O Príncipe Cinza escrita por Micaela Salvya


Capítulo 6
Muita Caminhada Para Uma Garota Sedentaria




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/353293/chapter/6

Eu não fazia ideia de como seria difícil ir a Core. Quero dizer, Sue me ensinou que eu deveria abrir uma...porta.

– Uma o quê?

– Uma porta. Isso é bem mais prático do que passar pela alfândega, além de mais barato.

– Como assim uma porta?

– Use Yz e com uma ajudinha do seu Artefato....ah, você não tem um. Acha que usar o da mãe dela vai funcionar?- perguntou Arina se voltando à Sue.

Me lembrei, então, onde já tinha sido mencionado esse tal artefato em outra conversa.

– Afinal, porque todo mundo quer tanto essas coisas velhas de museu?

– Como assim...todo mundo? -indagou Sue com ares de suspeita.

– Não sei o que vocês querem, mas eu não tenho nenhum artefato.

– Você fala como se não fosse a primeira vez que ouvisse isso. - Sue exclamou com um cenho franzido.

– Porque não é.

– Alguém mais comentou à respeito? - cortou Arina curiosa e meio receosa.

Eu não tinha certeza se podia contar a elas. Eu tinha a sensação que Sue não gostaria da notícia de que eu escondera um fato importante na noite em que Batman assombrou meu quarto.

– Talvez? -disse eu com uma careta culpada. Como sempre, eu falara demais.

– Você está escondendo alguma coisa de mim? Fale de uma vez, Laura.

– Tudo bem, teve essa pessoa que apareceu do nada numa noite à algumas semanas atrás. E eu não contei a verdade naquela noite quando disse que um pássaro entrou pela janela, porque eu não queria te preocupar. E ele não levou nada nem apareceu novamente nas últimas semanas, então achei que o melhor seria esquecer essa história, foi isso.

– Ele? Isso não é bom sinal. Como se parecia fisicamente? -Arina perguntou aflita, um pouco ainda temerosa.

– Não sei ao certo. Usava uma capa que cobria o rosto então não pude ver muito além de seus olhos que eram azuis. Depois simplesmente desapareceu. Desculpe acho que não posso ser muito útil.

– Alguém mais além das Sombras da Lua?

– Quem?

– As pessoas que enfrentamos agora a pouco. São chamados Sombras da Lua. - explicou Arina.

– Me desculpe, eu esqueci, esse mesmo garoto, lá pelos dezenove, apareceu no colégio quando fui pegar meu histórico e por pouco não vi que ele enganou a secretária e contou a pior das explicações já ouvidas. - eu não tinha inventado o cheiro de tormentas na secretaria da escola. Ele mesmo confirmou sua identidade quando mencionou a noite anterior.

– Documentos escolares sendo roubados, um homem entra no seu quarto durante a noite e você nem pensa em me contar?! - disse Sue preocupada.

– Eu achei que só fossem coincidências, sem dizer que ele desapareceu nas últimas semanas. Me desculpe mesmo Sue, escuta, pessoas estranhas me seguem, - mandei um olhar acusador à Arina - alguém invade meu quarto, eu descubro possuir uma espécie de poder chamada Yz, loucos me atacam na rua, e você esperava que eu me sentisse em plena sã consciência de chegar e simplesmente falar: ei Sue, então um cara me perguntou sobre um tal Artefato e depois nunca mais o vi; em vez de pensar que estou pirando?

– Esqueço que até pouco tempo atrás você mal sabia sobre tudo isso, querida.

– Mas aliás, porque todos aqueles caras, incluindo esse aí, estão atrás de mim? O que afinal eu tenho haver com essa história?

– A verdade é que há muitos anos as Sombras da Lua e a Irmandade estão atrás de você e Fin. Sua mãe era uma das melhores Caçadoras já vistas e conseguiu fazer o que ninguém jamais conseguiu. - relatou Sue - Se infiltrar.

– Caçadora, como assim?

