Uma gotícula de sangue caiu sobre o canto da folha sépia quando Acace levantou a ponta de ferro da pena, afastando o objeto do papel. Heimirich lhe entregou o carimbo com o símbolo francês dos Black Rose, para que o albino oficializasse o documento.

Após o carimbo ser prensado sobre a folha, Cashmire suspirou aliviada na outra ponta de mesa. O tique-taque do relógio da sala de reuniões chegava a ser irritante, sendo o único som contínuo no ambiente.

– Pronto - anunciou Acace.

Evandro inclinou-se brevemente sobre a mesa, recolhendo a rala pilha de papéis. O loiro ajeitou os óculos que de nada lhe serviam, eram meros acessórios à perfeita visão. Não evitou um sorriso maroto com esse pensamento.

– Bem, então o senhor Acace fica com 5 por cento da Maison de Rosalia e desiste, terminantemente, do senhor Castro - Evandro resumiu os notas do documento em mãos. - É, acabou.

As folhas sépias foram arquivadas em uma pasta e depositadas dentro de um dos pequenos cofres da parede. Heimirich exibiu um sorriso fechado, completando com um olhar terno. Agora que podia ver tudo novamente, graças aos milagrosos poderes do youkai de Yusuke, sentia-se mais leve.

– Então, talvez você queira voltar pra casa agora, priminho - Fran lhe sorriu cínico.

Apesar de tudo ter se resolvido, o menor ainda não engolia o primo por completo, mas não podia deixar os bons modos de lado. Cashmire passou os olhos de um para o outro, exasperando ao apoiar o queixo no punho.

– Vai começar de novo - a morena murmurou baixinho para Yusuke.

Quando o de olhos heterocromáticos estava prestes a responder, Heimirich lhe tocou o ombro, meneando a cabeça negativamente.

– Como quiser, priminho - Acace devolveu o sorriso, saindo da sala com o seu mordomo.

– Acabou! - Arkane correu para dentro da sala, subindo em cima da mesa e comemorando.

– Arkane-chan, desça daí - Hikaru implorava com voz manhosa.

Com um puxão, Arkane colocou Cashmire a sua frente sobre a mesa de mogno, enlaçando a cintura da mais nova. A albina curvou o pescoço, colando a ponta de seu nariz com o de Cashmire.

– Que tal fazermos aquilo para comemorar? - Sugeriu ela, lambendo os lábios.

Cashmire lhe respondeu com um sorriso malicioso, alcançando o ouvido da mais alta.

– Você consegue ser menos discreta? - A morena mordiscou-lhe o ouvido.

Yusuke apressou-se em descer a pequena da mesa, pegando-a pela cintura.

– Naa, não acho que isso seja coisa para duas mocinhas fazerem - censurou o mordomo. - Ainda mais juntas.

– Arkane-chan, desça logo - Hikaru a puxou pelo pulso.

– Será que vocês podem fazer isso no quarto de vocês? - Perguntou Fran com um suspiro.

Arkane voltou-se ao albino, cruzando os braços e lhe lançando um sorriso malicioso.

– Agora que o Ginger voltou a ser só seu, acho que você tem mais o que fazer do que ficar enchendo o saco.

Cashmire ocultou a boca com as mãos, impedindo que vissem seu sorriso sugestivo ao imaginar o Fran e Ginger fariam à noite.

– Cuidado para não machucar meu primo, Ginger - a morena riu-se, saindo da sala com Arkane.

Fran ficou extremamente corado com o comentário da prima, baixando a cabeça e procurando deixar a sala desesperadamente. Yusuke e Hikaru limitaram-se a suspirar pesadamente e ficar encarando a porta da sala.

– Garotas - disseram os dois juntos, também se ausentando da sala.

Ginger se viu sozinho na sala de reuniões, parado no mesmo lugar e engolindo seco pelo o que as garotas disseram. O moreno balançou a cabeça, voltando ao presente. Levou a ponta dos dedos à franja, retirando a teimosa mecha cacheada de seus olhos.

– Agora ele é o único - sorriu, encaminhando-se para a porta e trancando a mesma pelo lado de fora.

– Pegaram tudo? - Evandro perguntou aos criados que carregavam a as malas de Acace e Heimirich.

Não era como se o herdeiro francês dos Black Rose tivesse trazido muita coisa para somente dois dias de estadia na mansão, mas ainda assim haviam várias malas espalhadas pelos degraus da varanda da entrada.

– Acho que é só isso - observou Acace. - Onde está o Heimirich?

– Err... Arkane meio que o pegou emprestado por alguns minutinhos - Cashmire coçou a nuca, encarando o chão.

– Hã?! Como assim? Pensei que tinha deixado claro que Heimirich era meu e ela não deveria chegar perto - Acace cruzou os braços.

– Me diga, pra que Arkane-sama vai querer seu mordomo se ela já tem a mim? - Hikaru fechou os olhos de forma casual.

Ao final da sentença, Mira apareceu sob os batentes da ampla porta, segurando a mão de Viollet. As duas expressavam um sorriso de quem estava aprontando alguma.

