Passado Perdido escrita por Leonardo Alves


Capítulo 2
Primeiro amigo




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16 de junho de 1989

Acho que devo começar me apresentando e depois devo me desculpar. Oi, eu sou Thomas, seu mais novo amigo. E sim, eu sei que já faz alguns dias desde que ganhei você e que ainda não escrevi nada. Me sinto mal por isso. Mas não entenda errado, não é que você não seja especial, o problema é que você é muito especial. Afinal, você foi um presente da minha mãe.

Ela é a melhor pessoa do mundo! No meu aniversário de oito anos, alguns dias atrás, ela me deu você e disse que era para eu te contar sobre tudo que eu tivesse vontade, que você seria meu amigo. Eu não tenho nenhum outro amigo de verdade. As outras crianças na escola parecem não gostar muito de mim, nem eu gosto tanto delas... mas isso não importa.

O que aconteceu foi que quis começar escrevendo algo importante em você, passei os últimos dias pensando nisso. Sem sucesso, é claro. Pelo menos até hoje. Hoje, nessa noite, tem algo que eu realmente preciso contar para alguém. Isso vem me perturbando e causando pesadelos desde quando consigo lembrar, mas mamãe me diz que não posso falar para ninguém porque faria com que o Coisa ficasse nervoso.

Como se ele precisasse de algo para ficar nervoso. Aqui, trancado em meu quarto, posso ouvir sua voz carregada de ódio. Também ouço os estalos dos seus tapas em minha mãe enquanto ela implora inutilmente que ele pare. Acontece quase toda semana: ele chega bêbado ou irritado e faz de tudo pra começar uma briga, minha mãe manda eu me trancar no meu quarto e então fico ouvindo todo aquele inferno sem poder fazer nada para ajudar. Dói em mim ouvir todos esses gritos. Dói em mim ver as marcas roxas pelo corpo da minha mãe. Dói em mim não poder protegê-la... Não importa quantas vezes eu passe por isso e já foram muitas — eu sempre choro descontroladamente, trancado em meu quarto. A propósito, me desculpe por estar molhando suas páginas.

Mas o pior é que depois de tudo ela ainda insiste para eu parar de chamá-lo de Coisa e começar a chamá-lo de pai. Simplesmente não consigo... Não posso acreditar que eu seja filho de alguém tão desprezível. Já é difícil acreditar que minha mãe, tão doce e gentil, tenha se apaixonado por ele! Será que ele já foi uma pessoa decente algum dia? Não importa...

Posso te contar um segredo? Quando assoprei a vela do meu bolo de aniversário desejei que ele morresse.

Calafrios percorreram meu corpo ao terminar de ler aquelas palavras. Que vida terrível deve ter tido aquela criança sendo filha de um monstro como aquele. Eu sabia que, no nosso mundo, bastava ligar a televisão para vermos histórias ainda piores. Porém, fui afetado de uma forma estranha por aquela em minhas mãos, talvez porque o nome do menino era igual ao meu.

Foi lendo pela segunda vez aquelas páginas que percebi os contornos de algo escrito na parte de trás da última folha. Quando a virei vi grandes e grossas letras negras dizendo: “ATRÁS DE VOCÊ!”. Todos os músculos do meu corpo congelaram. De repente, pela primeira vez, tive uma real percepção do local onde eu estava: o cheiro de mofo, o silêncio total, o estado de abandono do prédio, a porta aberta atrás de mim que dava para o pequeno corredor daquele apartamento... tudo cresceu de forma assombrosa em minha mente, como um monstro prestes a me engolir.

Calma, Thomas... sussurrei para mim mesmo, meu coração martelando forte dentro do meu peito. - vou contar até três e você vai virar e ver que não há nada além de um velho corredor vazio atrás de você. Um... dois... três!

Realmente, não havia nada lá. Aquilo era só uma frase idiota escri... Então tudo aconteceu no que pareceu ser apenas um segundo. Ouvi passos pesados ecoarem pelo chão e a porta do final do corredor sendo destrancada. Uma figura vestida com roupas negras e um moletom com o capuz cobrindo o rosto passou rapidamente por mim, seguindo caminho para fora do apartamento e escadas abaixo pelo que consegui acompanhar com os ouvidos.


Precisei de alguns minutos para sair do estado de choque e conseguir me mexer. Coloquei as páginas do diário no bolso da minha blusa e, com as pernas ainda um pouco trêmulas, comecei a ir em direção a saída do prédio numa velocidade suficiente para sair rapidamente do lugar e ao mesmo tempo prestar atenção em cada sombra pelo caminho. Quase ri de alívio quando finalmente saí para o ar fresco da rua.

Ei, Erick, você... mas minha voz foi interrompida pela visão dele vomitando no chão, seu rosto ainda mais pálido do que costumava ser. Ele era um grande medroso e vivia se assustando por qualquer coisa, eu sabia bem disso. Mas apenas coisas realmente terríveis o deixavam naquele estado. — Ei, o que aconteceu?

Não foi nada. proferiu após alguns segundos respirando fundo e se recuperando.

— Nada?! Vamos lá, me conta. Saiu um cara correndo de dentro do prédio e você se assustou?!

Eu já disse que não foi nada. Vamos embora logo. sua voz mau humorada saiu como um tapa em meu rosto. Em todos esses anos eu nunca havia visto ele agir daquela maneira. Ele sempre foi o bonzinho e solícito, não o estressado revoltado com tudo. Esse era o meu papel!

Precisei correr para acompanhar seus passos rápidos que já iam em direção ao ponto de ônibus. Ele nem ao menos havia perguntado sobre o que encontrei dentro do prédio. Algo realmente estranho estava acontecendo. Naquele momento, para a sorte da minha sanidade mental, eu não podia imaginar que aquilo era apenas o começo.










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