Monomania escrita por Giullia Lepiane


Capítulo 1
Más Notícias


Notas iniciais do capítulo

Só um capítulo. Boa leitura! Eu espero que gostem.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/359842/chapter/1

Fazia meses que não chovia daquele jeito.

Os raios que estouravam no céu faziam, por um segundo, a noite ficar mais clara que o próprio dia, e os trovões que retumbavam em seguida só não pareciam tão altos por causa do barulho da chuva, que caia meio de lado, empurrada pelo vento forte, que também era possível ser ouvindo uivando fantasmagoricamente, dando um quê de filme de terror àquela noite sombria e fria.

Mal sabiam os mortais, entretanto, que na verdade o terror todo havia acabado há mais de uma semana.

O titã Cronos, que depois de milênios preso no Tártaro quase assumira o poder novamente, fora derrotado. Todos os semideuses mortos na guerra contra ele já tinham sido devidamente homenageados e estavam nos Campos Elísios agora. O Olimpo estava sendo reconstruído, e o Acampamento Meio-Sangue também estava passando por reformas, com chalés para os filhos dos deuses menores como Nêmesis, Hipnos e Nike sendo acrescentados, e tudo rapidamente voltando ao normal.

Mas para o deus que, apesar das adversidades do tempo ruim, estava caminhando pelas ruas, preferindo sentir a chuva gelada a usar seus poderes divinos para manter-se seco, ainda havia mais uma questão a ser resolvida. A mais dolorosa de todas, que por esta razão fora deixada por último por ele.

Ele sentiu seu celular vibrar em seu bolso, mas o ignorou solenemente. Afinal, não era como se ele não houvesse avisado Zeus de que, pela primeira vez em séculos, ia tirar uma folga. E nem ia ser uma folga de verdade: Ele só queria uma ou duas horas para fazer algo que lhe era necessário.

E Zeus não pudera negar-lhe isso, porque era um tempo que Hermes precisava e merecia. Que outro deus trabalhava tanto quanto ele? Quem mais tinha a boa vontade de voar de um lado para o outro fazendo entregas para os outros deuses, sem nunca perder o bom humor?

Se bem que ele não se sentia nem miseravelmente bem humorado agora. E, como seu celular não parava de chamar, num gesto mais de impaciência do que de qualquer outra coisa, meteu a mão no bolso e puxou o aparelho. Sem nem conferir quem ligava, o desligou.

Mas logo se arrependeu disso. Ele nunca desligava o celular. Sendo deus dos mensageiros, Hermes sentia seus poderes ligeiramente enfraquecidos quando os outros não podiam manter contato com ele.

Contudo, ao invés de ligar o aparelho de novo, ele deixou que ele se metamorfoseasse em seu caduceu, e no segundo seguinte já o tinha em mãos.

Hermes, tem certeza do que está fazendo?, perguntou-lhe Martha, sem perder tempo.

Brr! Essa chuva está fria!, reclamou George.

Ele não tinha certeza do porquê de ter feito isso. Suas serpentes falavam demais. Era quase como se ele estivesse matando tempo para não precisar entrar imediatamente na casa onde ele acabara de parar na frente.

Oras, mas matar tempo não é algo do seu feitio!, Martha questionou, lendo seus pensamentos.

– Eu sei. – Hermes respondeu, embora não muito contente com o comentário dela.

Mais um raio cortou o céu, porém este não era por causa da chuva. Era quase como Zeus mandando ele se apressar.

Isso não estava ajudando muito. Ninguém dizia para Hermes, o verdadeiro símbolo da velocidade, para se apressar. Chegava a parecer menosprezo.

Você não sabe o que falar para a May, Hermes? É isso?, ela insistiu.

– Eu vou falar a verdade. – Ele falou. Como se fosse simples.

Se não der certo, diga algo sobre ratos! Mulheres adoram ratos!, George aconselhou.

Não mulheres humanas, George.

Qual é a diferença?

Hermes suspirou. Quando as serpentes começavam a brigar, ele honestamente não aguentava.

– Obrigado pela sugestão, George. Eu vou, hm, me lembrar disso. – O deus concluiu. Tomou coragem e permitiu que o caduceu voltasse a ser um telefone- celular. O ligou, e obviamente, ele não estava mais tocando.

