O Último Ato escrita por Liv Marie


Capítulo 11
Parte 11


Notas iniciais do capítulo

Não existem desculpas que possam ocupar a lacuna dos meses em que essa história permaneceu intocada. Mas nunca esquecida. Agradeço aos comentários que recebi nesse meio tempo, muitos deles incentivando a finalização desta história. E desta vez, procurando me redimir para com os leitores que não desistiram, posto não apenas o mais longo dos capítulos, como aviso que o próximo será o final - que já está escrito e será publicado até o fim dessa semana. Espero que gostem, quem ainda se aventurar, terá muito o que ler.

Liv



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Parte 11

A chama bruxuleia na mão de Regina, reluzindo de forma quase sobrenatural em suas feições, e sua visão apenas, é o bastante para provocar arrepios em Emma.

Para sua surpresa, não é exatamente a mágica o que causa o embrulhar de seu estômago, ou o fato de que Regina evidentemente recuperou seus poderes.

Não, o que abala Emma é o completo vazio que ela encontra nos olhos escuros da mulher que sempre bateu de frente com ela movida por um ardor incomparável.

A Regina que Emma conhece luta com unhas e dentes, ímpeto e fúria.

Mas não desta vez.

Nesse momento, tudo o que Emma consegue enxergar é um buraco negro que parece ter sugado tudo o que Regina tinha dentro de si, deixando apenas seu corpo para trás e ela não pode deixar de pensar que diante de si, encontra-se afinal, a tão temida Rainha Má.

É a primeira vez que Emma a enxerga em Regina. E ela não gosta do que vê. Nem um pouco.

“Eu deveria ter sabido que mais cedo ou mais tarde você iria aprontar uma dessas.” Emma constata com frieza e a secura em seu tom promove um pesado contraste ao dar lugar ao silêncio de sua estupefação.

“Eu não sei o que você esperava, minha querida.” O termo carinhoso é cuspido com desprezo, o sorriso de Regina tão duro que chega a deixar marcas.

Emma se pergunta se ele fere à ambas com igual intensidade.

Provavelmente não.

“Eu queria acreditar que existe mais em você, Regina. Mas acho que estava errada afinal. Esta parece ser mesmo sua única e real faceta.”

O sorriso de Regina estremece, mas não falta. Sua resposta sendo forçada entre dentes cerrados, cujo aspecto remete às presas expostas de um animal ameaçado.

“Eu sou o que sou, Xerife. E ao contrário dos diversos personagens que cruzam seu caminho pelas ruas desta cidade, maldição ou não, eu sempre permaneci fiel ao meu papel.”

A declaração de Regina não é apresentada como uma defesa, uma desculpa ou mesmo uma confissão. Trata-se apenas de uma constatação de fatos, sua voz adquirindo uma qualidade distante de dissociação. Então, ela pincela seu comentário com o desprezo que lhe é familiar e mesmo confortável. “Agora, no que você escolhe ou não acreditar... Isso, francamente, não poderia me importar menos.”

“E quanto ao que o Henry acredita?”

É um golpe baixo e Emma sabe disso. Uma tentativa desesperada em eliciar algum tipo de emoção em Regina. É também, uma tentativa mesquinha de retaliação e nada mais senão parte da habitual coreografia estabelecida pelas duas desde seu primeiro encontro.

Infelizmente, o efeito desejado não é alcançado.

“Henry sabe melhor do que ninguém quem sua mãe é realmente. Na verdade, ele mesmo não hesitou em me dizer isso muitas vezes.”

“Sim, mas isso era antes. Agora, ele acredita que você mudou.”

“Crianças estão fadadas a cometerem erros, Miss Swan. Pergunte à sua mãe, ela ainda está pagando pelos dela. Agora o que eu não consigo compreender é: qual é a sua desculpa?”

“Eu não sei.” Emma responde honestamente e nesse momento sua decepção não poderia estar mais evidente, tal qual uma ferida exposta. Dura apenas um segundo, talvez menos. Logo, Emma reveste sua armadura, sua superfície blindada pela sua raiva. “O que eu sei é que não vou permitir que Henry descubra a verdade da maneira mais difícil. E que não vou deixar que você o transforme em uma de suas vítimas. Eu vou embora, e ele vai comigo. E quanto a você? Você vai ficar bem longe de nós!”

“Você realmente acha que é capaz de proteger o meu filho de mim?”

A pergunta de Regina não pousa como uma ameaça, tanto quanto o equivalente a uma franca curiosidade. Incapaz de captar a nuance do que lhe está sendo dito em virtude de seu agitado estado de espírito, Emma não hesita em combatê-la.

“Pode ter certeza que sim.” Ela rebate com ferocidade apenas para lhe dar as costas e, intempestivamente, sair pela porta. O som de seus passos duros, pontuando a determinação de sua partida.

Inerte, Regina apenas a observa, seus olhos perdendo o foco entre lágrimas que ela segura à custa do que resta de suas energias. “Pelo bem de nosso filho, eu espero que você esteja certa, Emma.”

Então, em sua mão, a chama oscila e se desfaz.

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Talvez sejam os hormônios da pré-adolescência começando a se manifestar ou talvez ele sempre tenha sido assim, Emma não teria como saber ao certo. O fato é que Henry tem um sono mais do que pesado, o que pode ser um pé no saco quando ela tem que acordá-lo cedo para a escola, mas que chega a ter suas vantagens quando Regina e ela têm embates homéricos – ou mesmo quando os embates ainda eram de outra natureza.

Em todo caso, a questão é: Henry dorme como uma pedra. E sendo assim, ele não nota quando Emma entra em seu quarto, no meio da noite, toda sua raiva e frustração anunciadas pelas suas juntas como estalidos de um iminente curto-circuito ou mesmo uma tempestade de raios.

A princípio, sua intenção é acordar o garoto, enfiá-lo em seu carro e carregá-lo para o lugar mais distante possível. Califórnia é uma possibilidade que a agrada, embora conhecendo os estranhos gostos de seu filho a essa altura, Emma desconfie que ele viesse a preferir Washington. Ou quem sabe eles poderiam se aventurar em terras estrangeiras como o Canadá, embora o México seja mais realista na ausência de uma documentação que coloque a custódia de Henry em seus poderes. Contudo, quando seus olhos recaem sobre a figura adormecida do garoto, tais possibilidades perdem por completo seu apelo.

Como esperado, Henry está apagado, seu rosto amassado contra o travesseiro enquanto um fio de saliva se insinua pelo canto de sua boca e seus cabelos não passam de um tufo escuro de fios emaranhados. Acima de tudo, ele parece estar em paz. Tranqüilo e seguro de uma forma que Emma não é capaz de notar quando ele está acordado, o que se revela suficiente para que o senso de urgência de Emma pare de emitir sinais de alerta vermelho e ela se permita parar e respirar – o que ela ainda está fazendo quando sua atenção é chamada por outros detalhes aparentemente menores.

