O Príncipe Cinza escrita por Micaela Salvya


Capítulo 8
Meu Cérebro Veio com Problemas de Fábrica




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– O QUÊ?- disse eu em descrença. Meus pais morreram em um incêndio. Não teria como o Príncipe ter matado eles, me disseram sobre o vazamento de gás.

Assim que as palavras saíram dos meus lábios percebi como elas pareciam tolas. É claro que alguém poderia ter forjado um acidente. Mas era difícil de mais aceitar a ideia de assassinato, depois de tantos anos de aceitação.

– Temos fortes indícios de que O Nebuloso na verdade se tornou o líder. Líder da Irmandade Nanquim. Arina sussurrou em voz baixa para que ninguém ao redor pudesse ouvir. Pelo jeito aquilo era informação secreta. E, por favor, pare de dizer esse nome em voz alta!

– Arina pare com essa besteira, você acabou de anunciar que meus pais foram assassinados pelo amor de Deus. Como eles morreram? eu disse impaciente. Aquele era o tipo de coisa que eu tinha o direito de saber.

– Tudo bem, olha, eu e sua mãe fomos enviadas, ah obrigada - disse Arina para a vendedora que parecia um pouco assustada com o caminho da conversa, então saímos dali para um canto com menos pessoas. fomos enviadas numa missão pela Academia Arco antes de vocês nascerem para uma caverna secreta no lado deserto da ilha do Reino de Profécia. Lá descobrimos o pouco que sabemos a respeito das Sombras da Lua. Eles são membros da Irmandade Nanquim, que foi fundada pelos três filhos do Espectro, o último tirano hereditário. O Príncipe Cinza se aliou a eles quando tinha apenas dez anos por intermédio, suspeitamos, de alguém de dentro do castelo e ele é essencial para que as Sombras ganhem a guerra que está por vir. Sabemos também que eles não são nem de Core, nem de Acelentia, nem de Profécia. E eles possuem bases estratégicas nos três reinos, mas mudam regularmente.

– Mas por que as Sombras os mataram?

– Laura entenda uma coisa, sua mãe não foi a melhor Caçadora por ficar sentada. Ela era do tipo que não conseguia assistir sem participar. Foi ela quem se infiltrou por três meses sem que ninguém desconfiasse de nada. O plano era que eu seria quem enviaria as mensagens para o Conselho de Tinta e ela faria o trabalho pesado. E não havia melhor pessoa para o trabalho. Mesmo depois desses três meses não baixamos a guarda, com o máximo de cautela conseguíamos manter comunicação, até o dia em que descobriram. Seu pai foi enviado de Acelentia para protegê-la no Continente e acabaram se apaixonando. Viviam se mudando e fizeram de tudo para manter você e sua irmã a salvo. Infelizmente não conseguiram salvar a si próprios. Tudo foi premeditado, a Irmandade planejou tudo para que parecesse um acidente.

Olhei para Arina surpresa, sem fala. Porque apesar dos meus sentidos me fazerem desconfiar, nunca fora mais do que exatamente isso, um pressentimento. Porque a história do incêndio era seguro de se pensar. Seguro para dormir a noite. Porque de volta àquele tempo segurança era o que eu mais almejava.

– Arina porque então, seja honesta, eu estou sendo perseguida por Sombras e pessoas estranhas?

– Tudo bem, quer saber a verdade? suspirou a mulher esguia ao meu lado, se rendendo. O plano inicial da Irmandade quando foram atrás dos seus pais, era exterminar vocês também. Mas de alguma maneira que ainda não sei vocês simplesmente não estavam quando a oportunidade apareceu para eles. Existem outras razões bem maiores hoje em dia para que isso aconteça. Pouquíssimas pessoas sabem à respeito das Sombras, de onde eles vêm, o que eles fazem, e eu tenho orgulho de dizer .que foi minha melhor amiga que descobriu as coisas que sabemos hoje. Depois que a profecia veio á tona, não pudíamos esconder isso tudo do mundo para sempre, todos tiveram medo. Medo da guerra, medo do futuro e principalmente medo do príncipe. Porém você é umas das esperanças que os mantém de pé. Então vou falar rápido. Nós realmente não sabemos a verdadeira razão. Precaução em relação a uma das últimas esperanças dos Três Reinos? Vingança? Quer dizer, podem ser as duas questões. Pode ser tanto pelo fato de que se eliminarem você, uma peça de três derrubada, eles tem uma maior chance de ganhar; como pode ser medo de que sua mãe passou a você e sua irmã algum tipo informação importante do tempo em que ela esteve infiltrada. O tipo de informação que eles parecem temer. O ponto é: não importa o motivo, você está em perigo.

