Scarlett Dragon escrita por RoxyFlyer21


Capítulo 1
Starbucks




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Há dois dias atrás, eu recebi uma carta, uma que eu pensei que nunca receberia. Eu soube que estava de volta ao trabalho de campo, que eles tinham me colocado dentro de um jogo outra vez, simplesmente ao conectar os pontos. E mesmo que eu tenha ficado quase anos afastada de tudo e todos, minha mente e meu corpo nunca se esqueceram de como é.É como aprender a andar de bicicleta: quando você pega o jeito, lembra pra sempre. E o pior de tudo: uma parte de mim queria, incontrolavelmente, estar de volta.


Era uma tarde fria de outono, e Manhattan soava mais quieta pela janela da Starbucks. Respingos de chuva batiam contra a vidraça, e o céu nebuloso recobria os prédios com uma nuvem cinza metálica. Recostei-me na poltrona, meu laptop aberto num trabalho de física para a faculdade, e beberiquei o café quente. Então, um homem muito alto entrou, fazendo o sininho da porta da loja soar alertando um novo cliente. A principio não percebi nada de mais, e o vi de soslaio sentando sozinho numa mesa solitária algumas poltronas distante de mim.

Voltei a atenção para meu latte e a visão das pessoas andando pela rua. Estranhamente, senti algo pesar nas minhas costas. Nossos olhares se cruzaram quando virei a cabeça, e percebi que ele estava perscrutando-me cuidadosamente por um tempo. E, mais estranho ainda, eu senti algo familiar vindo daquela pessoa.

Era um homem alto e magro dentro de uma longa casaca de couro preto. Sua barba estava por fazer, e tinha os cabelos cinzentos, algumas mechas brancas de idade. Eu dou-lhe 45, 50 anos. Ele agia discretamente, e pensei brevemente que talvez ele quisesse encobrir algo. Logo descartei essa ideia.

Eu fiquei intrigada, e tentei esquivar-me dessa sensação estranha. Alguns instantes depois, me peguei olhando-o de novo. Eu sentia uma necessidade de exercitar minha logica descritiva, uma habilidade muito exercitada anos atrás e frequentemente usada, mas que eu tive que aprender a controlar. Não dava para, toda vez que eu conhecesse alguém novo na faculdade, deduzir tudo (ao menos a maioria) sobre a pessoa, mesmo que a pessoa nem percebesse que eu estava fazendo. Essa habilidade, como esperado, revelou-se muito enferrujada.

Observei discretamente suas mãos. Uma mancha escura, quase impercebível, marcava a pele da palma de suas mãos, o que era um forte indicio que ele manuseava frequentemente o volante. Um taxista. Havia uma caneca de porcelana branca em cima de sua mesa, a qual só percebi quando ele virou inteiramente para segura-la. O brasão. Mal acreditei no que via! Pisquei, mas lá estava o símbolo do dragão de escamas vermelhas e olhos grandes de turmalina, com sua calda rodopiante e os dentes brancos ameaçadores. Era um pequeno desenho na caneca, mas era inconfundível. Algo que eu não havia visto há anos. Algo que foi banido há tempo.

Meu coração falhou, me fazendo lembrar de tudo de uma vez só. Até aquele momento, eu tinha a certeza absoluta de que nunca mais queria vê-lo, porem também senti a dolorosa saudade ao reconhece-lo.

O homem tomou um gole da sua caneca, e eu senti que ele havia percebido meu atordoamento. Então ele levantou-se rápido, fazendo o mínimo de barulho, atravessou o balcão e dirigiu-se a porta, parando antes para jogar a caneca ainda com café em um dos buracos do lixo. Na hora que o fez, eu soube que o que pretendia era quebrá-la, anular vestígios. Era o que tínhamos aprendido a fazer com tudo o que tocássemos, anos antes. O que era desnecessário no momento, dado que ninguém de importante estava naquele lugar.

Eu recostei novamente, e puxei a gola do meu suéter para cima do pescoço, confusa. O que foi tudo aquilo? Eu sei que qualquer outra pessoa que viu esse homem, que viu a caneca não pensou nada além do ordinário. E é isso que eu deveria pensar, disse a mim mesma. Mas perguntas de como ele tinha encontrado nosso símbolo, se eu fora descoberta, se isso era mais uma missão, faziam com que eu tivesse o impulso de sacar uma Magnum do bolso. Então eu me lembrei de que estava desarmada. Velhos hábitos são mesmo difíceis de largar.

Mas o que mais me perturbava era o jeito dele, como ele tomava o café, como se eu estivesse voltado a uma daquelas sequências cifradas. Eu repassava suas ações mentalmente, automaticamente tentado achar códigos cifrados. Isso era outra habilidade que eu tivera que controlar em prol da minha vida social. Ele havia batido no tampo da mesa com a ponta do dedo três vezes, então torceu o pescoço para o lado direito. Logo mais, como se estivesse entediado, dedilhou na borda da caneca no sentido horário.

Espera, era isso! Uma cadeia de gestos implícitos! Conectando os pontos, com uma lógica que a muito pensei que tivesse escoado de mim, virei fugaz para o balcão, em cima do qual havia um grande mural de cortiça cheio de recados.

Eu estava começando a suar frio, minha mente analisando mil situações e qual o provável significado disso tudo. Segui um instinto maluco que me dizia para levantar e checar o mural. Eu fechei o laptop e passei minha bolsa pelo ombro, e como se quisesse apenas jogar meu copo no lixo, fui até lá o mural. Eu torcia para que minhas deduções estivessem erradas.

“Três vezes o coelho desce, pela direita da toca, sempre atrás das raízes.” Um divertido modo de decorar as regras de comunicação confidencial na agencia. Quando alguém queria trocar informações, usava esse código. No mural, fui deslizando o olhar por cartazes de banda e anúncios coloridos até parar na terceira tachinha preta, no lado direito do mural. Meus dedos foram ao encontro de um envelope, atrás de um cartaz de papel amarelo. Meu coração parou; eu estava certa, ele deixou isso para mim. Se eu tirar apenas o envelope de detrás do cartaz, poderia chamar atenção de alguém. Com um puxão, fingindo estar interessada na propaganda, arranquei ambos papel e envelope. Guardei-os apressadamente ao sair da Starbucks, dirigindo-me para o metrô mais próximo, até em casa.


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