Ele está usando pijamas. Não uma combinação de camisetas velhas e grandes demais, ou moletons desbotados e curtos demais, mas o tipo que Regina compraria (ou ao menos o tipo que ela evocaria com um piscar de dedos). O tom é azul escuro, o material parece macio ao toque e, embora a calça esteja realmente ligeiramente curta, Emma não pode deixar de pensar em uma mãe que coloca as necessidades de seu filho em primeiro lugar. Mesmo as mais simples, de aparência quase insignificante.

Assim, se mesmo sendo uma vilã de contos de fadas Regina foi capaz de proporcionar isso ao seu filho, Emma de repente se vê sob a obrigação de fazer o mesmo. Por Henry. Porque ele não merece nada menos do que isso. Então, mediante semelhante realização, ela respira fundo e deixa escapar um longo e cansado suspiro enquanto seu corpo encontra o apoio da parede e do chão acarpetado.

Sua decisão tomada sem nenhum real esforço.

Ela lhe dará mais uma noite de sono antes de virar seu mundo de cabeça para baixo mais uma vez. A mudança é para sua proteção, Emma está certa disso, de modo que mais uma noite na casa que Henry conhece como lar, enquanto ela se mantém alerta e em vigília, é tudo o que ela pode oferecer realmente.

E ainda que não demore a que o sono a faça de refém, sua resolução não se abala nem mesmo em seus sonhos.

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“Emma, tá tudo bem?” A voz de Henry soa distante a princípio. Um eco dentro de uma poderosa dor de cabeça – ou costas – Emma não é capaz de distinguir de imediato.

“Droga, isso dói como um filho da--” Ela abre os olhos e se depara com curiosos olhos azuis analisando atentamente seus gestos. “Eu tô ótima.”

“Por que você estava dormindo no chão do meu quarto?”

“Eu não estava dormindo, apenas descansando os olhos.” Emma responde evasivamente, buscando ganhar tempo enquanto se recupera. Pelo olhar que figura no rosto de seu filho, sua tentativa não deu certo. “Eu precisava falar com você.”

“E não dava para você ter esperado até de manhã? Por que você não me acordou então? Aconteceu alguma coisa?”

“Calma aí, garoto. É cedo demais e eu ainda não estou exatamente funcional, ok? A propósito, que horas são?”

“Dez pra sete.” Ele responde sem que a preocupação deixe seus traços e Emma estremece ao ter suas desconfianças confirmadas. É cedo demais para que ela consiga raciocinar claramente, ainda mais diante do que a espera.

“Bem, dizem que não há tempo como o agora.” Ela murmura, mais como um incentivo para si mesma. “Garoto, a Regina e eu tivemos uma conversa e chegamos à conclusão que é tempo de as coisas entrarem de novo nos eixos.”

“Como assim?” Henry franze o cenho, sua confusão evidente. “O que isso significa?”

“Que você precisa arrumar suas coisas porque nós estamos voltando para casa. Bem, para o Loft da Mary-Margaret, pelo menos até que eu encontre outro lugar mais definitivo.”

Henry não responde de imediato, assimilando as informações que Emma acaba de despejar em seu colo. A decepção, entretanto, logo transparece em seu rosto, ao que Emma imediatamente antecipa. “Sinto muito, garoto.”

“Não...” Ele fala baixo, suas mãos se fechando em punhos. “Não!”

“Henry--” Emma tenta argumentar, mas é interrompida pelo rompante do menino.

“Eu não vou à parte alguma. As coisas estão difíceis, mas você mesma disse que isso é só uma fase. Talvez você ache que está tudo bem em simplesmente virar as costas e ir embora, mas eu não vou fazer isso! Você pode ir, mas eu vou ficar!”

“Henry, isso não está aberto para discussões.” Emma tenta se mostrar firme, mas ainda que ela não esteja inteiramente despreparada para a reação do filho, não é fácil ser rejeitada tão categoricamente, especialmente quando ela nunca chegou a ocupar oficialmente esta posição.

“Você está certa, não vou discutir. Não vou a lugar algum e ponto final.”

“Garoto, essa talvez seja uma decisão que você possa tomar quando tiver seus 18 anos e for dono do seu nariz, mas até que isso aconteça você é meu filho e minha responsabilidade, então eu sugiro que você comece a fazer suas malas agora mesmo, porque você não vai perder nem mesmo um dia de escola por conta dessa história toda.”

“Você não pode fazer isso, você nem mesmo é minha guardiã legal!” Henry busca argumentar racionalmente, ainda que não consiga conter seu ultraje.

“Você tá falando sério?” Emma arregala os olhos, sem ser capaz de acreditar no que acabou de ouvir.

Mesmo sem estar inteiramente seguro de si, Henry ergue o queixo desafiadoramente, o que apenas reforça a impressão deixada por quem de fato o criou todos esses anos.

“Você abriu mão dos seus direitos quando me deu pra adoção.”

“Quer saber? Acho muito engraçado você falar sobre direitos agora, Henry. Especialmente porque no ano passado, quando você simplesmente se mudou de mala e cuia para a casa dos meus pais isso nunca foi um problema. E, até onde eu me lembro, você certamente não usava esse discurso quando bateu à minha porta em Boston pela primeira vez.”

Um pesado silêncio recai sobre os dois enquanto mãe e filho se encaram, olhos nos olhos, com igual teimosia e determinação.

“Alguém pode me explicar o que está se passando aqui?” A presença de Regina pega os dois de surpresa, quebrando um pouco da tensão que paira no ar.

Emma é a primeira a se manifestar.

“Eu estava explicando ao Henry que você já está suficientemente recuperada e que é hora de voltarmos para casa.”

As palavras de Emma são enunciadas com firmeza, como se ela estivesse desafiando Regina a contestá-la, o que para o espanto e desapontamento de Henry principalmente, não acontece.

“Muito bem, qual é o problema então?”

“Mãe!” O menino exclama e sem esmorecer, Regina acrescenta pondo um fim à discussão.

“Não esqueça de levar seus blusões de lá, Henry. Você sabe como as temperaturas começam a cair à noite nessa época do ano.”

Assim, sem mais, Regina ajusta o roupão que está vestindo sobre seu pijama e se recolhe em seus aposentos mais uma vez, deixando Henry e Emma à sós.

Ainda que o apoio de Regina – ou mais precisamente sua falta de objeção – tenha colocado um fim à discussão em seu favor, a expressão que Emma reconhece no rosto de Henry anula todo e qualquer senso de satisfação que poderia existir.