– Eu sou uma, sua mãe foi e você surpreendente também é. Não sei se sabe sobre o nascimentos dos príncipes gêmeos, mas suponho que sim já que foi seu pai que relatou tudo o que sabia no Livro dos Contos. - uma pausa e um pigarro e Sue passou a história à frente - Depois que Vossas Altezas nasceram.- recomeçou ela. - Um rebuliço se fez em todos os três reinos. Nunca houve tal anormalidade, nunca se viram irmãos tão diferentes, apesar dos nossos Poderosos estarem radiantes com o nascimento de tamanha preciosidade, houve muitos Conselheiros que mantinham um pé atrás. Que não confiavam na Yz e perderam o poder, perderem a fé.

– O Conselho de Tinta, porém desvendou uma profecia há muito dita, escrita num livro dos Tempos Antigos. Essa profecia citava diversas charadas, mas para a surpresa de todos, os irmãos estavam preditos a nascer, os Príncipes Ícarus e Zane eram mencionados nela. Ambos estavam destinados a serem exceções às normas antigas, a mudarem aquilo que conhecíamos a anos. Um deles seria o primeiro rei sucedido de outro rei, o primeiro em séculos, e o outro desencadearia uma guerra que poderia destruir a força que rege nossos territórios. Uma guerra que só poderíamos triunfar se três personagens fossem bem sucedidos. Nós achamos que você é a primeira de que ouvimos falar desses três. A esperança para que o povo retome a fé que ficou instável para alguns de nosso povo.

Eu? O que eu teria que fazer? Eu nunca fora muito boa com grandes responsabilidades.

– Os Conselheiros de Tinta, então, com a permissão do rei, criaram as Caçadoras. Uma guarda secreta diferente da Guarda-Real. Um exército de guerreiras preparadas para a guerra. E sua mãe foi uma das melhores que já existiu. Ela que descobriu o pouco que sabemos sobre as Sombras da Lua. Os três filhos do último rei dos Tempos Antigos deram origem a uma espécie de sociedade chamada de Irmandade Nanquim, aqueles pertencentes a este culto se autodenominavam assim. Porém não fazemos ideia onde habitam, qual o seu propósito, nem o que tanto tramam às escondidas.

– Cada Caçadora possui um Artefato, no caso o meu é este aqui. - Arina segurou seus cabelos de modo a expor seu adorno que eu vira anteriormente brilhar numa luz dourada enquanto enfrentávamos as cinco Sombras da Lua. Sinceramente eu entendia bem o porque desse nome já que se eu não tivesse visto com meus próprios olhos aquelas sombras se mexendo quase com vida eu não acreditaria nessa loucura. - O de sua mãe é o colar de ônix, que foi herdado a você.

Examinei melhor o ornamento, quer dizer, Artefato de Arina, os fios de ouro pareciam se enredar com seus fios escuros, dando um lindo contrate, e pequenas jades incrustadas alcançavam o centro da peça onde se via um único espécime maior que os outros de cor verde esmeralda, agora eu entendia o porque do nome jade imperial. A cor era magnífica.

Então isso era um Artefato. Uma peça usada por cada Caçadora. A gargantilha de ônix de minha mãe, era isso o que aquele estranho procurava.

O que muitas pessoas não sabem é que na verdade a verdadeira pedra ônix é uma mistura que de fato não tem nada de preto. Não é naturalmente dessa cor, algumas são marrons, outras com somente o meio de cor escura. Porém não é de tão grande valor como por exemplo uma jade imperial.

– Sabemos que já o usou, querida -disse Sue.- Porque podemos sentir que parte da energia que estava no objeto passou a você. Parte da Yz que estava contida no colar passou a você. - explicou a senhora. -Talvez fora exatamente isso que você precisava para produzir Yz. Uma espécie de gatilho.

– Tudo bem, mas como supostamente eu deveria abrir uma porta com um colar?

– Muito simples. Se concentre. Aqueles que tiverem a fé do tamanho de um grão de mostarda, dirão a montanha: vai daqui para lá e ela irá. Nada será impossível para você.

Respire devagar, pensei. Tirei o objeto de seu esconderijo e segurei ele com delicadeza na palma da mão. Fé, tenha fé. Como eu conseguiria focar minha fé a sair como eu fizera antes? Imaginei uma porta se formando no ar. Pensei mais forte. Abri os olhos.

Nada.

