1996 escrita por Manuzíssima


Capítulo 5
O quão impossível pode ser Fernando?




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Decidido, ele atravessou a sala e pegou o caderno deixado na cadeira do lado oposto da sala. Agora ele sentaria ali, do lado dela da sala, na cadeira de trás.

            - Já tem alguém sentando aí. – ela ainda tentava escapar da proposta.

            - Tinha. – e ele pegou a mochila que estava na cadeira que ele queria sentar e colocou em outra, ao lado, e que já estava ocupada. Como aquilo ia se resolver quando desse o sinal encerrando o intervalo?

            De uma maneira bem discreta a coisa foi arranjada, Mariana não entendeu direito porque, mas quando os alunos voltaram para a sala de aula ao final do intervalo, simplesmente o garoto que ela julgava estar ocupando a cadeira que Fernando sentava agora, pegou a mochila e sentou em outra cadeira vazia. Enquanto isso, Fernando assobiava tranquilamente uma canção de uma banda que ele adorava: Engenheiros do Hawai. Como ele podia ser tão tranquilo? Mariana se pegou querendo saber coisas demais sobre ele.

            O resto das aulas daquela manhã foram assim: o professora falava alguma coisa engraçada, Fernando dava uma gargalhada; algum aluno fazia um comentário desnecessário, ele retrucava baixinho só para Mariana ouvir, e ela queria rir e não rir ao mesmo tempo; passou bilhetinhos por baixo do braço dela com letras de música; respondia baixinho quando o professora fazia alguma pergunta, mas não demonstrava querer participar da aula; era inquieto e deixava Mariana desconfortável, afinal ela tinha passado muito tempo tentando aquietar o próprio coração, mesmo sem êxito algum.

            Ao final das aulas ela tinha um monte de anotação no caderno e ele, nenhuma.

*******************

            Deitada na cama, Mariana sorria depois de muito tempo chorando de saudade antes de dormir, pois parece que à noite era a hora que mais doía tudo.

            Ela sorria agora lembrando que Fernando tinha contado que durante o ensino médio tinha se metido em muitas brigas, por isso tinha sido tão simples tirar alguém da sua própria cadeira quando resolveu sentar perto dela. E no final, meio que se desculpando pela ousadia e pelo temperamento, deu de ombros:

            - Aquele carinha nem queria sentar ali mesmo!

            Ela ria sozinha olhando o teto do quarto naquele sábado à noite, indiferente aos programas que os da idade dela gostavam de fazer. Tinha sido uma semana menos difícil que as anteriores, logo no começo da amizade deles, pois agora ela resistia mais ao ímpeto de expulsá-lo para longe dela. Dava menos respostas atravessadas às perguntas dele e estava aprendendo que ele era persistente sem ser chato.

            Bem longe, ouviu o telefone tocar, mas não iria atender, estava de pijama, dentes escovados, pronto para “cair nos braços de Morfeu”, como diria a tia Tereza, irmã da mãe.

            - Mari, é para você.

            - Diz que eu estou dormindo.

            - Bom, até disse, mas esse rapazinho não engole essas desculpas esfarrapadas não.

            Ela podia até adivinhar o sorriso dele do outro lado da linha.

            - Alô. – a voz tentava disfarçar a ansiedade. Era ele mesmo? Não, não podia, ele não tinha seu número.

            - Oi, Mari, queria saber se você quer ir ao cinema comigo. – a voz dele era inconfundível. Fernando.

            - Eu estou dormindo. – ela disse quase rindo.

            - Mesmo? Podia jurar que não. Se você for sonâmbula vou rir muito da sua cara.

            Moço insuportável – ela pensava.

            - Bom, já que não quer sair, estou indo aí levar um filme para assistir com você e com a sua mãe.

            - Claro que não, está tarde.  E minha mãe não gosta de visita assim, sem avisar.

            - Pois passe para ela que vou avisar.

            Gesticulando para a mãe ser sua cúmplice e negar o convite, Mariana entregou o telefone. Não podia ouvir o que ele dizia, mas a mãe toda contente já abria um sorriso enquanto ouvia o que o rapazinho queria.

