1996 escrita por Manuzíssima


Capítulo 8
Encantos




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Depois da quarta volta que davam na lagoa, Mariana achava que ia morrer sem fôlego, mas Fernando parecia que tinha começado agora, corria de frente para ela, tomava distância e depois voltava.

            - Mari, não sabia que você era tão sedentária! – ele zombava. Passou duas semanas quase sendo torturado de tanto estudar, mas agora estavam na praia dele. Sim, ele ia zombar!

            Ela só olhava, ele tinha razão: fazia muito tempo que ela não praticava uma atividade física. Nada mesmo! E agora ele a tinha convencido a ir correr, então ela estava vermelha, arfando e tinha suor escorrendo pela testa. Como ela tinha deixado que  ele a convencesse? Tinha sido pura chantagem emocional!

            - Você não vai responder, linda? Nossa, mas você tem sempre uma resposta! O que aconteceu, Marizinha? Ah, já sei, coitadinha, ela não consegue falar, está quase enfartando feito uma velhinha. – ele dizia e nem se intimidava com a expressão de pura raiva no rosto dela.

            ...................

            Quando completaram a sexta volta, ela desistiu. Não aguentava mais, mas ele não parecia ter feito o mesmo esforço que ela. Enquanto caminhava até um banquinho de cimento, na tentativa de descansar, ela não percebeu que havia uma falha na pavimentação do calçadão da lagoa e torceu o pé. Era o que não faltava para piorar o humor de Mariana! Sentada no chão, reprimindo de todas as formas a dor que sentia, ela se perguntava o quão patética era aquela cena. Como ela devia estar parecendo frágil e que a vontade chorar devia estar estampada no rosto suado dela! Droga! Mil drogas, Fernando, a culpa é toda sua! Mas você não vai me ouvir dizendo isso!

            Quando ele percebeu o que havia acontecido era tarde demais: Mariana já estava fazendo uma careta de dor e parecia que ia explodir de tanta raiva. Veio-lhe à mente o que deveria fazer, quais os procedimentos corretos, mas ficou com tanto medo da ameaça estampada no rosto dela que freou o impulso de ajudar e esperou que ela dissesse algo. Durante alguns minutos, os dois ficaram num impasse. Ela com muita dor; ele, com medo da reação dela.

            - Será que você pode me ajudar a levantar? – finalmente, ela falou.

            A reação dele foi imediata, como se tivesse levado um choque. Mas, assim que ela se colocou de pé, viu que não iria conseguir andar sozinha e soltou o grito de dor que havia corajosamente reprimido na garganta.

            - Aaaaaiiiii!!! Droga! Droga! Droga! – Mariana era só raiva, não lembrava a última vez que tinha se sentido tão impotente.

            - Deixa que eu ajudo você a andar. – na voz dele um misto de apreensão e vontade real de ajudar.

            Meio desajeitada meio querendo bater nele para descontar um pouco da frustração que sentia, ela aceitou, afinal não haveria outra maneira de chegar em casa, a mãe estava em uma das suas aulas de pintura e não era uma época de telefones celulares.

            Caminharam vagarosamente até a casa dela: ele com cuidado excessivo; ela, com dor; ele aproveitando o momento, pois gostava dela assim perto, frágil, sem comentários intimidadores sobre tudo; ela ponderou o quanto de dor conseguiria causar nele caso lhe batesse, mas depois achou melhor não, desconhecia a cor da faixa de judô que ele usava, além disso, passada a dor intensa que havia sentido nos primeiros minutos, tinha começado a apreciar o momento.

Não sabia direito o porquê, mas esse contato ainda mais próximo com ele desde o dia em que o havia desafiado a estudar, fazia bem a ela. Ele era perspicaz, rápido no raciocínio lógico, pouco habilidoso com as disciplinas que exigiam mais leitura, mas inteligente demais para ficar para trás. Aos poucos, ela havia percebido que ele estava encarando os estudos como uma competição e ele adorava ganhar!

Agora, passada a raiva inicial, pois sabia que não era culpa dele se a pavimentação do calçadão deixava a desejar, estava aproveitando para raciocinar se gostava dele assim, tão perto fisicamente, e se seria confortável tê-lo perto emocionalmente. Percebeu que gostava do perfume dele, aquele cheiro forte que sobressaía mesmo depois da corrida; gostava também do perfil do rosto dele e mesmo que agora ele não estivesse sorrindo, ela podia desenhar de memória os lábios e os dentes muito brancos; lembrou também que gostava do som do sorriso dele, mesmo quando ele ria debochando dela; gostava do jeito que ele tinha dito que iria esperar para quando ela quisesse beijá-lo (até agora cumpria a palavra!), mas não sabia se estava pronta, se era realmente o que queria dele ou se era só amizade; ficou triste quando lembrou que Daniel era uma lembrança distante, aquele menino que um dia tinha sido tão importante na vida dela e agora não escrevia mais uma linha sequer e ela também tinha deixado de lado todas as promessas feitas quando ele se foi; não queria que Fernando fosse assim para ela, só um monte de lembranças e promessas descumpridas.

