1996 escrita por Manuzíssima


Capítulo 10
Turbulência




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Mesmo com a inconveniente presença das duas garotas ao seu lado, Mariana voltou a olhar o livro, mas só olhar mesmo, porque dentro da sua cabeça começaram a martelar algumas dúvidas: quem eram aquelas garotas, de onde a conheciam, ela as conhecia, já tinha visto as duas em algum lugar...

- Vocês estão bem felizes juntos, né? – falou calmamente a menos purpurinada.

- Vocês? – perguntou Mariana tentando ganhar tempo para racionalizar a situação.

- É, menina, não se faz de sonsa. Você e o Fernando. – a mais aperuada parecia ser a menos educada.

Mariana olhou friamente para ela e não respondeu. Falar sobre seu relacionamento com Fernando com uma estranha. Falar sobre o que? Que ainda estavam tentando se acertar ao mesmo tempo que se organizavam para passar a maior parte do tempo juntos? Falar que ele era uma coisa boa que tinha acontecido na vida dela e que ela morria de medo que acabasse de novo como tinha acontecido no ano passado? Falar que hoje tinha sido um dia atípico comparado aos anteriores, pois eles não tinham estudado juntos e Mariana estava com medo que ele voltasse a desistir? Falar o quê com duas garotas estranhas que nem de longe pareciam com as pessoas com quem Mariana costumava se relacionar?

- Sabia que ele é o amor da minha vida? – falou tranquilamente a que parecia mais educada. – Meu nome é Isabel. – estendeu a mão para que Mariana apertasse e continuou. – Namoramos durante todo o ensino médio, mas, no final do ano passado, aconteceram algumas coisinhas e ele pediu um tempo.

Mariana olhava incrédula para a menina. Ela era loira, de farmácia, claro, dava para perceber nitidamente. O cabelo era organizado mecha por mecha, como se fosse uma Barbie. A silhueta bem feita ficava mais evidente na roupa justa, quase vulgar. Sentada ereta, com a coluna impecavelmente no lugar, e as pernas cruzadas, olhava o garoto de cenho franzido que ajudava no treino. Não olhava para Mariana enquanto falava, apenas mirava Fernando como se dos seus olhos fossem sair flechas. Mariana estremeceu.

- Bom, todos temos grandes amores que passam ou que ficam. Felizes para sempre só em conto de fada. – Mariana tentava se convencer que a voz era firme e que não estava titubeando ao falar. Ganhar tempo e não cair na conversa dela, Mariana, firme! Dizia para si mesma.

- É, mas nos contos de fada, as princesas não ficam grávidas. – disse a Barbie olhando fixamente agora para Mariana. Queria medir a reação da moça.

- Grávida? – agora Mariana gaguejou. Por que ele nunca tinha falado disso?

- Isso mesmo, queridinha. Grá-vi-da! Ah, que triste, o namoradinho não contou esse detalhe para ela, Bel. – a voz aguda da outra moça estava começando a irritar Mariana.

- Isso aconteceu no período da recuperação no ano passado. Fiz minhas provas em casa, portanto quase ninguém soube do escândalo. Meus pais providenciaram uma viagem para o exterior, passei todos esses meses na Europa, mas agora eu voltei para retomar de onde paramos. Acontece que ele resolveu se divertir enquanto eu estive ausente. O que há entre vocês não é tão sério que ele não possa esquecer quando ele me vir, tenho certeza.

Mariana olhava incrédula. Era como se o banco da arquibancada tivesse sido puxado e ela estivesse flutuando numa realidade paralela, num quadro de Dalí. Olhava para a Barbie número 1 (Isabel era o nome dela?) e tentava encontrar qualquer coisa nela em que fossem parecidas, qualquer coisa que fizesse Fernando ter se sentido atraído por ela e por Mariana. Olhou, mas não encontrou nada, não sabia que a cabeça dos homens não funciona dentro de uma lógica que ela sempre imaginou existir. Além disso, a moça era realmente uma boneca e Mariana era normal na sua autoanálise.

As três estavam tão envolvidas na situação que não perceberam que Fernando estava se aproximando. Pelo andar e pelo olhar, não estava o mais feliz dos judocas. O quimono vinha fechado, não descontraído como alguns minutos antes, tão fechado como o semblante. Ao se aproximar, ignorou a presença das outras duas, olhou diretamente para Mariana:

- Vamos! – a voz era firme e ela, meio dormente ainda com o que tinha ouvido, ainda na tela do Dalí, nem questionou nem resistiu, levantou e pegou na mão que ele lhe estendia.

