

Nina parou novamente de andar, inflando as bochechas na careta mais furiosa que poderia reproduzir. Bufou, deu meia-volta e foi marchando pro lado contrário.

- Nina!

- Babaca! Será que você não pára nunca?

Ela sentiu sua mão ser puxada, e voltou-se para o loiro.

- Calma aí, foi brincadeira – sorriu.- A moral da história é que você é capaz de muito mais coisa do que imagina.

Ela sentiu, por um vacilo, as bochechas corarem outra vez. Soltou sua mão de forma grosseira, cruzou os braços e inflou as bochechas novamente, desviando os olhos e voltando a andar na direção que os dois seguiam.

- Você continua sendo um babaca.

- Não precisa disfarçar todo seu amor por mim assim, baixinha.

Na recepção do hotel um jovem de cara redonda e salpicada de espinhas vermelhas estava substituindo Cícero, com um uniforme de porteiro que não lhe caía muito bem. Nina o conhecia de verões passados, no tempo em que alguma parte da família do velho porteiro ainda era viva e ele costumava tirar duas semanas de férias para ir visita-los, então aquele rapaz gorducho sempre vinha o substituir. Era estranho que não se lembrasse do nome dele, mas já o vendo de longe lembrou-se da sua cor. O porteiro gorducho era um borrão violeta, meio tímido e vacilante.

Também era certo de que ele se lembrava dela, porque a chamou pelo nome quando já estava atravessando o hall e ainda teve um pequeno sobressalto quando ela se virou no mesmo instante, olhando-o diretamente.

- Dona Nina...! – Depois de se recompor, atravessou o balcão da recepção com uma corridinha, e foi até ela. – Tenho um recado para a senhorita, do hospital.

- Ah, foi Dani? Ela teve de voltar para lá?

O gorducho hesitou, desviando o olhar, parecia desconfortável com o olhar da garota-não-mais-cega. Suas gigantescas e fofas bochechas estavam mais vermelhas que o costume e ele pareceu se engasgar enquanto tentava falar.

- Sinto muito, mas não é isso...

E aquele tom de voz. O tom de voz que os médicos usavam quase o tempo inteiro. Nina desejou não o ter percebido, mas já havia sentido que não era pela sua nova visão que ele se sentia desconfortável.

- ...Desculpa, eu realmente não sei como te falar isso...

Por um impulso, ela quase tapou os ouvidos, começou a gritar e saiu correndo. Não estava pronta para mais noticias ruins. Não era justo de forma nenhuma. Do seu lado, Alex apertou a sua mão. O gorducho balançou a cabeça pesadamente.

- ...mas o senhor Cícero sofreu um ataque fulminante e morreu, essa manhã.


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Notas finais do capítulo

Sim, quando as coisas já estão ruins, a tendência é piorar MESMO. MWHAHAHAHAHAHA.
Lei de Murphy botando todo mundo pra se danar.
O que vai ser de Nina agora? Será que mais esse choque vai afetar nas suas alucinações, na sua vida? Dani vai ser culpada? No próximo sábado! (e esse veio atrasado mas PFFFF)
Ah eu sei que prometi imagens das minhas atuais versões do povão mas mas mas ficarei devendo, ok? Obg pela compreensão vocês são tudo lindo ótimo minhas leitoras lindas de mamãe coisa mais fofa desse mundo ♥33



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