Senti frustação. Analisei e pensei que seria melhor se eu o colocasse em meu pesçoco. Prendi o fecho e segurei a pedra central pensando forte. Analisei a pedra do formato de uma lágrima escura. As bordas eram de um tom escuro de marrom e o centro era totalmente negro. Uma porta. Uma bonita e florida porta. Como eu deveria imaginar essa tal porta? Abri os olhos para checar se nesse meio tempo ela não tinha aparecido. Não, nada de porta florida. Suspirei e tentei novamente, dessa vez pensando em minha mãe Se ela de fato um dia fora uma Caçadora, essa seria minha última prova para acreditar em tudo. Em Core, em reis e rainhas, em Yz. Foi quando eu senti um calor reconfortante emanando da pedra. O calor se espalhou pelo meu corpo inteiro e pareceu alcançar minha alma. Um leve sorriso se estendeu em meu rosto. Aquele calor me lembrava de amor. Sera que a amor só vinha depois da fé? Como uma manifestação diferente desse sentimento? Quando pensei em minha mãe quando pensei que aquilo era uma das únicas coisas que haviam me restado sobre ela, sobre eles, senti amor, porque apesar do fato deles não estarem mais ali ao meu lado eu ainda os amava muito. Felicidade, alegria, êxito. Parecia que a jóia estava me mostrando o que Romania sentiria nesse momento e isso era passado a mim. Eu não conseguia dissipar o sentimento de paz, plena paz sobre mim. Uma paz que invadia minha alma e me forçava a sorrir e que levava minhas preocupações, frustações, tristezas, saudades, tudo embora. Abri meus olhos devagar.

Uma porta.

Eu conseguira! E essa era minha última prova de que tudo isso era real. Que minha mãe fora uma Caçadora e eu também seria uma. O objeto retangular se encontrava no meio do cômodo. Era de uma madeira rústica e um pouco gasta, mas de aparência extremamente acolhedora. Flores rosadas, vermelhas, e brancas pareciam se enroscar no batente. Suas raízes acolhiam a este como se nunca fossem soltar. Desenhos se enroscavam na madeira, delicadas gravuras que lembravam minha mãe. Fiquei boquiaberta. Como tudo isso era possível? Me sentei na cadeira da escrivaninha ainda meio pasma. Então cada palavra escrita no Livro dos Contos era... real?

–-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Uma semana depois

Eu não podia acreditar. Tudo aquilo não podia estar acontecendo. Eu estava em estado de choque e ao mesmo tempo meu coração nunca batera tão rápido.

Eu estava em Core.

O lugar que sempre habitara meus sonhos de menina. Como uma garotinha que sonhava ser um princesa eu sonhava conhecer Core. Em ver as pessoas, em estar aqui. Eu nunca imaginara que seria exatamente como sempre pensei que seria. Era uma reprodução tão fiel aos meus sonhos que eu podia jurar que aquele lugar se sustentava somente com a minha imaginação. Entramos pela Floresta Manchada e estávamos seguindo uma trilha invisível que só Arina conhecia. Sue decidira ficar no "Continente" e adiaria sua estada lá por Fin, como ela mesma dissera.

Eu tivera de explicar a todos que eu iria viajar e pensar a respeito da minha carreira futura. Faculdade e tudo. Meu coração apertava só de pensar em Fin e Catarina, eu sentia uma culpa enorme por não contar toda a verdade. Principalmente para Fin e tinha o direito tanto quanto eu tinha, mas Sue me fizera esperar, ela mesma contaria. No tempo certo. E depois que Fin soubesse de tudo visitaria as Ilhas Castell como eu.

Sue mencionara Continente. Que palavra mais estranha para descrever o lugar onde vivi minha vida inteira.

A mata fechada ao invés de me sufocar, ou irritar me trazia um profundo sentimento de liberdade. Para ser sincera me lembrava da Reserva onde eu, meu pai, Fin e minha mãe costumávamos ir. Provavelmente essa era a razão deles gostarem tanto de visitá-la. Era tão esquisito se referir a Core como um lugar real, se referir como a terra dos meus pais onde eles nasceram.