Hermes enfiou o aparelho de volta no bolso e seguiu, de cabeça abaixa por causa da chuva, para a casa.

Não bateu à porta ao chegar. Ele havia pedido pessoalmente a May para não deixá-la aberta vinte e quatro horas por dia, portanto sabia que ela estava trancada. Claro que no dia em que ele fizera o pedido, May havia insistido que não podia deixar a porta trancada de jeito nenhum, porque ela sempre esperava Luke voltar para casa com a porta aberta. E então, mesmo que isso tivesse sido quase uma década antes, e o semideus não estivesse morto naquela época, Hermes já sabia que ele não voltaria, de modo que quando ele respondeu que Luke não se importaria de bater na porta quando voltasse, e que um monstro podia invadir a casa com mais facilidade se a porta estivesse aberta, somente a primeira parte era mentira.

Ele segurou a maçaneta e, usando seus poderes, destrancou a porta e entrou no iluminado hall da casa.

E ao entrar, ele deu de cara com ele mesmo. Ou melhor, um bonequinho dele amarrado a um barbante preso ao teto.

Mas isso não o surpreendeu. Hermes bem sabia que May tinha a mania de colocar imagens dele por toda parte da casa. E isso o fazia sentir meio culpado, por ficar sem visitá-la por tanto tempo.

Porém, era tão difícil. Desde a Grécia antiga, ele não tinha lembranças de se sentir tão apaixonado por uma mortal como se sentia por May Castellan. Ela era linda, e uma pessoa incrível.

E Hermes sabia o que aconteceria com ela se tentasse assumir o lugar do Oráculo no acampamento, sendo que este havia sido amaldiçoado por Hades, mas não fizera algo para impedi-la. Não pudera fazer algo para impedi-la, já que deuses não podiam se meter nas questões dos humanos. Mesmo esse deus sendo Hermes e essa humana, May.

Por culpa da maldição, ela enlouqueceu irreversivelmente. E ele, se sentindo terrivelmente culpado, parou de visitá-la, como fazia anteriormente com frequência.

E o filho deles, Luke, que na época era apenas um bebê, fugiu de casa alguns anos mais tarde, deixando-a tão só. Eternamente fadada a colecionar objetos que a lembrasse de Hermes e a preparar lanches para quando o filho supostamente voltasse.

Luke estava morto agora, embora ela não soubesse. E Hermes fora até lá justamente para informá-la, pois por mais dolorosa que a notícia fosse, ela tinha o direito de saber.

– Luke? É você? – Não tardou para o deus ouvir. Uma voz ansiosa, cheia de esperança, seguida do barulho de passos apressados.

May chegou no hall logo depois disso. Ao ver Hermes, ignorando o fato de ele estar completamente encharcado, correu até ele e o abraçou com força.

Diferentemente dele, ela envelhecia. Estava muito diferente de quando ela a vira pela última vez, e certamente mais diferente ainda de quando eles se conheceram. Seus cabelos estavam ficando grisalhos, e seus olhos, cansados, mas não menos brilhantes. Estava muito bem para uma mulher de quase cinquenta anos, todavia.

– Boa noite, May – Hermes cumprimentou, retribuindo o abraço por um instante, mas logo a afastando com delicadeza. Ele viera para partir o coração dela. Não merecia aquele afeto.

– Que bom que você veio me visitar! – Ela comemorou, sem se abalar com o afastamento. Sorria de orelha a orelha. – O Luke também já deve estar chegando! Eu estava preparando o lanche dele. Ah, você aceita comer alguma coisa?

Hermes permaneceu impassível, fingindo que o nome daquele seu filho não o deixava arrasado.

– Não, May. Eu vim aqui porque preciso te c...

– Então, vou pelo menos fazer chá!

E antes que ele pudesse impedi-la, ela correu para a cozinha. Sem opções, ele a seguiu.

Encontrou o aposento abarrotado de pilhas e pilhas de sanduíches de manteiga de amendoim com geleia e bandejas de biscoito de chocolate, sobre a mesa, a bancada e até as cadeiras. Metade daquela comida toda estava velha e mofada, mas havia também a parte mais recente, menos repulsiva.