– Eu não tinha pensado nisso, e se estiverem atrás de Fin? E se ela for atacada por muito mais Sombras da Lua do que nós fomos? eu disse desesperada. Meu coração na boca.

– Se acalme. Eu não iria deixá-la sem proteção nenhuma, mandei um amigo de confiança para lá. Ele saberá o que fazer. E Sue me mantém informada de tudo. Agora faça o favor de inspirar fundo e relaxar. Aliás, estamos fazendo compras.

Alívio tomou conta de mim. Tudo vai ficar bem. Tudo vai ficar ótimo.

– Estou melhor. Acho. Bom me mostre um pouco mais a respeito de Core. Não vejo a hora de conseguir poder me virar ao invés de tremer e fugir ao sinal de uma Sombra da Lua.

– Adorei o plano, esse é o tipo de determinação que quero ver.

Andamos muito pela manhã ensolarada de Core. Nunca parei para pensar quantas cores existem, quer dizer quantas variedades! E é óbvio que Arina me fez tentar todas. Parecia até que Core era o país das cores! Tudo bem, eu nunca tinha considerado que de fato Core e cores é bem parecido.

– Quantas peças já compramos?- olhei para o número de roupas dentro de uma sacola de palha enorme que Arina segurava sem nenhuma dificuldade. Acho que vou te levar a falência, sem brincadeira.

– Não se preocupe depois eu cobro com abdominais e flexões. disse ela piscando divertida. Droga. Acho que ela estava falando sério. Tudo bem era bem justo. -Já que você nem consegue carregar a sacola sozinha. e caiu na gargalhada.

– Isso não é engraçado, quer dizer isso deve pesar uns quinze quilos!

Arina levantou uma sobrancelha ante a isto.

Passamos por muitas lojas, dentro dos itens que compramos se encontrava uma aljava com vinte flechas artesanais e um arco muito bonito, que Arina disse seria presente para uma garotinha. Fiquei me perguntando quem seria, já que Arina escolhera com tanto cuidado. Percebi que havia delicadas borboletas esculpidas por toda a empunhadura. A aljava era de um tecido macio, porém resistente que eu não conhecia, algumas Pedras de Luminosa minúsculas enfeitavam o desenho formando as asas das borboletas e em conjunto com um complexo e minucioso bordado constituía uma criação adorável. Deve ter sido meio caro, o que era um mistério para mim já que eu não entendia nada sobre o tipo de moeda da região das Três Ilhas.

Também adquirimos botas lustrosas, calças, camisetas confortáveis, e uma espécie de corset que eu sinceramente não gostei muito. Eu tinha certeza que no final das contas eu pareceria uma figurante do Piratas do Caribe. Não que não fosse empolgante de alguma forma, mas eu me encontrava desconfortável com aquilo tudo, tão diferente do Continente. Inclusive compramos algumas canetas emplumadas que Arina explicou serviam para mandar mensagens para qualquer lugar no mundo, entretanto somente mensagens nada secretas, já que com um raio maior de sete quilômetros ela podia ser interceptada usando técnicas ilegais.

Estávamos andando quando vi uma espécie de banner enorme chamativo e colorido que em letras cursivas se lia:

Baile dos Laços

O dia em que três reinos se tornam um só.

Solstício de Verão.

Me lembrei das minhas aulas de geografia que solstício era o dia em que a duração do dia e da noite eram iguais. O solstício de inverno ocorria em junho e o de verão em dezembro. No caso do Hemisfério Sul. O que só podia significar que as Três Ilhas ficavam no lado sul do planeta.

– Arina o que afinal é esse tal Baile dos Laços? perguntei curiosa.

– É uma festa que serve para relembrar a aliança entre os três reinos. A cada ano nos revezamos em uma ilha diferente, numa época diferente. Core: Solstício de Verão.