Ao chegar ao portão da casa dela, ela fazia uma leve ideia de como queria que Fernando estivesse na vida dela. Restava saber como ele iria receber a informação.

- Chegamos, Mari, não vou entrar, não estou me sentindo bem. Vou para minha casa, depois conversamos. Depois que você tomar um banho, coloca gelo, espero que você fique bem! Espero mesmo! Foi culpa minha! – ele falou de uma vez, como se estivesse ensaiando durante todo o percurso.

- Por que você não entra? Eu queria conversar uma coisa que acho que é importante... Bom, para mim é importante... – ela queria falar com ele, desmanchar a má impressão que tinha deixado quando torceu o pé.

- Agora não, Mari, já estou me sentindo mal demais, ouvir de você só vai piorar. Eu não devia ter tirado você da sua rotina, você deveria estar estudando, mas eu insisti para você ir comigo. – havia desânimo na voz dele.

            - Fernando, não é nada sobre isso que quero falar com você. É sobre mim, sobre você, sobre a gente... Não sei direito por onde eu começo...

            No rosto dele havia uma confusão de sentimentos: há poucos minutos se sentia culpado, o olhar dela fuzilava o dele de tanta raiva e dor que ela devia estar sentindo o que o fez se sentir muito culpado; agora, a voz dela era mansa, parecia com vergonha de alguma coisa, ele não entendia direito o que era...

            - Eu não sei mesmo por onde eu começo e você sabe muito bem que esse é um talento meu...

            É, ele sabia, todas as redações que a professora pedia para fazer na sala de aula, era ela que começava as dele. Ela era muito boa com as palavras. Sentiu vontade de rir de tanto orgulho que sentia dela, mas a expressão séria no rosto dela o fez pensar antes e acabou guardando sorriso. Ponderou: se ela quer falar sério sobre alguma coisa  relacionada a nós dois depois de ter torcido o pé, acho que as coisas não vão ficar muito boas para o meu lado... Droga! Aquela situação estava ficando confusa e séria demais na cabeça dele. Seus instintos diziam que ele devia acabar com aquela conversa estranha dando um beijo nela, aquele beijo que ele esperava há tanto tempo, mas, aprendeu com o pai que um homem nunca deixa de cumprir a sua palavra e ele, burro demais na sua própria análise, havia prometido esperar.

            - Mari, a gente podia conversar depois, quando você estiver sentindo menos dor. Você devia entrar antes que seu tornozelo fique muito inchado. – ele queria mesmo ir embora.

            - Fernando, eu vinha no caminho até aqui, pensando nesses últimos meses. Em como você se aproximou de mim e como eu gostei que você fosse tão insistente, pois, se dependesse apenas de mim, eu estaria agora lá no fundo do meu poço, confortável poço, chorando às vezes, rindo nunca, morrendo de estudar e de vontade que o ano letivo acabasse logo para poder sair daquele colégio. Mas, agora, eu me vejo empolgada para ir ao colégio por que eu sei que você está lá, fico feliz quando acabam as aulas, pois sei que vamos passar a tarde estudando. E fico mais feliz ainda porque você está mesmo estudando e é muito inteligente, mais do que você acha que é. Rio sozinha antes de dormir me lembrando do quanto você é convencido e ao mesmo tempo muito tímido; tão confiante, mas fica tão inseguro com qualquer comentário meu...

            - Poxa, Mari, é que, às vezes, você é cruel!

            - Não me atrapalha, fica calado! O que estou tentando dizer é que, se aquela proposta de me beijar quando que estiver pronta... Bom, já podia ser agora...

            Ela terminou a última sílaba da frase com a boca dele encostada na dela.

Ele a beijou, porque, aliás, era o que ele queria muito fazer desde... Desde muito tempo atrás quando ela começou a namorar com aquele carinha antes que ele tivesse a própria oportunidade; desde que a via isolada do mundo querendo apenas a solidão, mas ele também queria estar lá; desde que a encontrou na festa e achou que finalmente era a chance dele, mas foi trocado por uma música idiota que ele não sabia dançar; desde que ela tinha deixado que ele ficasse por perto sem rejeitá-lo muito; desde que tinha enfiado o nariz no cabelo com cheiro de cereja dela; desde todos os dias que ele a via lendo aquelas questões dos simulados que eles resolviam juntos e que seria tudo muito aborrecido, mas no som da voz dela ficava delicioso... E pensava nisso tudo enquanto apertava a moça adorada por ele num abraço desmedido e a beijava com todos esses gostos que ele nunca poderia imaginar que alguma menina poderia ter...  e ele já tinha beijado muitas!


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