Hermes fez a pilha que estava sobre uma das cadeiras se dissolver no ar para poder sentar lá. Então, fez o mesmo com algumas das bandejas sobre a mesa, e apoiou seus braços nela. A cada segundo que passava parecia mais complicado ter a conversa com May.

Ela já começara a ferver a água para o chá, e olhava através da janela de cinco em cinco segundos.

– Está chovendo forte lá fora. – Comentou, uma hora.

– E como.

– Tomara que o Luke volte logo. Não quero que ele pegue um resfriado.

– May. O Luke...

O destino com certeza estava protegendo-a de ouvir a notícia, ou então zombando de Hermes, pois nesse momento uma rajada de vento bateu contra a porta de entrada da casa.

May derrubou o bule com a água quente no chão, e sem se preocupar em desligar o fogão, partiu de novo para o hall, com um grito alegre de “Ele chegou!”.

O deus se levantou da cadeira, desligou o fogo, recolheu o bule e usou seus poderes para secar a água. Em seguida, foi atrás da mulher, que já estava na metade do caminho de volta.

– Era só o vento. Mas mesmo assim, o Luke já deve estar chegando. – Apesar de suas palavras, a falta de entusiasmo em sua voz indicava certa decepção.

Isso foi a gota d’água.

– Escute. – Disse ele, segurando-a pelos ombros – May. O nosso filho nunca mais...

Sua frase morreu por aí.

May estava olhando para Hermes com seus olhos azuis transbordando amor. Ele não conseguia estragar isso daquele jeito. Pisar, sem piedade, na última coisa que ela tinha: a esperança de reencontrar o filho.

Porém ele tampouco podia faltar com a verdade.

Uma nova ideia sobre o que ele deveria fazer fez a expressão séria de Hermes se transformar em uma triste. Ele a soltou.

– Deixe que eu faço chá para você. Pode ser?

Ela aceitou, e ia voltar com ele para a cozinha, mas Hermes a impediu, continuando:

– Não, May, espere na sala. Eu trago quando estiver pronto.

Será que ela tinha noção do quanto significava para ele? Porque, certamente, ele – o deus dos ladrões, dos comerciantes, dos viajantes, dos mensageiros e de todos que utilizam estradas – fazer chá para alguém era mais raro até do que ganhar na loteria. Nem se comparava.

Porque May Castellan era a primeira e talvez a última pessoa por quem ele faria isso.

Mas a parte sobre ele querer ficar sozinho na cozinha para tal coisa foi por um plano maior: Assim que entrou no local, Hermes não foi preparar chá, e sim atrás de uma caneta e um pedaço de papel.

Quando arranjou os dois – num bloco de notas com suporte para caneta preso à geladeira com um imã – rabiscou no papel:

“Querida May,

Sinto muito por não ter conseguido te contar, mas o nosso filho, Luke, morreu.

Sei que você o amava, e eu também. Contudo, estou mais orgulhoso do que triste: Ele morreu como um herói.

Daqui a alguns anos vocês dois certamente se reencontrarão nos Campos Elísios. Vai ficar tudo bem, garanto.

Luke nunca me perdoou por ter sido um pai tão negligente. Mas espero que você possa me perdoar.

Com amor,

Hermes.”

Isso foi tudo o que deu para escrever no pequeno espaço da folha. Entretanto, foi mais do que ele conseguiria dizer diretamente para ela.

Ele dobrou o papel e o colocou no bolso. Preparou o chá, como tinha dito que faria, e depois levou uma badeja com o bule e duas xícaras para a sala.

Hermes bebeu junto com May, enquanto a ouvia tagarelar histórias sobre o Luke, sem, no entanto, responder. Parecia que aquela carta em seu bolso pesava quinhentas toneladas.

Como qualquer deus que se preze, ele sempre se gabara de sua imortalidade. Mas morrer e poder ficar com May – quando esta partisse – e Luke nos Elísios pela eternidade de repente lhe parecia algo tão alegre.

Bom, talvez ele estivesse sentimental demais naquele momento. Quem poderia culpá-lo? De todos os seus milênios de vida, os últimos anos foram os mais difíceis.