Arrasado, o garoto puxa uma mala de baixo da cama e começa a atirar desordenadamente seus pertences dentro dela. Então, desajeitadamente, Emma se aproxima com a intenção de oferecer ao filho algum consolo. Porém, assim que sua mão toca o ombro do menino, a mesma é repelida com um gesto brusco e uma completa ausência de palavras, silêncio este que se estende mesmo quando o pequeno carro amarelo de Emma vira a esquina, a mansão de Regina a se perder de vista.

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Dizer que o maior desejo de Snow White nos dias de hoje é a visão de sua filha e neto entrando em sua casa para ficar permanentemente não é nenhum exagero. É o que ela mais anseia, a chance de ter sua família reunida mais uma vez, sua ideia de um final feliz.

Ainda assim, quando acontece de fato, as coisas não são bem do jeito que Snow havia vislumbrado.

Para começo de conversa, nenhum dos dois – mãe ou filho – parece feliz com a mudança. O que Snow imagina se dar por motivos diversos, mas que nenhuma das partes se dispõe a elaborar realmente. Entretanto, o que mais preocupa Snow é o fato de Henry se recusar a falar com Emma, um comportamento sem precedentes na relação dos dois até então.

A princípio – e sob sugestão de Charming – Snow tenta lhes dar algum espaço. Assim, ela engole perguntas, comentários e qualquer questionamento sobre os eventos que resultaram no retorno de sua filha e neto ao Loft. É difícil, um desafio realmente, e para tanto Snow se esforça ao máximo para retomar a rotina a qual sua família se acostumou no curto período em que residiram juntos.

Entretanto, diferente do ano que se passou, agora as refeições são feitas em um silêncio desconfortável, Emma trabalha horas demais e Henry passa a maior parte do tempo usando seu PSP como um escudo para qualquer diálogo que não seja absolutamente necessário. De modo que, na terceira noite depois de o retorno de Emma, quando Henry já pediu licença após mal ter tocado sua comida e Charming foi cumprir sua rota de vigília enquanto vice-xerife, Snow coloca a filha contra a parede.

Em sua defesa, sua abordagem é consideravelmente suavizada pelo fato de ela estar oferecendo a Emma uma xícara de chocolate quente com canela quando ela parte para o ataque. Ainda assim, basta um rápido olhar para que Emma enxergue suas intenções.

“Mary Margaret, por favor, não!”

“O quê? Uma mãe não pode oferecer a sua filha uma bebida quente em uma noite fria?”

“Eu não vejo problema nisso. A não ser pelo fato de nós duas sabermos que não é isso o que você está fazendo. E que o seu aparentemente inofensivo gesto não passa de um pretexto.” Com um sorriso resignado, Snow se rende sem oferecer resistência.

“Estou preocupada, Emma. Eu sei que você não quer falar sobre o motivo pelo qual você finalmente resolveu voltar para casa, mas nós não podemos simplesmente continuar fingindo que tudo está bem.”

“Por que não?” Emma choraminga fazendo uma careta.

“Porque claramente tudo não está bem. Não para você, e especialmente, não para o Henry.” A menção ao filho faz com que Emma se endireite em sua cadeira, adotando uma postura mais séria.

“Bem, eu já tentei de tudo com o Henry. Honestamente, não sei mais o que fazer.”

“Querida, eu gostaria que você se sentisse a vontade para se abrir comigo. Eu não sei se posso ser de alguma ajuda, mas tenho a impressão de que talvez você fosse se sentir mais leve se não tivesse que carregar todo o peso sozinha.”

“Eu também gostaria, mas não dá pra fazer isso.”

“Por que não? Isso nunca foi um problema para você quando eu era somente a Mary Margaret. Por que nós não podemos tentar novamente?”

“É complicado demais.” Emma deposita os cotovelos sobre a mesa e se põe a massagear suas têmporas, o cansaço marcando suas feições.

“Mas não tem que ser, querida. Mary Margaret foi uma parte tão grande de mim por tanto tempo... Estou certa de que posso canalizá-la por tempo suficiente para que você possa desabafar, se é isso o que você quer.”

“Como a Whoopi Goldberg em Ghost?” Emma franze o cenho, sem disfarçar sua incredulidade.

“Quem?” Snow a encara com uma expressão vazia.

“Esquece.” Emma revira os olhos e retoma o assunto de seu interesse. “Você realmente faria isso?”

“Querida, não há nada que eu não faria por você.”

Emma reflete por um instante, tentando vencer sua própria incredulidade.

“Ok, então.” Ela se dá por vencida, inspirando profundamente. “A razão pela qual eu decidi voltar é porque eu tive uma discussão séria com a Regina.”

Mary Margaret absorve o que lhe está sendo dito cuidadosamente, antes de responder. “Bem, qual é a novidade? Quer dizer, você e a Regina tem se atacado desde o momento em que você colocou os pés em Storybrooke.”

“Não é a mesma coisa.” Emma responde vagamente, ciente de que precisa elaborar, mas editando a história de forma a não revelar o que não é de seu interesse à Mary Margaret ou, principalmente, Snow. “Depois da quebra da maldição, Regina tentou provar ao Henry que ela podia ser uma pessoa diferente. E quando ela matou a Cora, bem, ele passou a acreditar nela de verdade. E acho que eu também.”

“Então o que aconteceu?”

“Ela estava mentindo. Todo esse tempo ela estava mentindo. Para o Henry, para mim... Talvez até para si mesma.”

“Mas o que faz você dizer isso?”

“Ela mesma disse. Mais do que isso, ela me mostrou quem ela é de verdade. Foi então que percebi que não posso deixar o Henry crescer ao lado de uma pessoa tóxica como ela. Vai saber o que isso faria com ele... Quer dizer, eu tenho certeza que Regina jamais arrancaria o coração dele, mas isso não significa que ela não tenha a capacidade de parti-lo, entende?”

O silêncio com o qual Snow recebe a confissão de sua filha não passa despercebido por Emma, que impacientemente demanda uma resposta. “O que você está pensando?”

“Emma, você disse que a Regina lhe mostrou algo que a fez ver sua real natureza. O que ela fez?”

Snow parece autenticamente intrigada, o que apenas torna Emma mais relutante em responder. “Por que eu tenho a impressão de que não é a minha amiga quem está fazendo essa pergunta, mas a minha mãe?”

“Emma, apenas me responda.” Emma hesita, mas por pura curiosidade acaba cedendo.

“Ela usou seus poderes.”

“Ela fez o qu--” A reação de Snow foge ao seu controle momentaneamente, mas diante da expressão surpresa de sua filha, ela consegue controlar seus impulsos e se ater ao trato estabelecido no começo da conversa. “O que ela fez, precisamente?”

“Ela não me atacou, se é isso o que você quer saber.” Emma se apressa em clarificar.