- Oi, Fernando! Nem fala mais com as amigas. – disse Viviane, a “blond” que Mariana não sabia o nome.

- Oi! E “oi” para você também, Isabel. E tchau. – a voz dele era seca.

Mariana não perguntou nada, apenas se deixou levar. Tentava assimilar o que tinha ouvido, mas, por algum motivo estranho, não conseguia. Faltavam peças naquele quebra-cabeça: grávida? E o bebê? Como assim: grávida?

- Mariana, fica aí, não sai daí. Eu vou trocar de roupa no vestiário, não demoro.

Como a moça não respondesse, ele insistiu:

- Mari? Você ouviu? Eu volto já, é rápido, uma ducha para tirar o suor e podermos conversar. Fala comigo!

- Eu entendi, eu entendi. – nunca tinha visto a moça assim. Parecia que tinham roubado o cérebro dela.

Fernando foi rápido como prometeu. Antes de saírem, ele tirou da carteira um cartão telefônico e discou para casa:

- Mãe, estamos saindo daqui, mas vamos demorar um pouquinho, aconteceu um imprevisto com a Mariana. – deu uma pausa, procurando a melhor desculpa para não preocupar a mãe. – Mãe, a Isabel apareceu aqui, aproveita e fala com a mãe da Mari. Não vamos demorar muito. – outra pausa para escutar a mãe. – Olha, fala com o pai dela que vamos demorar só mais um pouquinho além do combinado. E o restante? Está tudo certo? – ouviu e confirmou com a cabeça. – Está bom, mãezinha, já chegamos!

E para Mariana ele disse:

- Sabe aquela pracinha que tem aqui perto? Vamos sentar ali e ouve primeiro a minha versão, depois eu deixo você falar o que você quiser. Pode até me bater!

Ao redor deles, crianças gritavam, choravam, comiam a areia do escorregador. Velhinhas simpáticas davam uma voltinha na praça com a maior tranquilidade do mundo, afinal o bairro era muito tranquilo. Os seus respectivos maridos rodeavam uma mesa e jogavam dominó. Riam e discutiam ao mesmo tempo. Mariana sentou e encostou-se no banco, ainda parecia meio dormente. Fernando não se sentou tão relaxado, ficou de lado, queria olhar para ela e queria ela olhando nos olhos dele.

“Ano passado, Mariana, eu não me suportava mais. Durante todo o ensino médio, só fiz coisa errada, nem sei como fui promovido nos dois primeiros anos. Só queria saber de sair com meus amigos, bebia e arrumava confusão. No meio dessa turbulência meus pais sempre foram muito pacientes, apenas conversavam comigo que daquele jeito eu não seria ninguém, mas eu teimava em não ouvir e a cada fim de semana repetia tudo de novo. E tinha a Isabel. Ela também falava que queria me ajudar, mas todas as vezes que íamos para uma festa, ela também fazia a mesma coisa que eu: bebia e arrumava confusão. Ciúmes pelos motivos mais idiotas e eu me metia, afinal, ela era minha namorada.

Até que aconteceu aquele acidente com a Carol, sua amiga. Eu devia estar naquele carro, Mari, mas de última hora, minha mãe pediu tanto, disse que naquele final de semana eu devia ficar em casa, que estava com um pressentimento ruim. Enfim, acabei ficando e quase não acreditei quando eu soube. Nem conhecia a Carol direito, ela era amiga de um amigo, o dono do carro. Mas me doeu tanto que eu parei para pensar no que eu tinha feito até ali. Conversei com a minha mãe, contei tudo para ela e ela deve ter falado com meu pai, pois passamos a ir alugar filmes para assistirmos juntos, virou um ritual lá em casa, víamos de três a quatro filmes por final de semana. E a Carol nunca saiu da minha cabeça, principalmente porque eu vi como você reagiu. Ou melhor, não reagiu. Você parecia um zumbi no meio da multidão e não conseguia tirar o olho de você. Via você isolada de tudo e queria me aproximar, queria dividir sua dor comigo, queria dizer que eu entendia você mais do que você imaginava, mas aquele carinha foi mais rápido.