A mata era bem fechada nessa região, e provavelmente tropical. Apesar de estarmos em uma zona relativamente quente, dentro da cobertura das altas copas das árvores estava fresco, eu poderia dizer que durante o dia fazia muito sol. O cheiro de natureza invadia meus sentidos e o frescor das árvores fazia bem aos meus pulmões. Uma vez ou outra nos deparamos com animais que se deram muito bem com a presença humana, a maioria parecia já estar acostumada. Andamos em média duas horas, cortando a selva para chegarmos num local menos selvagem. Arina me disse que era porque estávamos nas área baixas e já próximas de nosso destino. A aldeia. Continuamos, revezando a bolsa de água. Suor se espalhava pelo meu rosto e em meu corpo senti uma adrenalina contagiante apesar do meu sedentarismo. Já Arina algumas vezes lançava um olhar perplexo pelo meu aparente cansaço, já que ela mal começara a ofegar como no meu caso. Durante todo caminho Arina iluminou a noite com brilho suave do seu Artefato.

– Precisaremos de um treinamento ainda mais rigoroso do que pensei. -disse a mulher quase resmungando para si mesma.

Finalmente depois de mais meia hora, uma bolsa vazia de água e uma vontade enlouquecedora de ir ao banheiro, chegamos a vila. Arina disse que, por incrível que pareça, apesar de Core ser um reino um pouco menos tecnológico do que as grandes cidades do Continente, havia sistema de água e esgoto. Isso foi mesmo uma surpresa. Arina também acrescentou dizendo que na verdade todo o tipo de tecnologia usada nas Ilhas Castell vinha de Core. Porque Core era cidade Subterrânea, e bem para se ter uma cidade subterrânea, é necessário tecnologia, certo?

A vila não era exatamente como eu imaginava. Para ser sincera era completamente diferente.

Chegamos por uma espécie de rua que era na verdade um caminho de terra batida e pedras. Casas bem arquitetadas e meio juntinhas demais foram construídas dos dois lados da rua. Me lembravam bastante da minha cidade no Continente. Inclusive eletricidade havia ali. Na verdade não era bem isso. Globos de luz flutuantes pairavam no ar iluminando todo o caminho e eu olhava fascinada o alvo de meu interesse. Tubos estranhos ficavam em frente as casas, grande o suficiente para duas pessoas.

– Arina, como esses globos flutuam e brilham? -perguntei sem conseguir desviar meus olhos hipnotizada.

– Você ainda não se acostumou, não é? Tudo, e quando eu digo tudo, eu quero dizer tudo mesmo, provém de Yz. O nosso lar é regido por Yz.

– E as pessoas simplesmente saem por aí criando globos cintilantes?

– Vocês não? - jogou ela. Como se fosse a coisa mais normal do mundo e eu fosse a doida.

Suspirei. Eu tinha que aprender logo como as coisas funcionavam.

Arina também me explicou que os tubos eram saídas das áreas subterraneas. Diversos pequenos carros circulavam vias como as de metro e as ruas na superfície, eram somente usadas para pessoas, sem acidentes envolvendo motoristas e pedestres. Engenhoso. Eram diversos níveis de vias sob a terra. O primeiro nível era só de carros, o segundo só de transportes públicos etc. Fiquei me perguntando quantos níveis eram possíveis em uma pequena ilha no meio do pacífico que nunca ninguém descobriu. Pelo jeito muitos.

Andamos por quinze minutos até chegarmos em uma casinha simpática amarela bem mais distante da rua principal, da qual a mulher ao meu lado observou dizendo que com duas horas de Túneis, nos levariam ao grande castelo -não que eu soubesse o que eram esses Túneis. Quer dizer, obviamente eram buracos dentro da terra onde as pessoas se locomoviam, mas ela fez parecer como se fossem tipo metrôs. - que pude ver de longe iluminado por milhões de pequenas luzinhas que de onde eu via mais se pareciam com vaga lumes vagando sem rumo pela grande construção de cristais que de noite pareciam pedras cinzentas carregadas de eletricidade.