“Mas ela a ameaçou?” Emma analisa os eventos gravados em sua memória com cuidado antes de oferecer uma resposta conclusiva.

“Sim e não, eu acho.”

“O que isso significa?”

“Bem, você conhece a Regina. Ela sempre teve essa veia dramática, especialmente em disputas calorosas. Mas dessa vez não foi assim. Ela não ameaçou acabar comigo e a minha família. Não houve acusações ou mesmo qualquer menção a derramamento de sangue ou a colocar um fim a minha existência. Ela apenas acendeu uma chama, como em uma daquelas aulas de “mostre e conte”, como se ela quisesse apenas deixar bem claro quem ela é e o que ela é capaz de fazer.”

“Hmm.” Snow parece refletir a respeito. “E quando você anunciou que iria embora levando o Henry consigo, qual foi a reação dela?”

“Na verdade essa parte foi a mais surreal de todas. Ela simplesmente... deixou acontecer.”

“Emma, você está dizendo que a Regina lhe entregou o Henry de bandeja e que, ao mesmo tempo, ela não mudou? Você não consegue ver a contradição?” Snow se mostra abertamente impressionada, a narrativa dos eventos levantando suas suspeitas. “Olha, eu sei que prometi que não iria me manifestar enquanto Snow, mas querida, eu preciso lhe dizer: Essa não é a Regina que eu conheci. Você tem certeza de que ela não estava tramando nada?”

“Tenho.” Emma confirma enfaticamente, olhos escuros e vazios gravados em sua memória. “A não ser que Regina estivesse tramando algo contra ela mesma...”

“Bem, eu não ficaria surpresa se esse fosse o caso.” O comentário fortuito de sua mãe, por algum motivo incomoda Emma.

“O que você quer dizer?” Ela pergunta intrigada ao que Snow responde, não sem alguma melancolia.

“Apenas que eu nunca consegui entender como Regina conseguia conviver com todas as coisas horríveis que ela fez. E agora, depois de ter assassinado Cora, é possível que ela tenha chegado a um ponto no qual ela mesma também não saiba.”

“Você acha que ela faria alguma coisa contra si mesma?” Emma indaga, temerosa.

“Você diz para se machucar?” Snow suspira. “Não mais do que o que ela sempre fez, eu suponho... No final, Regina sempre foi sua pior inimiga.”

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Ocultado pela crença geral de que ele está dormindo no andar de cima, Henry escuta furtivamente a conversa entre Emma e Snow, seu coração batendo forte em seu peito. Apesar de tudo o que está sendo dito, ele sabe, com a mesma certeza que carregava de que Emma era a salvadora, que sua mãe tem salvação. E se Emma não está disposta a resgatar sua mãe, Henry está decidido a fazer isso sozinho.

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Emma dorme mal durante a noite. Em seus sonhos, Regina jaz morta em seu mausoléu. Henry chora e Snow também, embora suas lágrimas sejam silenciosas. E quando Emma se aproxima, beijando seus lábios gelados e sem vida, nada acontece. As vozes ao seu redor declarando ser tarde demais.

Em sua cama, Emma desperta com brusquidão, seu coração disparado enquanto o suor frio escorre pela sua nuca e costas. Ao seu lado ela encontra a cama vazia, mas os sons que vem do andar de baixo indicam que ela não está sozinha. Ao descer os degraus da escada, pés descalços que somente então se dão conta da baixa temperatura, Emma se depara com sua família, o que sempre é o suficiente para tranquilizá-la.

Mas não hoje.

“Henry, ao menos termine de comer seu cereal.” Snow insiste pacientemente enquanto come seu iogurte com granola, a figura de Charming, sentado ao seu lado, ocultada pelo jornal aberto à sua frente.

“Eu não quero mais, eles estão empapados demais.” Uma vez que Henry está sentado de costas para a escada, Emma não consegue ver o seu rosto, o que não a impede de visualizar a careta que ele faz ao falar. Seu comportamento, no entanto, não parece perturbar sua avó.

“Não estava assim quando eu servi sua tigela. Talvez você devesse ter comido antes ao invés de ficar se demorando no banheiro.” Entre uma colherada e outra Snow acrescenta. “Além do mais, você precisa comer alguma coisa.”

“Minha mãe diz que esse tipo de cereal não faz parte de uma dieta adequada para um garoto em fase de crescimento.” Emma mal contém uma careta mediante a perfeita personificação de um fedelho mimado oferecida pelo filho.

“Do que você ta falando, rapaz?” Charming coloca o jornal de lado e toma um gole de sua xícara de café. “Esse cereal é o favorito da Emma.”

No instante em que seu pai termina de falar, Emma franze o cenho, antecipando as palavras de seu filho antes mesmo que Henry as diga.

“Eu não estava me referindo a Emma.”

O silêncio que se segue é exatamente o que Emma temia.

“Bom dia a todos.” Ela anuncia sua presença, procurando quebrar o clima embaraçoso que se instaurou a mesa.

“Bom dia, querida.” Snow estampa um sorriso sobre seu estarrecimento de forma quase convincente. “Aceita uma xícara de café?”

“Que tipo de pergunta é essa?” Emma imediatamente recebe a xícara que lhe está sendo oferecida, um desajeitado sorriso acentuando a tentativa de humor em suas palavras.

“Bem Henry, o que você gostaria de comer então?” David se esforça para manter a casualidade.

“Não importa, meu ônibus já está prestes a passar mesmo.” Henry fala se levantando da mesa e ajustando a mochila em suas costas.

“Eu posso levar você, garoto.” Emma oferece, o que faz com que Henry lhe dirija a palavra pela primeira vez em dias.

“Não é necessário. Além disso, eu não quero me atrasar.”

A frieza com a qual ele se dirige a Emma não passa despercebida a nenhum dos presentes, ainda que Snow e Charming evitem qualquer comentário, procurando não se colocar entre mãe e filho.

“Ok, então, tenha um bom dia.” Emma fala sem esconder seu desapontamento, ainda que Henry nada pareça notar, ocupando-se em ajustar o cachecol em seu pescoço e marchar até a porta.

“Adeus.” É o máximo que ele oferece para ninguém em particular antes de bater a porta em sua saída, ao que Snow e Charming trocam olhares significativos.

“Então é assim que funciona quando se tem um adolescente em casa?” Charming comenta com um sorriso amarelo, procurando amenizar o clima.

Emma sorri em resposta, mas seu sorriso não alcança os olhos e dura apenas o suficiente até que sua xícara lhe chegue aos lábios.

“É... Acho que sim.”

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Henry não pega o ônibus para a escola.

Essa manhã, o caminho que ele escolhe percorrer é outro, ainda que igualmente familiar.

