Os primeiros raios da manhã entraram pela janela do nosso quarto. Maria Luiza está deitada ao meu lado e respira com certa dificuldade, a velhice vem atingindo mais a ela do que a mim. Seguro forte sua mão próxima ao meu coração. Tenho tanto medo de perdê-la. Não é um medo qualquer, é o tipo de medo que eu nunca senti antes. A diferença é que, dessa vez, se eu perdê-la não há mais volta, será para sempre. E eu não consigo imaginar ter que viver o resto dos meus dias sem tê-la por perto.

Os últimos anos passaram voando e com eles vieram à velhice. Tanto eu quanto Malu viemos sofrendo com a fraqueza nos ossos, perda dos cabelos, flacidez na pele e, mesmo assim, eu ainda acho que ela é a mulher mais bonita que já conheci em toda a minha vida. Malu ainda tem a pele translúcida, os cabelos antes louros agora estão branquinhos e finos, os olhos são os mesmos verdes cristalinos.

Mas o pior de todos os sintomas é a perda da memória. As lembranças da nossa juventude, do início da nossa história, as datas marcantes estão se perdendo com facilidade. Não é fácil para mim, nem para ela. Sentimos muito por não nos lembramos da essência de nossas vidas.

Alice e Gabriel saíram de casa há anos. Hoje, cada um tem sua própria casa e sua família, mas sempre que possível eles veem nos visitar. Agora, mais do que nunca, eu e Malu precisamos de cuidados e paciência, da mesma forma como um dia tivemos com eles.

A nossa casa está sempre silenciosa e vazia, não há muito o que fazer. Nos cansamos rapidamente e já não temos tanto anseio pela vida como antes.

Nesse momento, eu sinto falta da minha juventude, quando tinha coragem, determinação e força. Estava sempre rodeado de amigos e meus familiares. E tê-los por perto era o suficiente.

Muitos amigos e familiares partiram, outros foram morar longe. E apesar de ser o esperado, nunca estivemos preparados para perdê-los. Sempre foi difícil ter que aceitar a cruel realidade.

Uma das nossas maiores alegrias, além de ainda termos um ao outro, são os nossos netos. Ao todo são cinco. Eles com frequência veem passar uns dias aqui em casa para nos fazer companhia e estão sempre insistindo que eu lhes conte como a minha história com Malu começou. Mas nem todos os dias eu tenho a capacidade de lembrar. Cada vez mais vem se tornando difícil eu conseguir relatar os fatos desde o princípio.

Me sinto incapaz quando minha memória falha. Sempre acreditei que lembrança é o mais precioso bem que podemos guardar dentro de nós. Me sinto muito frustrado por esquecer a parte mais importante da minha vida: a história do meu primeiro e único amor.

— Crianças, por favor, a vovó e o vovô precisam descansar – Alice ou Gabriel repreende as crianças quando percebe que estou prestes a me desabar em lágrimas com a minha própria incapacidade.

Para minha sorte, meus filhos sempre foram muito curiosos também. Quando mais jovens contei a eles muitas histórias minhas e de Malu, das quais se lembram até hoje. Assim, quando minha memória falha, um dos meus filhos aparece como anjo para me auxiliar e, aos poucos, eu vou me lembrando e relatando. Quando isso acontece, Malu também se empolga e, enquanto eu narro, às vezes ela continua quando minha voz falha ou quando me esqueço de um detalhe importante.

Em dias em que nossas lembranças são nítidas ficamos muito felizes, como se de repente pudéssemos reviver uma parte dentro de cada um de nós que está morrendo aos poucos.

A minha história com Malu nunca foi a mais bonita e nem a mais importante. Assim como qualquer outro adolescente, naquela época, eu era só mais um rebelde despreocupado com a vida, cheio de problemas para solucionar, e sonhos para realizar.

Tudo mudou assim que eu bati meus olhos em Malu naquela viagem de formatura. Eu logo soube: ela ainda vai ser minha. E não demorou muito para que nos declarássemos um para o outro na mesma intensidade. Estávamos perdidamente apaixonados, e apesar das diferenças, das controversas, dos obstáculos e desafios que surgiriam pela frente, optamos por tentar viver esse amor.

Confesso que eu nunca tinha me apaixonado antes e nunca havia imaginado que uma pessoa seria capaz de mudar tanto a minha vida, assim, de uma hora para outra.

Tivemos muitos momentos bons juntos, sempre tivermos uma ligação muito intensa, que eu desconhecia ser possível. Mas logo eu fui me adaptando, aceitando e já não conseguia mais imaginar viver uma vida da qual Malu não fizesse parte.

Por ela, eu cresci, evolui, deixei de ser um garoto individualista, egoísta e despreocupado. Malu sempre acreditou em mim, me fez enxergar a vida com outros olhos. Ela sempre foi muito compreensível, amorosa, paciente, carinhosa, muita mais do que uma simples namorada, uma amiga que conheceu a mim melhor do que eu mesmo.

Como todos os casais tivemos nossos altos e baixos, nossos momentos de guerra, fúria. Mas o melhor de tudo é que no final sempre acabávamos bem, nos amando, nos desculpando, perdoando e aceitando que sempre fomos feitos de diferenças.

Sem dúvida alguma, o momento mais difícil da minha vida foi perder Malu porque ela mesma quis assim. Foi como perder o chão sob meus pés, foi como se o céu tivesse desabado sobre a minha cabeça. Desde que a conheci, eu sempre fiz de tudo para dar certo, passei por cima do meu próprio orgulho, mudei, corri atrás, me ajoelhei, fiz promessas, juras de amor, demonstrei meus sentimentos, minhas preocupações e acabei sufocando-a, deixando-a cansada do meu amor a ponto dela quebrar nossas promessas, destruir o meu coração, ferir meus sentimentos e ignorar nossos planos para o futuro.