Recordei um capítulo do Livro dos Contos no qual dizia que nos Tempos Antigos as atuais irmãs viviam em permanentes conflitos. Cada um com seu tirano, cada terra tomou sua solução. Em Core, acabou a hereditariedade, em Acelentia, os dragões passaram a eleger o mais valente e em Profécia, governantes mulheres.

Se bem me lembrava parte dessas medidas tomadas para a retirada de poderosos corruptos foi que ovos estranhos foram achados próximos a vulcões submarinos do lado oposto ao Mar Gelado. O Mar Gelado era assim conhecido devido a sua consistência endurecida. Era como pisar sobre uma superfície firme, porém fina. As águas abaixo da camada superficial não eram nem frias nem sólidas. Entretanto este caminho era considerado seguro por anos, já que nunca nem uma rachadura sequer aparecera. Era também um dos caminhos mais usados para se chegar a outros reinos. Acelentia usava o ar.

Dragões.

Uma lenda antiga dizia que um espécime único desse animal um dia a muito tempo atrás nascera. A primeira linhagem. Este animal era diferente e único. Ele não expelia fogo, mas sim toda vez que sua bocarra abria uma geada saia. Uma geada de fresca e pacífica paz. Num certo dia essa paz se tornou tão contida que o dragão decidiu usar essa função para o benefício, unir as três ilhas, para que não mais separados ficassem aqueles que eram para unidos se manterem, ele abriu sua boca e congelou a superfície do Mar Gelado. Soltou um rugido de pura compaixão que diziam se parecer com o de um leão poderoso. Esse rugido se transformou em fogo ardente e originou um dragão de fogo. Com os anos a extensão desse mar, além da região de Castell, ficou conhecido como Oceano Pacífico.

– Mas o que nós fazemos nesse baile? -Perguntei soando um pouco patética de acordo com a expressão de Arina ante a minha pergunta.

– O que você acha? Que tal dançar?- disse ela rindo.

– Eu sei disso, o que eu quis dizer foi, o que nós fazemos além de dançarmos?

– A isso depende, a maioria dos jovens participam de todos os tipos que eventos sociais de pessoas com a idade deles, creio que às vezes se torna meio entristecedor conhecer um único grupo de jovens sua vida inteira. Eles ficam empolgados com a ideia de conhecerem novas pessoas, acho. acrescentou Arina Vejo que adolescentes não mudam nunca, em qualquer lugar do mundo que eles estejam. riu consigo mesma. Não acha uma excelente ideia você conhecer novas pessoas, Laura?

– Eu? Mantenha-me fora disso. eu disse um pouco aterrorizada. Eu nunca fui muito boa em sociais.

– Ah! Isso seria perfeito! Temos de comprar algo para você, que tal verde? E laranja! citou Arina empolgada demais, se quer mesmo saber. Isso não ia dar certo de jeito nenhum.

– Ah, não

Adianta dizer que Arina me arrastou dali à força? Acho que ficou meio óbvio pelo fato de eu nem sequer ter conseguido terminar a frase acima.

Vimos todo tipo de vestido. Tomara-que-caia, balonè, curto, longo, decote império, assimétrico de um ombro só, ombro a ombro, sem decote, com pregas, justo, saia evasê, decote coração e entre muitos outros. Sem falar dos tecidos, pelo jeito as pessoas usavam tecidos naturais no dia-a-dia, mas quando se tratava de uma festa, extravasar era a palavra, inclusive nunca tinha visto a maioria daqueles tecidos na minha vida. Arina comentou que por ser um baile significava nada de vestidos curtos. O que impulsionou o vendedor a pedir a ajuda de sua mulher.

– Ela entende mais do assunto. -disse ele.

Diferentemente das feirinhas mal arrumadas e sem ordem que eu conhecia, as lojinhas tinham um senso de organização impressionante.

A esposa do dono da loja chegou com um sorriso genuíno no rosto e me analisou. Isso era meio desconcertante, eu nunca gostei muito de ser extremamente notada.

– Que cor prefere para seu vestido, meu bem?

– Não. Por favor.- interrompeu Arina antes que eu pudesse responder. Ela não tem bom gosto, o máximo que ela vai dizer vai ser preto. Ou marrom.

– Eu não vejo nada de errado com marrom, uma cor discreta e combina com a minha pele. disse eu em minha defesa.