Do lado de fora, a casa em que cresceu permanece intocada.

Dentro, as coisas são diferentes.

Onde antes havia claridade e o aroma das flores que rodeiam a casa, Henry encontra penumbra em diversas tonalidades e o ar estagnado de um ambiente cujas janelas e cortinas parecem não terem sido abertas em dias.

Além disso, uma fina camada de pó começa a se acumular sobre os móveis escuros ao passo que, pela janela da sala, Henry é capaz de enxergar a macieira de sua mãe abandonada aos cuidados do tempo. Tal visão apenas aumentando sua aflição.

“Mãe?” Ele chama esperando ouvir sua voz ou ao menos receber alguma indicação de sua presença, mas recebe apenas um silêncio perturbador enquanto resposta.

Ele insiste então, seu tom de voz se elevando de acordo com o grau de sua ansiedade. “Mãe!”

O segundo andar se encontra ainda mais escuro, com todas as portas fechadas impedindo que qualquer feixe de luz entre sem ser convidado. Entretanto, conhecendo este percurso de olhos fechados, Henry apenas se deixa guiar por seus passos até o quarto de Regina, da mesma forma que fez muitas noites em sua infância, sempre que algum pesadelo particularmente desagradável o afligia.

Ao abrir a porta do quarto lentamente, Henry encontra a figura de sua mãe submersa sob as cobertas, seus cabelos negros e, por ora, compridos, o único indício que permite a sua fácil identificação. Mas diferentemente de todas as vezes em que seu mais leve passo a colocou em alerta, desta vez Regina sequer se move, ignorando por completo a presença de seu filho.

Assim que enxerga os frascos alaranjados de comprimidos sobre o criado-mudo, fica evidente para Henry o motivo do não-característico sono pesado de sua mãe.

Preocupado com seu estado, o menino se aproxima, mas temendo assustá-la, seu toque, bem como sua voz, é oferecido com a mais leve suavidade. “Mãe...”

Regina parece voltar a si então por um breve instante, somente para que seus olhos vidrados enxerguem através de Henry antes de retornar à inconsciência logo em seguida, sua respiração adotando o ritmo de um manso ressonar.

Henry encontra-se então sem saber o que fazer.

Em toda sua vida ele não consegue se lembrar de jamais ter visto Regina doente, aparte as semanas em que ela passou internada após o incidente com Cora. Agora, com uma angústia borbulhando em seu íntimo, ele mal é capaz de reconhecer a mulher que tem diante de si.

Ocorre que, mesmo em sua confusão, uma certeza sua que não se abala é a de que ele deve fazer alguma coisa, qualquer coisa. O que quer que isso seja, se passando por um detalhe desimportante.

Então sua mãe murmura algo em meio ao sono, algo que Henry seria capaz de jurar ser o seu nome, e seguindo seus mais básicos instintos, ele abandona sua mochila ao lado da cama, descalça seus sapatos e deita ao seu lado.

Henry não se atreve a tocá-la, temendo perturbar o descanso que lhe parece tão necessário, mas em um sussurro delicado, sua voz busca assegurar-lhe. “Eu estou aqui agora mãe. Eu estou aqui com você.”

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Não demora a que os efeitos da medicação que tem tomado para dormir comecem a passar, guiando Regina de volta à névoa de sua consciência.

Embalada pela escuridão de seu quarto, Regina já não se lembra qual foi a última vez em que deixou sua cama e a fronteira entre sonhos e realidade, lhe parece a cada despertar, mais tênue.

Talvez seja por isso que, ao ver Henry deitado ao seu lado, ela acredite estar sendo visitada por um agradável sonho. A ilusão, contudo, se desfaz com um profundo bocejar e a forma como Henry coça o nariz em meio ao sono, um costume seu que vem sendo replicado desde a sua mais tenra infância.

O gesto simples é o suficiente para fazer o coração de Regina oscilar, a angústia que a acomete rangendo em seus ossos. Porque a verdade é que Regina não sabe qual é o seu maior temor: que a cena diante de seus olhos se desfaça no ar.

Ou não.

Como se estivesse sentindo o seu conflito, Henry escolhe esse momento para despertar, seus olhos azuis e sonolentos a recebendo com o mais autêntico dos sorrisos.

“Você acordou.” A constatação dele escapa em meio a um segundo bocejo.

“Henry.” Regina se vê incapaz de formular uma resposta lógica, o nome do filho escapando de seus lábios involuntariamente. “Você está aqui?”

Henry sorri novamente, procurando a mão de Regina com a sua, em um gesto afetuoso, para então oferecer a confirmação de sua presença em palavras. “Eu vim ver como você estava.”

A confissão arranca um sorriso dilacerado de Regina, sua resposta custando a encontrar seu caminho para fora. “Você não deveria... eu estou bem.”

Ele não contesta a afirmação de sua mãe com palavras, mas com um perfeito arquear de sobrancelhas que não poderia emoldurar com maior perfeição os traços herdados de sua mãe biológica, o que provoca um desconforto imediato em Regina.

“Eu estou apenas cansada, provavelmente não passa de um vírus qualquer.”

O garoto não parece remotamente convencido, de modo que Regina opta por uma tática diferente.

“E quanto a você? Não deveria estar na escola?” Ela questiona averiguando as horas junto ao relógio que se encontra sobre seu criado-mudo.

“Hoje é sábado.” Henry responde sem hesitar, a mentira servida como álibi, mas também como uma maneira de averiguar o real estado de sua mãe.

“Oh.” Regina aceita a palavra do filho, ligeiramente desconcertada. “Os remédios para gripe devem ter me feito perder a noção dos dias...”

A desculpa oferecida é insípida e Regina sabe disso, de modo que, antes que Henry tenha a chance de questioná-la, a preocupação evidente em seu rosto, ela muda a direção do assunto. “Então me diga: A Emma sabe que você está aqui?”

“Não exatamente.” Ele admite reticente.

“Henry, você está crescido demais para continuar fazendo essas coisas.” Ela o repreende, sentando-se na cama.

“Eu não sabia que tinha um limite de idade pra isso.”

“Não banque o engraçadinho comigo, Henry.”

“Eu não estava tentando.” Ele justifica e dessa vez sua explicação não poderia ser mais sincera. “Eu esperava que nós pudéssemos tomar café da manhã juntos.”

Regina avalia seu perfil com cuidado, procurando qualquer sinal de auto-incriminação, mas para a sorte de Henry, ela não possui os mesmos talentos de sua outra mãe.

“Bem, nós podemos arranjar isso.” Regina lhe assegura e se prepara para sair da cama, mas temendo uma súbita fraqueza, pensa melhor. “Eu só preciso de alguns instantes para me refrescar. Por que você não vai à frente e coloca a mesa, huh?”