Tudo foi perdido em uma fração de segundos com uma simples frase: Sai da minha vida. Gostaria de me sentir livre.

Eu pensei que iria morrer, assim como todos aqueles que têm o coração despedaçado. Eu pensei em desistir de tudo, acabar com a minha própria vida, pensei em relutar, pensei que nunca mais seria feliz ao lado de mais ninguém. Mas eu me enganei. O tempo me ensinou muitas coisas, tudo que era preciso. O tempo amenizou a minha dor, me fez amadurecer, repensar sobre a vida. O tempo me mostrou que para ser amado, eu precisava me amar em primeiro lugar e me dar valor.

Malu e eu passamos anos qualquer contato. Cada um vivendo sua própria vida. Não vou negar que vez ou outra eu me pegava pensando nela e chorava de saudades. Afinal, Maria Luiza era o meu mundo, que vi escorregar das minhas mãos, como areia da praia.

Alguns vão dizer que eu nunca deveria ter perdoado Malu por ela acreditar que levaria uma vida melhor se não me tivesse por perto. Outros vão insistir que ela nunca foi à mulher certa para mim. Já outros vão dizer que por mais que ela tenha se justificado não é perdoável, mas eu sempre soube que Malu era perfeita, ela sempre teve suas carências, seus motivos, seus porquês, suas justificativas.

Mas o que eles sabem sobre o nosso amor?

Eu a amo e sempre amei. A vontade de tê-la novamente em meus braços fazendo parte da minha vida outra vez era muito maior do que qualquer erro. Ela foi sim errada em me deixar daquela forma e enganar a si mesma. A verdade é que por mais que muitos não a entendam, eu sempre vou aceita-la, do jeitinho que ela é, porque foi justamente por esse seu jeitinho que eu me apaixonei perdidamente.

Não vou negar que foi difícil depois de anos encontra-la disposta a consertar os próprios erros. Justamente quando eu estava conseguindo me recompor, seguir em frente e já acreditava que estava curado. Mas Malu sempre teve a facilidade de romper a barreira que eu criei em minha volta como autodefesa.

Eu nunca consegui compreender, Malu sempre teve capacidade de fazer de mim o que bem entende. Eu sempre voltaria para os braços delas, eu sempre estaria disposto a tentar mais uma vez, sempre a desejaria mais e mais.

Não há duvidas que Maria Luiza foi feita pra mim e eu, para ela. Nós dois tentamos seguir sozinhos, mas não foi fácil para nenhum dos dois. O que precisávamos era um do outro e o destino tratou de nos unir de novo.

Quem ama precisa esperar.

Não importa onde estamos, nós sempre pertenceremos um ao outro. É assim que tem que ser. Todos os dias eu ainda vou me apaixonar por ela ainda mais que da primeira vez. Vou admirar seu sorriso, me encantar com seus olhos e ansiar pelo seu toque. Para mim, Maria sempre será a mais bela entre todas, a única que eu quero pelo resto dos meus dias. Ela é a minha salvação, a minha cura, o meu mundo inteiro e a razão da minha alegria. Malu é o encaixe perfeito do meu coração.

Não é por acaso que estamos casados há tantos anos. Se não fosse verdadeiro, já teríamos nos destruído. A cada dia eu tento fazer Malu mais feliz que no dia anterior, tento lhe arrancar um sorriso que dê força para continuar vivendo. Não sei se seria capaz de suportar viver sem ela outra vez.

Só de imaginar essa possibilidade, meu coração dispara, sinto um tremor pelo corpo, uma fraqueza nos ossos, um aperto no coração.

— Você está bem, querido? – Malu pergunta com a voz fraca, mansa.

— Estou – minto. Sinto que os nosso fim está próximo. — Não se preocupe comigo. Só estou com medo...

— Não pense nisso – ela cola seus lábios nos meus. Ainda tem o mesmo gosto doce. — Lembre-se: chegamos até aqui. Juntos.

Ela tem razão, pensei.

Malu tem toda a razão. Não é exatamente isso que todo casal deseja? Viver uma vida toda ao lado da pessoa amada? A vida permitiu que eu e Malu tivéssemos nosso final feliz para sempre. Não é como nos contos de fadas. A realidade é bem mais difícil. Mas não tem porque não agradecer a Deus por ter dado essa chance a nós.

— Nunca se esqueça – aperto-lhe firme a mão. — Eu amo muito você.

Ela sorriu lindamente, suspirando fundo como quem se perde em uma vaga lembrança.

Sinto as pálpebras pesadas. Meus olhos querem fechar, mas eu quero resistir. Estou velho demais, sinto a necessidade de descansar, mesmo que eu não tenha feito esforços.

E antes que seja tarde:

— Daniel... – ouço a voz de Malu distante, como se tivéssemos a metros de distância. — Eu também amo você. Perdoe-me se algum dia eu fui falha com você.

— Não diga uma coisa dessas – tentei sorrir. — Você sempre será uma parte de mim. Você é a primeira mulher que amei de verdade e sei que a minha vida foi melhor por causa disso.

Fechamos os olhos ao mesmo tempo. Adormecemos.

Em meus sonhos, vejo uma jovem loura de olhos esverdeados e corpo esbelto. Ela corre em minha direção com os braços estendidos e o sorriso estampado no rosto. Quando seu corpo se choca com o meu, passo meus braços em volta dela, inalando seu perfume suave e sentindo seus lábios molhados encostados nos meus.

Um último olhar. Um último abraço. Um último beijo. Até a escuridão desaparecer com tudo.

Sinto que o nosso feliz para sempre está próximo.

Sou um velho realizado, feliz e estou satisfeito.

Eu vivi por amor e agora morrerei com ele.