– Mira-sama, já deve ter terminado suas tarefas escolares para estar brincando por aí, não é? - Kain encarou a azulada.

– Ah, não enche. Eu já vou voltar para a biblioteca - Mira revirou os olhos. - Só viemos apresentar um novo amigo à vocês.

– Que rufem os tambores! - Viollet pulou animada.

– Nós apresentamos à vocês: o novo Heimirich! - As duas disseram em uníssono, se afastando da porta.

Arkane apareceu guiando o moreno para fora. A franja agora lhe cobria o olho esquerdo e o cabelo caía leve pela nuca. Os olhos arroxeados brilhavam alegres, mas a coleira de espinhos - agora não tão afiados - continuava em seu pescoço.

– Hei-Heimirich?! - Acace não o via assim cheio de vida há muito tempo.

– Ficou ótimo, não? - Arkane sorriu orgulhosa.

O mordomo abriu os braços ao albino, que pulou em seu colo sem hesitar. Era doce ver aquilo, revigorante. Cashmire tirou os olhos de seu primo por um instante, buscando Fran. O outro não estava ali, assim como Ginger, Shiyo e Yuiichi.

– Acho melhor deixá-los à sós, como estão agora - Yusuke sussurrou ao ouvido da pequena, beijando-lhe o lóbulo da orelha.

Como ele sabia? A garota não tinha verbalizado nada. Ele podia ler seus pensamentos também agora?

– Bem, então acho que é adeus, priminha - Acace fez uma reverência à Cashmire.

– Não, isso é um até logo, priminho - a morena o abraçou apertado. - Carregamos o mesmo sangue, temos de nos manter unidos. Nunca mais o deixaremos sozinho.

Acace sorriu. Nunca se sentira tão feliz. Agora tinha amigos, tinha família e uma pessoa que correspondia a seu amor de forma igual e até maior. Um sentimento quente crescia em seu âmago, derretendo o gelo em seu coração inóspito.

– Até logo, obrigado pela recepção - Acace se despediu dos demais, entrando na limusine negra com Heimirich.

O carro fez a volta para o portão de saída.

– Os portões estão com algum problema? - Perguntou Miguel, vendo que as grades pretas ainda continuavam abertas.

Evandro puxou a manga do blazer para que pudesse checar a hora no relógio.

– Não - ele ajeitou os cabelos. - Só está na hora de recebermos os novos moradores.

Todos voltaram o olhar para o carro prateado que adentrava a propriedade. Parando na metade do caminho, o veículo abriu suas portas para uma garota de cabelos azuis até a nuca com mechas mais cumpridas na frente. A íris parecia se misturar à pupila no roxo escuro.

Atrás da garota, um rapaz de cabelos lilases cumpridos e olhos azuis desceu do carro, sorrindo maroto. Ela parecia tímida, mas mantinha o olhar reservado como se não fosse falar muito desde já. Evandro e Yusuke caminharam na direção dos dois, estendo as mãos para o cordial cumprimento. Kain fez sinal para que os outros também fossem conhecer a nova dupla.

– Muito bem - Evandro limpou a garganta. - Estes são Mizore Uraname e Ryusuke Okinaneko.

Mizore deu um passo para trás de Ryusuke, apertando o braço do agente um tanto nervosa com a apresentação.

– Hajimemashite, Uraname-san, Okinaneko-san - Cashmire sorriu aos novatos.

Se lembrava vagamente da ficha da garota sobre a mesa do escritório, tinha sido aprovada.

– Mira, Viollet, estão usando seus poderes? - Arakane indagou, erguendo a palma da mão.

Só então Cashmire se deu conta dos finos pingos que caíam lentamente do céu. Há cinco minutos atrás o sol estava brilhando e quase não haviam nuvens visíveis. Aquilo era estranho.

Quando Arkane perguntou às garotas, Mizore se escondeu ainda mais atrás de seu agente.

– Mizore-chan, controle-se, nyan - Ryusuke murmurou, virando-se parcialmente a ela.

Cashmire percebeu quando a novata cerrou as pálpebras com força e, ao mesmo tempo, os pingos de chuva engrossaram. Ryusuke abriu o guarda-chuvas sobre sua protegida.

– Gomenasai, minna-san - o rapaz sorriu, entregando o cabo do guarda-chuva à Mizore.

Evandro aquiesceu, colando a mão nas costas da garota e a guiando para a mansão, enquanto o mordomo e Yusuke descarregavam os pertences do carro. As garotas voltaram para a sala, observando a novata de cabelos azuis evasivamente.

Ao chegarem na sala, a chuva afinou-se novamente. Mizore sentou-se numa das poltronas no círculo de sofás, apertando a barra do vestido xadrez nervosamente. Podia sentir o olhar das outras sobre si, mas mantinha a cabeça baixa com os olhos em seus próprios joelhos.

Estava tentando se controlar para não fazer com que o céu desabasse em uma chuva devastadora, mas não podia conter o nervosismo em conhecer novas pessoas. O medo de errar e ficar sozinha mais uma vez não a deixava.