“Ok.” O garoto se dispõe prontamente, o som de seus passos pesados oferecendo uma estranha sensação de conforto à Regina.

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Durante a preparação do café, tudo o que Regina consegue sentir são os olhos de Henry acompanhando o menor de seus gestos, o que é bastante desconcertante, especialmente quando suas mãos trêmulas derramam suco sobre a toalha de mesa quando ela se dispõe a servir-lhe mais um copo.

Para seu alívio, Henry se abstém de fazer qualquer comentário a respeito.

“Como vai a escola?” É uma pergunta neutra, parte de um script há muito tempo memorizado.

“Normal, eu acho. No momento estamos fazendo um projeto de ciências que é até interessante.” Henry toma seu suco em grandes goles.

“E você está gostando?”

“Na verdade, eu acho que prefiro história.” Ele comenta despretensiosamente e é recompensando com um sorriso apertado.

“Eu deveria ter imaginado.” A conversa morre e dessa vez Regina se ocupa em mordiscar um pedaço de sua torrada distraidamente, seu apetite quase inexistente apesar de ela não se recordar de qual foi a última vez em que fez uma refeição completa.

Ah sim, antes da briga com Emma.

O olhar atento de Henry mais uma vez a traz de volta ao presente.

“Henry, depois que terminarmos, eu gostaria que você ligasse para Emma e pedisse para ela vir lhe buscar.”

A sugestão de Regina não é exatamente o que Henry gostaria de ouvir, mas controlando seus impulsos ele não contesta.

“Ok.” Ele brinca com a comida em seu prato, pensando em uma forma de prolongar sua estadia sem necessariamente se indispor com a mãe. “Mas antes, você acha que poderia talvez cortar o meu cabelo?”

“Oh.” Trata-se de um pedido simples, mas que sem aviso, desperta um turbilhão de lembranças e emoções que Regina não está preparada para digerir. “Eu não sei, Henry. Faz tanto tempo desde a última vez que fiz isso. Talvez seja melhor você ir ao barbeiro da cidade. Estou certa de que Emma ou mesmo um dos Charming não se importaria de acompanhá-lo.”

“Mas eu não quero ir a nenhum barbeiro. Eu quero fazer do jeito que a gente sempre fez.” Henry insiste teimosamente e então foca seus imensos olhos azuis em Regina. “Por favor?”

“Está bem.” Regina se vê consentindo, apesar de seus receios. “Faremos isso após o café. Mas depois você vai para a sua casa.”

“Eu já estou em casa.” O menino replica sem pestanejar.

“Você entendeu o que eu quis dizer.” Regina revira os olhos, embora o comentário não a incomode realmente.

Decidido a não abusar de sua boa sorte, Henry retoma sua refeição com entusiasmo, um sorriso vitorioso plantado em seu rosto. Ao passo que Regina, por sua vez, sentindo um nó de ansiedade pesar sobre seu estômago, perde o fio de apetite que lhe restava.

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Sentada em sua mesa no Departamento de Xerife, sua xícara de café esquecida sobre formulários que deveriam ter sido preenchidos a mais tempo do que Emma se dá ao trabalho de lembrar, ela tem seu olhar preso em um ponto infinito qualquer, seus pensamentos muito longe de onde ela está.

É seu pai quem a encontra assim.

“Hey,” David a cumprimenta com uma voz mansa, de modo a não sobressaltá-la, o que ameniza a reação de Emma apenas por um átimo.

“Hey!” Ela responde de imediato como se estivesse sendo pega em flagrante, apesar de não estar cometendo nenhum delito aparente. “Você está aqui cedo. Achei que pegaria apenas o turno da tarde hoje.”

“Eu vou.” David confirma suas suspeitas com um sorriso que indica uma bagagem maior por trás de suas ações, o que imediatamente coloca Emma em alerta.

“O que houve?”

“Nada.” Ele nega de imediato sem querer preocupá-la. “Tudo está bem. Quer dizer, obviamente nem tudo está bem. Mas nenhum outro desastre aconteceu se é isso o que você está perguntando.”

Emma não disfarça sua desconfiança mediante a explicação enrolada oferecida por David. “Por acaso a Mary Margaret o mandou aqui para checar se eu estou bem?”

“Absolutamente não.” Ele nega com veemência e então confessa. “Eu vim por iniciativa própria.”

“Por que eu não estaria bem? Só porque meu filho pré-adolescente resolveu me tratar como se eu fosse a vilã da história quando tudo o que eu estou fazendo é pelo bem estar dele?” Emma faz uma careta ao ouvir as próprias palavras. “Espere! Não vamos abrir essa lata de vermes!”

Charming sorri, sentando na cadeira em frente à mesa de Emma. “Melhor não. Mas respondendo a sua pergunta, exatamente por isso.”

A irritação de Emma se dissipa ao perceber que ao menos David não se deu ao trabalho de negar. “Você tem algum conselho a me oferecer? Alguma carta na manga?”

“Na verdade não. Não é como se eu tivesse alguma experiência com esse tipo de situação, logo...”

O comentário de David acerta Emma em cheio, preenchendo-a com uma culpa que não lhe cabe exatamente. Afinal, se existe alguém que não tomou parte na decisão de ser despachada para uma realidade estranha através de uma árvore, esse alguém é Emma. Já o fato de ela ter trazido o assunto a tona sem muito tato, bem, isso ela assume.

“Certo. Foi mal.” Ela fica sem graça, mas Charming não parece levar sua indiscrição a mal.

“Eu estou presumindo que esse último ato de rebeldia tem a ver com a Regina de alguma forma.” David se esforça para trazer o assunto à tona casualmente, mas não é bem sucedido. Sua tentativa sendo considerada como meramente passável e olhe lá.

Esticando-se em sua cadeira, Emma suspira longamente antes de conceder uma resposta ao pai.

A verdade é que nada a impede de despejar a responsabilidade dos últimos acontecimentos sobre os ombros de Regina. Seus pais certamente não iriam apresentar qualquer objeção. E seria muito mais fácil. O problema é que a própria Emma não acredita nisso. Mesmo tendo sido Regina quem – literalmente – acendeu as faíscas que provocaram a última explosão entre as duas, a loira não consegue ignorar sua fatia de culpa na situação, bem como a distinta suspeita de ter caído feito um patinho em mais uma das armadilhas da ex-prefeita.

“Não é tão simples.” Ela se pega respondendo com sinceridade e uma ponta de pesar. “É possível que eu tenha reagido de forma... impulsiva a certos eventos aos quais eu deveria ter tentado ser mais razoável. Se não por mim ou por Regina, então ao menos pelo garoto.”

“Parece a meu ver, que – como você mesma disse – você estava apenas tentando protegê-lo.” Charming oferece solidariamente.

