Deuses e Diamantes escrita por André Tornado


Capítulo 6
Perguntas.


Notas iniciais do capítulo

"Mas diz-me, navegaste através do sol
Atravessaste a Via Láctea
Para ver as luzes todas apagadas
E que o Paraíso é sobrestimado?
Diz-me, caíste de uma estrela cadente?"
Train, Drops Of Jupiter



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A criatura chamava-se Ozilia. Arrancara-lhe o nome a custo, como quem desencrava uma espada cravada numa pedra dura. Sentira-se estúpido a fazer a pergunta, pois não lhe interessava minimamente saber como se chamava, a não ser pela razão prática e imatura de poder amaldiçoá-la convenientemente, quando chegasse a ocasião. A criatura tinha-o olhado desconfiada e não lhe respondera à primeira. Ele disfarçara enfiando as mãos nos bolsos das calças, enfiando também o queixo no peito, a arrepender-se de continuar a portar-se, quando estava com ela, como um reles humano patético. Ela usava o casacão dele, o que fazia os seus ombros terem o dobro do tamanho.

- Para que é que queres saber o meu nome, humano?

Encolhera os ombros, afundando-se no poço lodoso daquela situação.

- Chamo-me número 17. Pronto, já te disse o meu nome, podes dizer-me o teu.

Afundava-se cada vez mais, com aquele argumento soara a um menino mimado a mendigar um doce.

- Número 17…

- Hai.

- E queres saber o meu nome?

- Estás na minha casa, acho que tenho o direito de o saber.

Os seus argumentos eram do piorio. Encolhera-se ainda mais.

Irritara-se por estar a ser idiota.

- Esquece!

Antes de aquela exclamação acamar totalmente na paisagem bucólica que os rodeava, ela respondera com um murmúrio, que não fora totalmente voluntário.

- Ozilia.

Não gostara de ter cedido aos argumentos patéticos do humano patético, fizera-lhe a vontade e devia estar a morder a língua por ter-lhe dito como se chamava. Mas a espada fora desencravada e a vitória, sem que tivesse o sabor inequívoco da conquista, era dele. Ele não se sentiu melhor por isso, mas já tinha um nome para a criatura.

Podia amaldiçoá-la a seu bel-prazer.

***

As primeiras casas da aldeia apareciam ao fundo, depois daquela última curva no caminho e número 17 avisou:

- Eu vou falar com o Bode. Sozinho.

- Porquê? – Perguntou-lhe Ozilia calmamente.

O tom foi estranho, sem entoação, como se a palavra “porquê” se tivesse derramado, sem querer, da boca dela sem que o cérebro quisesse ter feito a pergunta.

- Tentaste destruir a casa do homem. Ele não vai responder com acerto a nada do que eu lhe perguntar se tu estiveres comigo. Vai esconder o que sabe e vai mentir. Nós não queremos isso.

- O maldito roubou-me o diamante.

- Muito provavelmente roubou-te o diamante, de acordo. Se queres recuperá-lo, terás de fazer o que eu digo.

- Já te disse que não preciso da tua ajuda.

- Sei disso muito bem.

- O que propões? – Apontou para as casas. – Estás a levar-me para a aldeia. O que eu fiz ontem assustou os seus habitantes e, mais cedo, ou mais tarde, o Bode saberá que eu estou ali, à espera do sucesso dos teus esforços em arrancar-lhe uma confissão. E, segundo a tua lógica, vai deixar de ser sincero e vai começar a mentir.

- Então, terei de o interrogar rapidamente.

- E eu?

- Vou deixar-te na taberna.

Ela arqueou os sobrolhos finos.

- Na taberna? Não havia um lugar mais concorrido e cheio de gente do que a taberna?

- Tenho lá uma amiga, vou pedir-lhe que… bem, que olhe por ti.

- Vais pedir-lhe que me esconda na cozinha, como se fosse um cão?

Olhou para ela à espera de uma explosão de génio, acompanhado de um grito, mas ela tinha um ar apático, imitando a sua indiferença. Sentiu-se incomodado, preferia uma explosão de génio àquilo.

- Não vais para a cozinha. Ficarás em boas mãos. Aceitas?

- Tenho outra possibilidade? Não me deixas fazer as coisas à minha maneira.

- Podias fazer… Afinal, tens uma força prodigiosa. Foste capaz de me derrubar.

- Tu não passas de um humano patético.

- Humano artificial, por favor.

- Como queiras. Apenas um humano.

Outra dúvida e naquela história, desde que falhara o tiro, as dúvidas eram uma constante: por que razão ela não ia recuperar sozinha o diamante? Tinha o engenho suficiente para o fazer, não precisava realmente da ajuda de um humano. Rebentava com algumas casas ou arrasava simplesmente com a aldeia inteira até que o seu precioso diamante aparecesse e voltava para o lugar misterioso de onde viera. A não ser que a solução não fosse assim tão simples. Talvez ela não pudesse revelar que tinha perdido o diamante e que teria de o recuperar antes que se descobrisse a sua falha. Era a única explicação para ela aceitar a ajuda de um humano patético.