Pedras cinzentas. Me lembrei de uma passagem do Livro dos Contos que dizia que Zane, o Principe, tinha olhos da cor das pedras que cercavam o reino. Pedras da mesma cor que eu vi naquele momento rodeando o castelo. Mas porque de repente esse pensamento tomou minha mente? Sinceramente desde as últimas semanas eu estava na minha pior versão de mim. Coisas loucas estavam invadindo minha mente. E porque o príncipe era alvo de meus devaneios?

Passamos pela baixa portinhola da entrada. Um murinho baixo também rodeava a casa. Flores de diversos tons de amarelo cintilavam á luz dos globos. Um caminho acolhedor de pedras entalhadas de forma irregular levava a porta da frente e minha acompanhante simplesmente abriu-a. A casinha era extremamente simpática e aconchegante. As paredes eram amarelas e verdes de um jeito alegre também. Era de perceber o gosto dos moradores. Entrei meio sem jeito sem saber direito o que fazer e avistei uma senhora adorável e sorridente vindo nos recepcionar.

– Minha filha, quem é essa jovem? - disse ela com um caloroso sorriso capaz de aquecer o cômodo.

– Finalmente encontrei-a, esta é Laura Hunter, a filha de Ania e Timótio. - me surpreendi com o nível de intimidade do apelido. Ania de Romania. Será que elas foram assim tão próximas?

– Oh meu Deus, quem diria que conseguiríamos, hem? Ah, estou tão feliz, que tal um chá de camomila?

Segui a alegre senhora até a cozinha.

– Realmente, me lembro bem daqueles dois. Um casal tão apaixonado, nunca vira tamanha teimosia em duas pessoas, devo dizer. Acredita que demoraram dois anos para assumirem que se amavam? Se bem que eles devem ter passado isso a você, não quero nem pensar na soma dessa quantidade de teimosia em uma única pessoa, uh, não quero não. - disse ela rindo.

Talvez ela tivesse razão.

– Ah o que temos aqui! - a senhora, mãe de Arina virou sua atenção ao colar em meu pescoço. - Nunca tinha visto um Artefato passar de mãe para filha, o que será que isso significa?

– Não sei dizer, mãe. Não temos uma base de comparação já que nunca houve hereditariedade na história das Caçadoras, mas afinal os tempos estão mudando, só espero que seja para melhor.

Eu tinha milhões de toneladas de perguntas. Sobre Core, sobre meus pais, o que eles faziam, quem foram eles, o que fazia aquela tal pessoa me investigando e o que ele sabia sobre os Artefatos. Porém eu sabia que haveria o momento certo para as perguntas eventualmente.

– Nem me apresentei, me desculpe. Marel, me chame Marel. Sou a Conselheira no posto Amarelo. Acredito que já saiba um pouco sobre os Conselheiros de Tinta, não?

Uau. Isso era simplesmente uma grande informação para processar. O que ela queria dizer com Conselheira, era mesmo o que eu tinha na cabeça?

– Você é uma...- sussurrei sem acreditar. - ...Conselheira de verdade?

– Sim, imaginei que estava bem óbvio já que metade da minha casa é amarela. - disse Marel soltando uma gargalhada. - E a outra metade é verde.

– Você é casada com outro Conselheiro? Verde?

– Adivinhou certo. - disse Arina ao meu lado.

Eu nunca conhecera uma pessoa de tão bom humor. E apesar de tudo eu não sabia como eu ainda estava de pé Meu corpo estava exausto e eu sentia que passara um século desde a formatura. Nossa, como minha vida tinha mudado tão rápido? Perguntas e mais perguntas vagueavam minha mente, porém eu precisava de um descanso para poder digerir melhor a ideia, meu dia tinha sido extremamente exaustivo desde que eu fora atacada por Sombras da Lua e quase morta até a parte em que eu chegara a Core e fizera descobertas impressionantes, eu pouco podia fazer além de pensar que era um sonho. Mas não era.

– Acredito que seria uma boa ideia se fosse logo dormir, querida, dia exaustivo tenho certeza. Suas dúvidas serão esclarecidas com o tempo. Boa noite.

Arina me levou até um quarto de hóspedes pequeno, mas incrivelmente aconchegante. Uma pequena cama de madeira e um armário que ficava ao lado da porta do banheiro, se encontravam no cômodo. Tomei uma ducha rápida e cai na cama em um sono profundo.