“Sim, mas isso não é o mesmo que Regina sempre tentou fazer à maneira dela? Como eu posso condenar seus atos, quando não sou capaz de fazer melhor?”

“Mas você é melhor do que ela, Emma.” Charming a defende com absoluta convicção, ao que Emma não contém um sorriso de descrença.

“Eu estou mantendo o Henry comigo contra sua vontade e o proibi de se aproximar de sua mãe.” Ela confessa sem disfarçar a desaprovação pelos seus próprios atos. O fato de Charming não encontrar palavras para contestar suas alegações, confirmando suas suspeitas. “Foi o que eu pensei.”

“Então, o que você pretende fazer?”

“Eu não sei.” Emma admite e David não consegue se lembrar da última vez em que a filha lhe pareceu tão cansada ou mesmo vencida. “Tudo o que eu sei é que agora eu me desprezo, o Henry não me suporta e o único motivo pelo qual a Regina não se juntou ao grupo é porque ela está ocupada demais odiando a si mesma.”

“Emma, eu entendo as razões pelas quais você está chateada e eu certamente consigo entender porque o comportamento do Henry seria um problema, mas porque você ainda se importa com o que se passa com Regina?”

O questionamento de seu pai, feito sem nenhum tom de acusação, parece pegar Emma completamente desprevenida. Então, maquiando sua resposta com um sorriso falso, ela lhe oferece a mais deslavada das mentiras, uma que já está gasta de tanto ser usada.

“Porque ela é mãe do Henry, ora. Só por isso.”

Charming não parece inteiramente convencido, mas não tem a chance de se manifestar, o som do telefone tocando, se colocando entre pai e filha. Então, com unhas e dentes, Emma se agarra a essa saída estratégica, seu coração ainda batendo descompassado quando ela leva o aparelho ao ouvido.

“Departamento de Xerife, Xerife Swan falando.”

Charming não é capaz de ouvir o que está sendo dito do outro lado da linha, mas seja o que for, é o suficiente para alterar a disposição de Emma, que murcha em sua cadeira, uma expressão de desapontamento se fixando em seu rosto. “Não, isso não será necessário. Eu tenho uma boa ideia de onde ele possa estar. Obrigada pelo aviso.”

A batida do telefone contra o gancho é uma pequena demonstração da frustração que Emma está sentindo e David não precisa se dar ao trabalho de elaborar pergunta alguma, suas dúvidas escritas em sua testa, ao que ela se prontifica a esclarecer. “Era da escola do Henry. Eles queriam me notificar de sua ausência.”

“Mas ele saiu tão apressado para pegar o ônibus hoje de manhã. Você acha que aconteceu alguma coisa?”

A ingenuidade de David é quase comovente.

“Não se preocupe David, eu sei exatamente o que aconteceu. Para ser honesta não posso nem mesmo dizer que esteja surpresa, não é como se ele já não tivesse feito isso antes. A única diferença é que dessa vez as peças do tabuleiro estão invertidas.”

“Como assim, Emma? Onde você acha que ele está?” Sem tempo a perder, Emma já está vestindo sua jaqueta quando dignifica a pergunta de David com uma resposta, obrigando que ele aperte o passo para continuar em seu encalço.

“Conhecendo o Henry, ele está fazendo justamente o que eu o proibi de fazer.”

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Em seu banheiro, sentado em um banquinho de madeira, uma toalha sobre seus ombros e os cabelos ainda molhados, Henry aguarda ansiosamente o retorno de Regina que foi até seu quarto buscar a caixa na qual guarda os utensílios necessários para o que, com o passar dos anos, se tornou uma tradição entre mãe e filho.

Mesmo sem conseguir se recordar com clareza da última vez em que fizeram isso, Regina encontra a caixa com facilidade em uma prateleira alta dentro de seu closet. Depositando a mesma sobre sua cama, apesar de saber que a paciência nunca foi uma das virtudes de Henry, Regina se permite observar por alguns instantes o conteúdo ali presente.

A caixa é simples, talvez mais do que qualquer objeto que Regina tem em sua casa, se tratando na verdade de uma velha caixa de sapatos seus a qual em um de seus projetos escolares, Henry revestiu com suas ilustrações e pinturas para então oferecer à Regina como presente. Ainda assim, mesmo que o desgaste provocado pelo passar dos anos tenha desbotado as figuras desenhadas em um traço infantil, Regina jamais cogitou se desfazer dela, seu valor sentimental incalculavelmente superior ao material.

Dentro da caixa, mesmo tendo passado tantos anos, os objetos permanecem aparentemente intocados pelo tempo. Ali Regina encontra o pente, a tesoura, uma escovinha para espanar os fios cortados e, em uma caixinha menor, uma mecha de cabelos de um castanho muito claro, guardada do primeiro corte de Henry, quando ele tinha quase dois anos.

A caixa também possui um sabonete, o mesmo que Henry usou em seus primeiros anos e Regina não sabe dizer ao certo, mas algo entre os objetos e aquele aroma, ambos de uma familiaridade desconcertante, é o suficiente para despertar uma inundação de recordações.

De repente ela se vê lançada de volta a um tempo em que não havia mais nada em seu mundo além de Henry, o bebê que chorava muito no começo, mas cada vez menos com o passar dos meses – a não ser, é claro, durante aquele terrível período da dentição. Henry, que custou a falar as primeiras palavras, mas cujos pezinhos desde cedo levavam a toda parte, a quem o passatempo favorito era se esconder, uma combinação que deixava Regina louca de preocupação até aqueles preciosos instantes em que ele deixava que uma risada ou um soluço revelassem seu paradeiro.

Henry, a criança que insistia para tomar banho na banheira da mamãe, que nunca gostou de chupeta, mas que custou a abandonar a mamadeira, que gostava de ouvir histórias, mas que se assustava facilmente com tudo o que via na televisão.

Henry, o garotinho que nunca conseguia ficar muito tempo quieto, o que fez com que seus primeiros cortes de cabelo fossem algo perto de um desastre completo até que Regina descobrisse o método certo de mantê-lo entretido durante o corte, mas que durante esse meio tempo desfilou por mais vezes que Regina gostaria de lembrar, com a franja desnivelada e um sorriso despreocupado, o oposto de sua mãe a quem nunca ninguém – nem mesmo Eugenia – ousou sugerir uma visita ao barbeiro da cidade.

“Mãe?” A voz de Henry percorre os cômodos até alcançá-la, agarrando Regina antes que ela se perca por completo em suas recordações.

“Um instante.” Ela responde sem conseguir disfarçar o tremor em sua voz e mesmo ciente de que o filho está a sua espera, oscila em tocar a caixa novamente, temendo mais uma enxurrada de memórias agridoces. Então, mais uma vez a voz de Henry a puxa de volta.