            - Claro que pode, meu filho, está tão cedo. – escutou um pouco e continuou. – Não, ela não ia dormir agora não, ela estava estudando, já disse até para ela não estudar tanto. É bom que ela se distraia. – mais um instante escutando a voz do outro lado da linha. – Qualquer um que você trouxer, meu filho, pode vir.

            Mariana de boca aberta e cara fechada, mal podia conter a raiva... Raiva mesmo? Ou ela estava se divertindo com aquele moço insuportavelmente inconveniente e ... procuraria outro adjetivo que lhe coubesse. Bom, ela ia ter o tempo de um filme para encontrar.

            Alguns minutos depois, ele chegou trazendo filme e pizza. Muito educado, apresentou-se à mãe e esta, toda solícita e simpática, recebeu o moço como se já o conhecesse há muito tempo. Mais conversaram do que realmente prestaram atenção ao que passava na tela à frente deles, ficaram sabendo muito da história uns dos outros.

Fernando era o irmão mais velho, a irmã que estudava na mesma escola. Praticava judô desde os cinco anos por recomendação do pediatra “para controlar a personalidade impulsiva”, mas ele não concordava, achava-se muito tranquilo, mas continuava indo à academia para satisfazer a mãe. Estava repetindo o ano escolar porque as notas não eram muito boas, além de ter tido catapora no período de recuperação, o que o desestimulou mais ainda com os estudos, mas tinha sido bom, porque agora ficava na mesma sala que Mariana. Falava abertamente sobre isso, sem esconder sua satisfação, mas sem expor a moça que estava tossindo, engasgada com refrigerante.

Dona Socorro contava que sentia muita saudade do marido que passava a maior parte do tempo fora de casa, pois trabalhava em uma plataforma de petróleo. Investia esse tempo fazendo alguns cursos de artesanato, culinária e pintura. Mariana era seu maior orgulho pois era uma excelente aluna e já tinha decidido o que faculdade faria: Engenharia Civil.

Mariana não falava muito, apenas se manifestava quando a mãe ia se aprofundar demais em assuntos muito íntimos relacionados ao ano anterior, coisas que ela preferia não mencionar na frente de Fernando, mesmo achando que ele sabia de muitas daquelas cicatrizes. Mais ouviu que falou, afinal aquele rapazinho gostava tanto de conversar, abria assim tão fácil sua vida que ela estava encantada, pois não tinha essa capacidade. A conversa também serviu para que ela entendesse o episódio da mudança de lugar na sala, Fernando não era muito de argumentar quando queria algo e, se ele ia mudar de lugar, nada o impediria de tomar a cadeira de quem fosse, afinal quem o desafiaria? Ela imaginou quantas vezes o rapaz já teria visitado a sala da coordenadora, mas preferiu não perguntar. A estratégia do judô não tinha contribuído muito para apaziguar a ferocidade do rapaz, mas, analisando o outro lado, ele parecia doce enquanto conversava com sua mãe, tímido quando admitiu não saber dançar e compreensivo quando, pacientemente, propôs esperar o tempo dela.

Eram quase 23h00 quando a mãe dele veio buscá-lo e dona Socorro se despediu prometendo convidá-lo para almoçar com elas num sábado. Mariana não pareceu muito interessada, estava pensativa demais diante de tanta coisa que ouviu do rapaz que não dimensionou o convite.

A mãe parecia nas nuvens: que rapaz educado, Mariana! Que rapaz isso, que rapaz aquilo! Que menino bonzinho! Ok, ela não iria contar agora como o menino bonzinho assustava os colegas de sala, deixaria a mãe com a impressão boa que ele tinha causado.

            Enquanto não voltava aos braços de Morfeu, a moça tentava analisar as entrelinhas do discurso do rapaz. Mas seria que tinha entrelinhas? Será que ele não era mesmo tão simples como demonstrava ser? Será que...? Mariana dormiu e talvez até sonhou com o rapaz, mas não é de bom tom invadir os sonhos de mocinhas tão sérias como ela.


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