–--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Na manha seguinte acordei com o raios de sol que entravam pela janela. Esfregue os olhos e levantei lentamente ainda um pouco sonolenta. Arina bateu em minha porta e mandou me arrumar rapidamente. Íamos conhecer a Academia Arco para Caçadoras.

Quando já estava vestida com a roupa que vi dentro do armário me olhei no espelho de corpo inteiro boquiaberta. Tudo bem, isso tudo era muito estranho. Eu parecia que estava sonhando para falar a verdade, deu um beliscão no braço para ter certeza. A pessoa que me encarava não se parecia comigo em nada. O reflexo mostrava uma menina nos seus dezoito, mediana, com os cabelos molhados na altura dos ombros, azeviche. Os olhos de mesma cor pareciam resplandecer. E o que mais me custava a acreditar, ela usava uma roupa ajustada de couro que me lembrava uma guerreira ao invés de uma deslocada que passava o dia lendo livros na biblioteca como eu. Era impressionante. Despertei do meu estado de estupor quando minha barriga roncou. Sai em direção a cozinha, seguindo o cheiro de deliciosa comida sendo feita. Eu estava faminta.

– Bom dia querida, teve uma boa noite de sono?

– Claro, nunca tive muitos problemas para dormir.

– Excelente, sente-se e sirva.

Comi de modo que tenho certeza que Dona Marel se perguntou se eu por acaso já tinha visto comida alguma vez na minha frente. Quando terminei a refeição Arina entrou na cozinha.

– Que bom que pelo menos aproveitou, creio que daqui para frente não terá refeições tão completas. - expos Dona Marel.

– Como assim?

– Mãe, estamos de saída, não espere acordada.

– Você tem tipo uns trinta e ainda vive com a sua mãe? -perguntei sem conseguir conter uma risada.

– Eu sou uma das melhores Caçadoras, esgrimo, falo sete línguas, sei atirar tanto facas, armas e flechas como ninguém, e é isso o que me pergunta?

Saímos, e a mulher ao meu lado simplesmente fingiu que eu não estava ali, não importava o quanto eu pedisse a ela que me ouvisse e respondesse as minhas perguntas.

Finalmente desisti, e decidi fazer o que Arina queria, segui em silêncio. Andamos pela rua pela qual chegamos, porem num certo ponto entramos no lado oposto pelo qual chegamos na noite anterior. Nenhum globo de luz estava mais no céu e pude ver melhor o castelo majestoso que se iluminava com os raios de sol como se fosse feito de puro cristal, mas de cor mais sólida.

– Oh meu Deus! É lindo. - O castelo era uma construção grande com seis torres e outras quatro menores. Eu nunca tinha visto algo tão lindo ou majestoso. Não era à toa que diziam que os antigos castelos tinham mais de duzentos quartos. Pela dimensão daquilo eu não duvidaria. As paredes não eram exatamente transparentes, mas refletiam a luz de maneira incrível.

– É Cristal de Luminosa, a pedra mais abundante em Core. A única mina no mundo inteiro. Diferentemente dos cristais normais quando ela brilha no sol nos mostra quem possui ou não Yz, mas esse evento só ocorre se os raios refletirem em você. Olhe.

Percebi então que grande parte dos raios que refletiam na mulher de cabelos castanhos longos e lisos a minha frente se transmitiam a ela como uma onda eletricidade por seu corpo. Um zumbido e logo depois ela parecia brilhar também. Seus cabelos começaram a ficar levemente dourados, mas não do mesmo modo como ela ficara quando usara Yz, mas sim como se estivesse sob a superfície, adormecido.

– Esse castelo é tão grande! Quantas pessoas moram lá?

– Muitas. E esse não é nem a metade do tamanho. Metade do Castelo de Luminosa fica debaixo da terra. Dizem que de lá se chega a qualquer lugar de Core por Túneis mais antigos do que se pode imaginar.

Olhei encantada. Como as coisas estavam indo eu diria que as surpresas não iriam diminuir. Elas pareciam que nunca iriam acabar e eu nunca iria me acostumar. As ruas estavam meio desertas e parte das pessoas que andavam na rua nem se quer notava nossa presença, e se faziam não se importavam muito.