– Você é pálida! Marrom definitivamente não combina com você.

Olhei a mim mesma, eu não era assim tão pálida.

– Deixe-me ver, tenho a cor e o vestido ideal. a mulher então desapareceu de vista e se embrenhou nos fundos da loja.

A senhora era extremamente gentil, porém eu tinha a impressão de que quando ela olhava nos olhos de alguém ela olhava o mais profundo. O que era um pouco inquietante. Ela usava um vestido sem mangas fresco e um pouco flutuante. Devia estar perto dos cinquenta e seu marido parecia amá-la intensamente. Dava para notar só de olhar. A esposa do comerciante voltou com dois vestidos em mãos, um era bem simples, porém de um elegante preto que parecia brilhar quando o tecido se movia. Era muito bonito.

O outro era azul.

Eu quase fraquejei ali mesmo quando notei a cor. Meus joelhos pareciam serem feitos de gelatina. Meu coração bateu mais rápido e eu estava pensando maluquices que me faziam querer bater na minha própria cabeça com um taco de beisebol.

O vestido era azul tempestade.

Da mesma cor dos olhos da pessoa que com certeza devia ter me enfeitiçado para entrar assim tão profundamente no meu subconsciente Eu tinha que parar de pensar nele. Eu o vira uma única vez! Quer dizer, acorda terra chamando Laura. O que eu estava pensando?

Na verdade, eu o vira duas vezes. E pensando bem provavelmente ele trabalhava para a Irmandade, a organização que matara meus pais, só para deixar bem claro. E que estava tentando me matar. Tudo bem, ele não era o Príncipe nem nada, mas mesmo assim carregava certo nível de culpa pelo que a Irmandade fizera.

Arina pegou o azul e estendeu-o a minha frente enquanto a senhora segurava o preto olhando atentamente minha reação. Mostrando claramente qual era alvo de sua preferência. Arina se posicionou ao lado da senhora esperando minha resposta.

– O preto ou o azul? perguntou a senhora. Quase como se a frase tivesse duplo sentido. Quase como se ela soubesse que eu deveria escolher algo mais além de vestidos.

– Não sei. eu disse.

Eu não podia levar o azul. Quer dizer ele era perfeito. Ele possuía um caimento na barra quase esvoaçante apesar de não ter um grande saiote. Era muito diferente de todos os vestidos que eu vira até agora. Era diferente de todos os vestidos que eu vira na minha vida inteira. Tudo bem, talvez alguém não o usasse no tapete vermelho e mesmo assim eu me apaixonara por ele. Seu decote era em forma de coração e fitas douradas se entrelaçavam formando tranças finíssimas nas costas desenhando um complexo padrão, de um jeito delicado. As fitas passavam para frente em um ombro e seguravam o busto como num vestido império. O tecido era azul safira de um tom tão profundo que eu quase podia ver aquele céu noturno se cobrir de estrelas.

O preto nem tinha comparação, mas eu tinha de escolhê-lo, era uma forma mental de dizer saia da minha cabeça, azul. Uma coisa mais psicológica. A verdade era que eu sentia que quando eu o usasse todos saberiam o motivo da minha escolha. Todos olhariam e saberiam o que eu estava pensando.

Acho que meu cérebro veio com problemas de fábrica.

– Eu vou escolher - respirei e quase não pude acreditar em minha boca quando disse. o azul.

A senhora olhou para mim com um olhar misterioso no rosto e sorriu abertamente como se estivesse aliviada pela minha escolha. O que eu não entendia, era só um vestido, não?

– Sábia escolha. disse ela como se a escolha que eu acabara de fazer fosse mudar o destino de todos nós.

– Finalmente uma cor nessa menina. disse Arina com um sorriso satisfeito. Nada de preto. Quanto custa?

– Não se preocupe isso é por conta da casa. Um presente.

– Mas a senhora não pode fazer isso, seria injusto. É o vestido mais lindo que eu já vi! exclamei.

– É rude recusar um presente. Aceite.

– Hum... Já que insiste. o que eu poderia dizer?