Acho que a Isabel percebeu que eu estava afastado. Não saí mais com aquela turma de antes, passei a me dedicar mais ao judô, redescobri que ganhar competições me deixava mais feliz do que um final de semana de ressaca física e moral. Foi no meio desse turbilhão de mudanças que a Isabel engravidou. Foi numa noite em que ela disse que era nossa despedida, hoje eu penso e tenho quase certeza que foi de propósito. Não estou me eximindo da culpa, mas eu estava desacostumado com bebida e ela sabia. O resto você deve imaginar. Minha cabeça estava uma confusão, queria outra vida, vendo filme com meus pais no final de semana, treinando duro durante a semana e tentando salvar o que restava do meu ano escolar. Desse período, meu sensei foi muito importante, devo muito a ele e a esposa dele. Junto com meus pais, foram eles que me salvaram de mim mesmo. Foi aí que a Isabel veio com a notícia da gravidez. Fiquei louco, não sabia o que fazer, só sabia que devia contar para os meus pais e para o sensei, nessa época ele era meu melhor amigo. Meus pais decidiram que íamos assumir a responsabilidade financeira, mas eu não era obrigado a casar como ela queria. Quando eles conversaram com os pais dela, viram que eles também não queriam que ela casasse por aquele motivo.

Mesmo sendo muito complicado, eu estava conformado. Imaginava até levando o pequeno para o treino de judô. Foi quando veio a notícia que ela tinha abortado, aparentemente tinha sido natural. Eu nem sabia mais como me sentir. Tentei visitá-la, mas quando ligava dizendo que ia, ela nem falava comigo, era a mãe dela que dizia que eu não devia aparecer. No começo desse ano, fiquei sabendo que ela estava viajando já fazia um bom tempo. Foi aquela amiga dela, a Viviane, que me contou.

Nunca mais eu tinha visto a Isabel. Só depois que deixei você lá vendo meu treino, foi que percebi que era ela que estava num grupinho perto do dojo. Quando olhei para você, vi que as duas estavam ao seu lado e pirei. Mostrei ao sensei e ele me liberou para vir para casa com você, não sem antes me fazer prometer que eu não ia arrumar confusão.

– Mari, eu já fiz muita porcaria. Quero tentar refazer minha história, acho que tenho o direito de me arrepender do que já aprontei, acho que até estou no caminho certo, mas eu preciso que você diga que ainda me quer na sua vida. Fala comigo, por favor!

Mariana tinha ouvido tudo sem abrir a boca, sem expressar nenhuma reação. Agora que ele tinha terminado, parecia que estava acordando de um pesadelo que não tinha acontecido. Desde que Isabel tinha contado a história deles, só conseguia pensar que Fernando era pai, que tinha sido irresponsável, um “moleque” como dizia o pai dele para se referir aos garotos que faziam essas coisas. Mas não era nada disso, a confusão na cabeça dela era bem menor e ela sorriu, afinal, era apenas uma ex-namorada despeitada que retornava das cinzas para tentar tê-lo de volta e que, só na cabeça doente dela, o Fernando ainda “era dela”. Ufa! Com isso, Mariana podia conviver.

– É Daniel, o nome do “carinha”. – Mariana falou sorrindo. – Você nunca diz o nome dele.

– Não gosto dele. Não preciso saber o nome dele. – respondeu Fernando meio amuado. – Mas é só isso? Você vai terminar comigo?

– Eu? Vou nada! Essa tal de Isabel aí que se vire com a confusão que arrumou na cabeça dela. Eu tenho que conviver com todas as confusões que existem na minha cabeça. Se você também conseguir conviver com as suas, vamos daqui para frente, Fernando. Se isso tudo que você está contando foi realmente desse jeito, está tudo bem para mim.

Fernando não sabia se ria, se esmurrava o banco de cimento ou se gritava. O que fez foi respirar fundo e liberar a musculatura tensa até agora e, de supetão, arrancou Mariana do banco e deu um abraço mais que apertado em Mariana, tão apertado como quando se falaram pela primeira vez e ele espremeu a mão dela. Agora sufocava Mariana e, além disso, lhe pregava beijos pelo rosto sem calcular direito onde, mas o último foi especial e teve gosto de recomeço. Que alívio, hein, campeão?!

Mariana ria com a espontaneidade do rapaz. Quando se sentiu naquele abraço de urso, aspirou o perfume de Fernando, gostoso como sempre. O cabelo dele molhado, agora com cheiro de banho tomado, deixava um rastro de umidade no rosto dela enquanto ele distribuía vários beijos pelo percurso. Sentia os pulmões pequenos demais para a necessidade de respirar, mas não reclamava, tinha medo de desmanchar o instante. Ele era um presente na vida dela e não seria uma lambisgoia dourada que ia tirar-lhe isso.

– Agora, vamos lá para minha casa. – anunciou Fernando colocando a mochila com o quimono no ombro.

– Não posso, preciso ir para minha casa, minha mãe está me esperando. Deve estar preocupada.

– Sua mãe está na minha casa. Tenho uma surpresa para você.






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