–Vamos Laura, ainda tem muito o que aprender.

Seguimos pela Floresta Manchada e entramos numa trilha quase invisível, quase já que, bem, se não fosse pelas marcas deixadas nas árvores em diferentes alturas na marcação provavelmente para não ficar muito visível a localização exata, eu não teria reparado para onde estavámos seguindo.

– Essas marcas são para as calouras que nunca sabem que caminho tomarem para chegarem à Academia.

Finalmente depois de mais ou menos meia hora de caminhada chegamos a uma bela mansão de madeira bem mais larga e alta que a casa da minha tia no Continente. O que devo dizer era um grande feito. Percebi que parte da construção era subterrânea também. Uma menina com roupas parecidas com as minhas abriu uma espécie de câmara escondida camuflada e colocou a mão sobre a porta que brilhou e desceu para o subsolo. Uau! Eu me sentia numa escola de espiãs medievais. Ou algo assim, já que elas não eram exatamente medievais.

Entramos pelas enormes portas frontais e nos encontramos num imenso salão de recepção. Muitas meninas, mulheres e senhoras de todo tipo circulavam de um lado para o outro como se soubessem exatamente onde iam. Diferente de mim.

Segui Arina numa série de corredores e salas que nos levaram a uma sala maior e melhor decorada do que as outras. Pude ver seu grau de importância. Uma mesa estava equipada com sete cadeiras e uma senhora ocupava a cabeceira. A mesa era bem esculpida com milhares de minúsculos e minuciosos desenhos delicados. Parecia impossível ver todos mesmo que passasse minha vida inteira observando-os.

– Sentem-se. - disse a senhora de cabelos cinza pela idade, e olhos verdes como água salgada como se já estivesse a nossa espera. Seu olhar penetrante e firme analisou-nos por um tempo e depois se virou para a mulher ao meu lado. - Do que se trata?

– Eu a encontrei. Levei a cabo minha missão e desejaria que a menina pudesse levar a cabo a dela. Creio que seria de todos o desejo de que esta garota, filha de uma Caçadora e Caçadora ela mesma possa treinar como uma guerreira mesmo que isso vá contra as tradições. Sei que é uma decisão difícil, mas peço que ela seja treinada por mim.

– Como se você já tem seu próprio grupo, Arina? Como espera que isso aconteça? Quer que eu peça a outra para treinar sua classe?

– Não, claro que não, isso seria um desrespeito com minha alunas. Só peço que ela seja treinada junto com as outras.

– As outras que por sinal já estão um semestre inteiro a frente? - disse a senhora em descrença. - Não seria mais simples se ela começasse ano que vem? Já estamos quase no fim do ano letivo de qualquer forma.

– Tenho razões para acreditar que não nos resta muito tempo. Temos que treiná-la o quanto antes. Você sabe quais seriam as vontades de sua mãe, não sabe?

Um breve silêncio.

– Claro, isso eu não posso negar. - disse a senhora soltando um suspiro. - Me dê tempo para pensar e discutir o assunto com o resto dos outros professores. Até o final do dia sua decisão será tomada.

– Obrigada.

Arina já estava se levantando quando a senhora disse:

– Não perca a fé minha amiga, não deixaremos esta guerra acontecer. - seu sorriso foi reafirmador, entretanto Arina só assentiu e com uma formal mensura se despediu e deixou a sala. E eu fui atrás sem saber o que fazer.

Arina decidiu que o melhor seria que eu não ficasse nervosa a respeito do veredicto e que a melhor maneira de me distrair seria da maneira habitual em que a maioria das mulheres relaxam. Compras. Não que eu tivesse entendido de cara quando ela se pronunciou. Quero dizer, estamos em uma ilha minúscula sem qualquer tipo de shopping centers. O que supostamente ela quisera dizer com aquela frase?

Andamos de volta pelo caminho, mal dando me tempo para saciar minha curiosidade de conhecer a Academia, Arina porém alegou que eu seria sim uma aprendiz, e que nessas condições ficaria presa neste lugar por um bom tempo tendo assim tempo de sobra para explorar. Ela praticamente teve que me arrastar a força dali. Eu só conseguia ver leves borrões de quadros, salas, pessoas e inclusive maravilhosos vitrais translúcidos que eu nunca tinha visto na minha vida. Chegamos na saída e voltamos pelo caminho que viemos. Sinceramente, muita caminhada num único dia para uma garota sedentária.