Agradecemos o presente e saímos para as ruas ensolaradas de Core. A avenida principal estava mais cheia do que quando chegamos. A rua mais larga do reino agora estava entupida de gente, vendedores mostravam suas mercadorias e clientes se aproximavam das lojas interessados. O ar estava cheio de sons de diversos tipos, comerciantes que anunciavam ofertas, conversas e risos, e inclusive algumas discussões de negociações. Sons de flautas, arpas, violões, e outros instrumentos desconhecidos tocavam um ritmo alegre e cantante.

Seguimos em meio a multidão e Arina se voltou para mim dizendo que já era a hora do almoço. Me guiou até uma travessa menos movimentada e continuou caminhando. Prosseguimos até o fim da rua e chegamos até uma pequena praça mais calma. Avistamos então uma construção simples na qual Arina afirmou possuir a melhor comida da vila. O estabelecimento era maior do que eu imaginara inicialmente. Muitas pessoas riam e cantavam enquanto comiam suas refeições. Vários andares no estabelecimento me surpreenderam. O sistema de ventilação devia ser muito bom, eu nem sentia calor, nem falta de ar. Nos sentamos em uma mesa pequena nos fundos perto de uma janela num local arejado no primeiro andar. Uma senhora já nos seus sessenta nos atendeu.

– Arina quanto tempo que não te vejo por aqui! Esteve muito ocupada com uma de suas missões, não?

– Sempre trabalhando. Essa sou eu.

– Ora, ora e quem é essa mocinha com você? disse a senhora me analisando abertamente, suspeita. Devia estar escrito na minha testa: Continente.

– Laura, - disse eu estendendo minha mão. - é um prazer finalmente conhecer o lugar de onde bem me disseram tem a melhor comida de Core. eu disse com um sorriso.

– Ah devemos então manter essa reputação não acha? disse a senhora piscando para mim.

Pedimos uma porção de batatas, que pareciam muito com dorês, com alecrim e ervas. O prato principal veio em seguida, peixe grelhado regado a um molho desconhecido, mas delicioso. Estava maravilhoso. Aquela era definitivamente a melhor comida que eu já comera. Não que fosse requintada nem nada, tudo estava tão caprichado que eu não tinha do que reclamar. Bebemos suco de acerola, que Arina explicou ser muito cultivada em Core por causa do clima tropical. De sobremesa a senhora nos trouxe dois pedaços de bolo de amora recém-saídos do forno.

Agradecemos a senhora pela comida e Arina pagou a conta. Quando estávamos saindo pela porta um garoto venho correndo em nossa direção ofegante.

– Arina, o Conselho quer falar com você, não sei do que se trata, mas Marel parecia um pouco nervosa. Acho que é algo sério.

O garoto não devia ter mais de dez anos, o seu cabelo estava um pouco desgrenhado e era de um tom areia suave. Suas roupas eram em tons variantes do bege ao marrom, e percebi uma pluma verde saindo do seu bolso esquerdo.

– Eles todos estão na cidade? Arina perguntou desconcertada.

– Sim, saíram do Castelo Iluminado e todos eles estão aqui na sede do sindicato.

– Tudo bem. Ela então se voltou a mim. Acha que consegue se virar sozinha por meia hora? Isso é importante, mas não quero te deixar desprotegida.

– Arina fique tranquila, eu posso voltar à feira em meio à multidão, ninguém vai me reconhecer. Nem mesmo a Irmandade. Além disso, não há como eles saberem que eu já estou em Core, eu cheguei ontem de noite.

– Tudo bem, olha se isso não fosse mesmo importante eu não estaria te deixando aqui, está claro? E pegue isso aqui. ela então me entregou uma capa verde grama que ela insistira em comprar, já que como ela disse na cor preta só faltaria à foice para parecer A Morte. Suspirei. Eu ia ter mesmo de usá-la. Vai ser mais difícil de te reconhecerem com isto. disse ela ainda um pouco relutante em seguir o garoto.

Até parece, o manto era mais chamativo do que se fosse preto, mas pensando bem eu não vira ninguém em Core usando preto.

– E também pegue isto para qualquer eventualidade. Arina me passou uma adaga antes de se virar e correr atrás do garoto.

Segurei o tecido e depois me cobri com ele. Segurei firme a adaga e guardei em baixo do tecido. Seria difícil usá-lo no calor do meio dia, porém quando o vesti senti o material incrivelmente fresco contra minha pele. A capa se ajustava a temperatura corporal para não ficar quente ou frio de mais! Que legal!