“Ok, mas não demora, senão eu vou ter que lavar meu cabelo de novo.”

Uma nova tentativa e dessa vez não há qualquer hesitação de sua parte, embora em seu íntimo, Regina esteja contendo a duras penas um temor que cresce rapidamente, beirando a histeria.

São somente memórias, ela tenta convencer a si mesma, mas a verdade é que estas são apenas um eco de seu verdadeiro medo.

Regina já não se incomoda com a tristeza que a vem consumindo, a depressão, uma antiga companheira, bem como o cansaço e mais recentemente a resignação. Para ela a solidão hoje se apresenta como uma doce indulgência, algo que só perde seu valor quando comparada ao balsâmico esquecimento proporcionado em seus momentos de inconsciência.

Não. Nada disso atormenta Regina, nem mesmo a ideia de que seu filho encontra-se afinal nas mãos da mulher que por tanto tempo ela considerou uma ameaça. Em realidade, o motivo de seu receio, reside justamente no oposto.

A essa altura, Regina já perdeu Henry muitas vezes, mas é a primeira vez em que ele insiste em ficar ao seu lado. E isso... isso pode ser a real tragédia afinal.

Trata-se apenas de uma suposição, talvez até mesmo uma remota possibilidade, mas a sua mera existência se revela o bastante para fazer com que o restante de sanidade que Regina ainda consegue evocar, se desvaneça em pó.

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“Estou com um mau pressentimento.” A confissão escapa sem o seu consentimento, o que Emma pode apenas justificar como um sintoma do temor que subitamente recaiu sobre ela como uma sombra.

Sentado no banco do passageiro, David se esforça para ser razoável.

“Não se preocupe, tenho certeza de que tudo está bem.” Ele diz querendo acreditar em suas próprias palavras ainda que a oscilação em sua voz implique o contrário. “Além do mais não é como se a Regina fosse capaz de fazer alguma coisa contra o Henry.”

“Você está certo.” Emma consente automaticamente, embora seu íntimo não lhe ofereça a mesma certeza e sob o comando de seus instintos apenas pisa no acelerador.

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“Mãe, o que você tá fazendo?” A voz de Henry, dessa vez vinda do mesmo cômodo, surpreende Regina pela sua proximidade súbita. Levando uma mão ao peito ela não oculta seu sobressalto.

“Henry, você me assustou.” Ela fala e tão logo as palavras lhe escapam, seu espanto se converte em uma risada rouca.

“Do que você tá rindo?”

“Nada realmente. Apenas não pude deixar de achar irônico que um menino seja capaz de assustar a temível Rainha Má.”

A constatação de Regina é feita sem mágoas, com um tipo de descaso que apenas provoca a mortificação de Henry. O título lhe trazendo recordações que ele preferiria esquecer.

“Eu sinto muito.” O menino declara solenemente, como se estivesse tirando um grande peso de seu peito.

“Não seja bobo, não foi nada mais.”

“Por todas as vezes que a chamei de Rainha Má. E também por todas as outras coisas ruins que te falei.”

O evidente arrependimento de seu filho, algo que ela jamais ousou sequer sonhar, chega em um momento que não poderia ser mais inoportuno, quando já lhe escapa todo e qualquer controle de suas emoções de tal modo que Regina não se vê capaz de nem mesmo esboçar uma reação. Ainda assim, por Henry e ele somente, enxergando seu reflexo deformado em seus olhos suplicantes e sinceros, Regina lhe oferece seu melhor sorriso.

O fato de que este seja apenas uma pintura de incalculável tristeza, foge ao seu controle.

“Não se preocupe, querido. No final você sempre esteve certo.”

A reação de Regina, bem como sua resposta, ao contrario do desejado, não oferece qualquer consolo ao menino que insiste em argumentar.

“Não, eu não estava.” Henry enxerga a primeira oportunidade que tem para dizer tudo aquilo que vem carregando consigo nos últimos meses, desde que se viu a vias de perder sua mãe. E dessa vez ele não demonstra qualquer intenção em deixar a chance escapar. “Você é mais do que os erros que cometeu no passado, eu entendo isso agora!”

“Talvez você também esteja certo quanto a isso, Henry.” A fala de Regina é quase etérea, um olhar distante figurando em seu rosto e soprando as migalhas de otimismo lançadas por Henry. “Mas infelizmente eu já vivi o suficiente para saber que nossos erros e condutas estão fadados à repetição justamente por fazerem parte fundamental de quem somos, de modo que não há nada que possa realmente ser esquecido ou destino que possa ser mudado. O que é uma trágica realidade para um vilão.”

“Mas você não precisa ser uma vilã, mãe. Você pode escolher seu próprio destino! E se você escolher ser uma pessoa melhor é possível que você ainda encontre o seu final feliz.”

Uma vez no passado, Regina se deparou com semelhante inocência, o que por anos ela considerou como algo intolerável e revoltante, graças a sua convivência com Snow. Tantas e tantas vezes ela se perguntou como alguém poderia ser tão terrivelmente ignorante ao insistir em acreditar em tamanha ilusão?

Contudo, nesse momento, a inocência de Henry lhe provoca sentimentos contraditórios. Uma parte sua sentindo uma brecha de esperança ao passo que a outra, tendo apostado e perdido tantas vezes, sente apenas uma agonizante tristeza pelo menino que seu filho é hoje, mas cuja vida logo se encarregará de endurecer em seus moldes.

“Henry,” O nome em seus lábios poderia muito bem ser uma prece quando ela toca seu rosto e se curva diante dele, para que seus olhos se encontrem no mesmo nível e o menino possa ler em seu rosto tudo aquilo que ela não consegue colocar em palavras. “Não importa o que aconteça, eu quero que você saiba que você foi o mais perto que já cheguei de ter um final feliz.”

Confuso quanto ao que de fato se passa, a finalidade das palavras de Regina o assustando, Henry não oferece qualquer resistência as suas próprias lágrimas.

“Mas nós estamos apenas começando.” Ele deixa escapar em um fio de voz, palavras as quais Regina retribui com um real sorriso. O primeiro desde que Henry pode se lembrar.

“Você sempre será meu pequeno príncipe.”

Regina sela a confissão com um beijo em sua testa e então a nuvem de fumaça roxa a envolve por completo e ela desaparece entre as brumas de sua própria mágica.

Ouvindo as vozes de Emma e David chamando por ele e sua mãe em uma distância cada vez menor, Henry não consegue responder, os soluços comprometendo seu fôlego enquanto suas lágrimas escorrem livremente pelo seu rosto.

Quando Emma se aproxima, um milhão de perguntas e uma sombria certeza em seus olhos, ela imediatamente sabe a resposta.

Regina se foi.

.::.

Continua...


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