Chegamos novamente a avenida principal e mais larga de Core. O caminho levava até o castelo e de acordo com Arina, até certa parte era considerada a mais movimentada de todas. Olhei pra o cima e percebi pela posição do sol no céu que deviam ser mais ou menos umas nove horas da manhã. Os raios quentes seriam bem mais bem vindos se eu não tivesse andado na floresta (ida e volta) da Academia Arco durante todo aquele tempo (já mencionei que foi ida e volta?). Andei seguindo os passos da minha atual mentora destas terras, minha guia nessas novas descobertas e finalmente chegamos a uma espécie de feira estranha já perto do centro comercial e longe da Floresta Manchada. Havia todo tipo de barracas improvisadas, lojas desengonçadas, pessoas gritando desvairadas e vendedores normais também. Todo o tipo de produto era vendido ali. Chapéis malucos e cheios de penas, peças de madeira, artesanato, flautas retorcidas e retas, pequenas e grandes, sapatos de todos os tipos, roupas de cores neutras e vibrantes, canetas de plumas enormes, vasos de porcelana, pedras de todas as cores, comidas e inclusive doces estranhos e coloridos se espalhavam pelos estandes.

Me senti diferente. Uma excitação pelo momento. Eu mal podia me controlar, era contagiante. Toda aquela animação, aquele sentimento de liberdade que eu nunca sentira antes. Era quase como estar de fato em casa. Minha casa. As pessoas sorriam para mim e me diziam bom dia, me olhavam como se eu já pertencesse aquele lugar. Andamos muito, por todos os lugares possíveis. Encontramos roupas típicas corinas e de todas as cores existentes. Descobri que realmente todo esse "caminha pra lá, caminha pra cá" seria muito ruim de ser feito se eu estivesse usando Converse, entende? Na verdade essa seria a primeira vez, eu acho, que eu usaria algo além de cores escuras porque era meio raro de se encontrar entre tecidos naturais, sabe? Eu meio que desconfiei que Arina era em parte responsável pela escolha da palheta de cores também, porque sempre que ela podia tentava me convencer a usar verde, roxo ou laranja. Não que eu não ficasse bem com essas cores, mas eu me sentia mais confortável com cores neutras. Tipo marrom. Mesmo, eu não me importava de usar essas cores mais discretas. Mas creio que você nunca argumentou com Arina. Meu Deus ela simplesmente não queria nada alem da opinião dela. Depois eu é que era a soma da teimosia.

– Você poderia por favor levar em consideração que quem vai usar essas roupas sou eu? - eu disse sem arredar o pé.

– Eu só estou dando minha opinião. Acho que essas cores são muito tristes.

– Não, você não esta dando sua opinião, está tentando enfiar ela na minha cabeça usando a força bruta. - disse e depois me virei para a vendedora. - Eu levo qualquer coisa menos a amarela, não duvidaria se me dissessem que essa cor brilha no escuro. A senhora não tem cinza ou algo assim?

Creio que aquela foi a coisa errada a se dizer porque a mulher entrou em pânico. Seus olhos se arregalaram como se eu tivesse tido algum tipo de sacrilégio.

– Se acalme, respire. Mil perdões ela não sabe o que diz, ela é do Continente. - e então se voltando para mim Arina sussurrou em repreensão - Não acredito que disse isso Laura. Pensei que soubesse sobre o príncipe, você não leu o livro? Não se pode nem se quer citar sobre o Nebuloso.

– Mas, afinal o que ele fez? Só porque ele é chamado de Príncipe Cinza? - disse eu por alguma razão em sua defesa. Eu lira muitas passagens do Livro dos Contos em que eu quase podia simpatizar com ele. Ele não podia ser assim tão mal, não é? Não era culpa sua que ele nascera daquele jeito.

– Não Laura, porque ele se aliou aqueles que mataram seus pais.- disse ela cautelosa. - E ele estava lá quando eles foram mortos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Príncipe Cinza" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.