Segui pelas ruas pela qual viemos em direção à avenida principal novamente. Reconheci algumas casinhas e continuei sem problemas. Levantei a touca verde sobre minha cabeça e continuei explorando a feira. Passei por alguns estandes com menos produtos analisando algumas flautas transversais artesanais. Estava distraída olhando atentamente os produtos exibidos quando senti um calafrio subir pela espinha. Um pressentimento estranho. Um frio na barriga me fez impaciente. Me virei para trás analisando a multidão. Geralmente esse pressentimento se referia a olhares indesejados. Ou indiscretos. Senti que a essência desse olhar já me era conhecida.

Desafio e coragem.

Obstinação e solidão.

Segurei a touca mais firmemente sobre minha cabeça. E se ele já tivesse me visto? Ele não devia estar ali. E se ele me reconhecesse? Eu ainda tinha uma pequena chance dele não ter me visto ainda. Eu precisava me mover de qualquer maneira.

Olhei para trás mais uma vez e vi um rosto muito assustador iluminado pelos raios de sol a seis metros de distancia na multidão. Uma espécie de fumaça parecida com letras escritas em nanquim se enroscava ao redor do olho esquerdo. Olhos negros que olhavam diretamente em minha direção. Um leve sorriso, se é que aquilo era um, se encontrava na comissura de seus lábios malvados. O ar ao seu redor parecia mais gelado e eu senti um calafrio estremecer meu corpo.

Meu coração triplicou seus batimentos e meus lábios de repente ficaram secos.

Comecei a caminhar na direção do começo da avenida, usando os outros como cobertura, sempre checando se qualquer outra figura me seguia.

– Vocês não deveriam estar aqui. Tem alguém aqui que possa levá-las para outro lugar? Um parque qualquer coisa. Só faça. a mulher estava vestida numa roupa azul e um emblema policial estava preso em seu peito.

Olhei para a casa agora em um profundo vermelho e dourado, como se as cores estivessem duelando pelo poder. As línguas de fogo pareciam mais famintas a cada instante. Eu mal entendia o que diziam ao redor, ao que acontecia, mas fui pega num estado congelado, num estado de dormência.

Eu sentia que algo estava errado, e a tristeza mais fria e cruel assaltou o fundo do meu coração como se ele soubesse que algo estava fora do lugar. Olhei para o outro lado. Uma fita amarela separava a multidão de curiosos da casa em chamas. Várias pessoas pareciam desesperadas pelo fogo e pela fumaça preta, mas um único homem parecia quase feliz. Se assim pudesse ser descrito. O homem parecia ter uma mancha no olho. Não, não era uma mancha eram letras. Manuscritos marcados como uma tatuagem em sua pele. E era como se a fumaça da casa tivesse contaminado sua marca, porque esta parecia se mover junto numa dança macabra e antiga.

Vi então mais um homem suspeito que me olhava com o mesmo ódio no olhar à direita. E mais um a esquerda. Continuei andando sem mais olhar para trás, eu tinha que ser discreta. Estava tão nervosa de ser pega que esbarrei em um transeunte.

– Me desculpe. Eu estava tão distraída- olhei para cima e congelei.

Dois olhos azuis safira dentro de uma capa marrom tomaram sua atenção em mim. Minha sorte podia ser melhor?

– Você não devia estar aqui. - disse ele em tom de repreensão num sussurro para que somente eu ouvisse. O que não foi muito difícil já que eu há pouco quase caíra durinha ali de susto, e sua mão me segurou perto a ele.

Pude sentir o cheiro que antecede a chuva invadir meu nariz e eu tinha certeza que estava se enraizando em minha mente. Porque aquele perfume tinha que ser tão viciante e confortador?

Sua altura se sobressaia a minha, 1,80 parecia bastante para o meu 1,63.

– O que você quer? Me diga de uma vez. Eu não sei como ficou sabendo que em vim para cá, mas eu não vou deixar você me matar nem nenhuma das Sombras atrás de mim.

– Você está cercada por Sombras e a única coisa que pensa em fazer são perguntas? disse ele como se eu estivesse fora de mim. Depois me puxou para um canto menos movimentado. E me mandou tirar o meu manto e trocar por outro. Isto vai distrair eles por um tempo. Você é boa em despistar.