E Hermes continuaria a ser o mesmo deus prestativo e bem-humorado que sempre fora, porque simplesmente era o jeito dele de ser. Porém, como todos, ele podia se machucar às vezes.

– May, eu tenho de ir agora. – Ele declarou depois de algum tempo. Deixou sua xícara na bandeja onde trouxera o chá e se levantou.

Ela pareceu arrasada.

– Por quê?

– Trabalho. – Não era mentira. Já estava mais do que na hora de voltar às entregas.

– Você não vai nem esperar o Luke voltar?

– Não, May. Não vai dar. – Hermes respondeu com a voz travada. Também não era mentira, de qualquer forma.

– E você vai vir aqui mais vezes, não vai?

– Vou ver o que eu posso fazer – E eis que finalmente ele mentiu.

Ele amava May. Mas não conseguiria passar de novo por toda essa dor que sentia só de olhá-la.

Ela se levantou para abraçá-lo, sem saber que seria pela última vez, e Hermes dispensou-a quando se ofereceu para acompanhá-lo até a porta.

May pegou o bule e as xícaras e voltou com eles para a cozinha. Não precisava ser muito inteligente para adivinhar que ela ia continuar a preparar comida para Luke, agora. Acreditando de verdade na volta dele.

E Hermes seguiu para o hall de entrada. Uma vez sozinho lá, tirou a carta do bolso. Leu seu conteúdo mais uma vez, e depois a deixou sobre a mesinha que lá ficava, sob inúmeros porta-retratos com a foto de Luke.

Mais cedo ou mais tarde, May iria achá-la ali, e lê-la. Mas o que acharia disso era difícil supor. Hermes mal sabia se ela iria acreditar no que lesse.

De qualquer maneira, a missão dele estava cumprida. Ele fizera o que era necessário.

Saiu, mais uma vez, para a noite chuvosa. Tirou o celular do bolso, e o transformou em seu caduceu.

Viu só, Hermes? Não foi tão difícil assim!, Martha logo disse.

E você nem precisou recorrer aos ratos!, completou George, assim como Martha tentando animá-lo.

– Não mesmo, não é? – Hermes falou, distraído, enquanto se afastava da casa, mas ainda olhando para ela sobre o ombro, ao mesmo tempo em que Martha voltava a implicar com George:

Eu já te falei um milhão de vezes, George. Mulheres humanas não g...

Que seja. Eu estou com fome.

Você sempre está com fome.

De alguma forma, o animava ouvir suas serpentes brigando. Hermes estava se sentindo sozinho, e era bom saber que elas estavam lá. E nunca o abandonariam.

– Vocês querem ratos? – Perguntou ele, os interrompendo. A resposta positiva não veio apenas de George. – Tudo bem. Depois eu dou ratos para vocês.

Uhu! Você é o melhor, Hermes!, George elogiou.

Com certeza!, concordou Martha.

– Eu sei, seus puxa-sacos. – Ele disse. Não podia fazer mais nada por May ou por Luke. Pelo menos, então, iria fazer por quem podia.

Não só pelas serpentes. Talvez ele pudesse fazer algo para os seus filhos. Afinal, Luke não ficara tão revoltado com ele porque ele não dava a devida atenção? Hermes podia tentar impedir que isso acontecesse de novo.

Claro que, em sua função de deus, nunca poderia levar um filho para tomar sorvete no shopping, ou para dar uma volta no aquário. Mas ele poderia ver o que podia fazer. Podia passar no Acampamento Meio-Sangue imediatamente, se quisesse.

Acho melhor você contar para Zeus que vai precisar de mais umas horinhas de folga, primeiro., Sugeriu Martha.

Hermes sabia disso. Mas era por uma boa causa. Ele não se importaria de ir falar com Zeus, mesmo sabendo que ele ia achar isso uma bobagem e insistir que não.

– Maia! – Falou, quando já estava razoavelmente longe da casa, e decolou voo.

Ia direto para o Olimpo, falar com Zeus.

As coisas iam ser diferentes agora.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada por lerem! E se puderem comentar, ficarei muito feliz.
Hugs and kisses,
Giullia Lepiane.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Monomania" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.