– Bem,você quer me matar não é? Não é essa a razão de sempre ter Sombras atrás de mim? De você estar sempre me perseguindo? Qual será a diferença entre você e eles? Todos querem me mandar dessa pra uma melhor, não é como se eu tivesse uma escolha.

– Ah! Eu devia saber que você iria querer discutir uma hora dessas. Você por acaso pensou em fugir? Porque eu não estou exatamente te impedindo. Ele disse indignado. Laura, pelo menos uma vez na vida ouça um bom conselho e o siga. Pare de argumentar comigo e vá logo.

– Porque quer me ajudar? perguntei mais a mim mesma do que a ele.

– Não quero ter que matar ninguém e se eu puder vou fazer de tudo para salvar aquilo pelo que os seus pais se sacrificaram.

Por um momento as palavras demoram para serem processadas no meu cérebro.

– O que você sabe sobre isto? em um segundo minha adaga estava em seu pescoço.

Ele merecia certo credito por nem sequer ter balbuciado ante a visão da lamina.

– Eu vou repetir. Você deveria estar muito longe daqui.

– E eu vou perguntar só mais uma vez: o que você sabe sobre isto?

– Você não vai gostar do que eu tenho a dizer.

– Eu nunca pensei que seria. Eu quero pelo menos uma vez saber a verdade sem rodeios.

– Se eu prometer que te conto você da o fora daqui o mais rápido que puder? disse ele entre dentes obviamente contrariado.

– Prometo.

– Eu irei te contar só não irá ser hoje.

Soltei um bufo nada cortes ante a isto. Claro! Quem pensaria em confiar em uma Sombra? Eu era a única idiota da historia a fazer isto. No fundo eu sabia que o fato de me querer a salvo estava ligado ao seu depoimento do fatídico dia.

– Todos vocês corinos por acaso fizeram um trato de não me contarem nada do jeito fácil? Como posso saber que irá honrar com a sua palavra?

– Não sabe.

Me virei e fugi para qualquer lugar longe dali.

Eu estava pelo menos quinze minutos a procura da mulher que me trouxera para Core. E nada dela dar o ar de sua graça. No final das contas eu voltara ao restaurante e resolvera enrolar até ter certeza de não estar sendo seguida.

Depois de meia hora eu fui a sua procura e ali estava eu já a quinze minutos andando por toda aquela feira sem um único sinal de Arina, ou do menino que a levara até o tal compromisso importante.

De repente vi sua forma ao longe. Ela estava acompanhada por oito pessoas. Oh não, isso não era nada bom. Andei em sua direção reconhecendo a mãe de Arina, Marel. Ela usava roupas amarelas vivas e uma manta ao seu redor esvoaçante dourada assim como os outros sete. Um colar que antes eu não tinha reparado pendia em seu pescoço e em todos os que estavam ao seu redor, com exceção de uma menina loira bem jovem ao seu lado.

Se eu não soubesse que Arina era filha única, pensaria que aquela era sua irmã mais nova. A menina tinha a minha idade e não usava um manto, nem um pingente de Cristal de Luminosa como o Conselho de Tinta.

E eles estavam ali por mim. Eu podia sentir.

A multidão se abria para pessoas tão importantes.

Todos eles estavam ali.

Estava a horas sentada numa cadeira esperando a boa vontade do Conselho.

As portas da grandiosa sala estavam fechadas e eu estava impaciente. Arina já estava lá dentro há horas e eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Desde que ela anunciara que eu era o motivo de tanto alvoroço e me trouxera para a sede do sindicato, eu não falara com ela novamente.

De repente as portas se abriram e em um segundo eu estava de pé. Arina parecia exausta, três horas argumentando sei lá o que com um bando de pessoas influentes faziam isso com você.

– O que está acontecendo? Qual é o motivo da reunião?

– Se acalme Laura, e sente aí. Eles estão decidindo seu futuro.

– Como assim o meu futuro?

– Você será treinada como uma guerreira, como uma Caçadora. Seu futuro será grande e difícil, mas sei que pode fazer o que está fadada a fazer. Eu irei te treinar e você será tão provida de fé que nem a mais forte Sombra afetará você. Eles não irão te assustar, você não os temerá. E vencerá junto com o nosso povo.


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