A conclusão começou a assustá-lo. Estava a ligar-se àquela criatura, que ele não sabia muito bem de onde vinha e o que era. Ele nunca se ligara a ninguém, nem mesmo à irmã, e não sabia o que fazer. Fechou os olhos, suspirando. Iria recuperar o diamante, entregava-o à criatura e deixava-a ir. Não queria ninguém ligado à sua vida.

Chegaram à aldeia de ruas desertas, o que evitou cenas desnecessárias de pânico. Dirigiram-se à taberna. Número 17 empurrou a porta larga de madeira, o sino soou, Ozilia passou primeiro. A taberna estava como as ruas, deserta, o que era muito conveniente. Tudo estava a correr na perfeição. Ele acercou-se do balcão e a dona apareceu com um sorriso largo na cara rechonchuda.

- Oi, bonitão. O habitual?

Ele disse:

- A minha amiga precisa de um canto reservado. Ela vai ficar aqui à minha espera enquanto trato de um assunto importante.

A dona da taberna perdeu o sorriso ao reparar na criatura. Empalideceu, o lábio inferior estremeceu e recuou um passo.

- Ela não vai fazer nada à tua taberna, prometo-te. Serve-lhe um prato generoso de guisado.

- Deves estar a brincar comigo – disse Ozilia entre dentes.

Ele admirou-se, olhou para ela.

- Não comeste nada. Não tens fome?

- Não te preocupes comigo. Vai fazer o que tens a fazer.

Ele encolheu os ombros.

- Como queiras. – Voltou-se para a dona da taberna – Percebeste-me?

A mulher acenou com a cabeça uma única vez e repetiu:

- Um canto reservado. Vem por aqui… querida.

Tratava todas as clientes femininas por “querida” e os clientes masculinos por “bonitão”, mas aplicá-lo à criatura foi, no mínimo, caricato. Ozilia não fez qualquer observação, nem sequer se importou com o tratamento familiar. Seguiu a mulher e sentou-se numa mesa pequena, situada próxima do extremo mais afastado do balcão. Número 17 verificou que a cabeça empalhada da corça ficava mesmo por cima dessa mesa. A mulher inclinou-se, perguntou qualquer coisa à criatura. Demorou cinco segundos a receber o pedido e afastou-se. Era um canto reservado, concordou ele, dissimulado num ângulo sombrio, transformando a criatura, vestida de calças, camisa e casacão, num vulto indistinto de um homem, apesar do penteado estranho. E protegido pela corça.

Estreitou os olhos. Tentou ler-lhe o ki, de repente, para apanhá-la desprevenida. Mas ela estava atenta e a barreira estava erguida. A cabeça dela girou, olhou para ele com um sorriso. Ela percebera a tentativa de intrusão do humano patético. E ele voltava a escorregar nas armadilhas dela.

A dona levava um bule fumegante e uma malga para a mesa do canto reservado e foi então que ele deu meia volta, saindo da taberna para a luz mortiça daquele dia de outono. Andou devagar até ao largo do fontanário, mãos nos bolsos das calças de ganga.

Ainda cheirava a queimado. Três homens labutavam junto à casa destruída, serrando madeiras e pregando outras tantas, erguendo a estrutura nova que iria substituir a destruída. Um quarto homem dava algumas indicações, manuseando uma enorme folha de papel onde estavam desenhos e havia ainda um quinto homem, com uma barbicha grisalha no queixo, que observava interessado os trabalhos de reconstrução. Número 17 aproximou-se do Bode e distraiu-o da sua entretenha.

- Jovem, o que desejas? Ajudar a construir a minha casa? És muito bem-vindo…

Mas reconheceu-o e franziu a cara, criando pregas na testa, junto aos olhos e em redor da boca, distorcendo-a numa máscara assustadora.

- Foste tu ontem que…

- Preciso falar contigo, ojiisan. Em particular.

O Bode levantou-se da pedra onde se sentava. Pensou durante uns segundos, depois concordou e pediu-lhe com uma mão que o seguisse. Mesmo sem a sua atenta observação, os trabalhos prosseguiram imperturbáveis. Os dois pararam numa ruela criada entre duas casas construídas demasiado juntas.

- O que querias falar comigo, jovem?

- Quero o diamante.

O Bode esbugalhou os olhos, desfazendo todas as pregas do rosto.

- Que diamante?

- Pela tua reação, vejo que sabes do que estou a falar, ojiisan. Ontem, viste o que eu consigo fazer e posso repeti-lo. Em vez de queimar apenas uma casa, posso arrasar com todas as casas desta aldeia. Hei de encontrar outro lugar neste mundo que faça um guisado de coelho-bravo tão bom quanto o da taberna deste lugarejo. Não perderei assim tanto, comparado com o que vocês poderão perder… Por isso, não me faças esgotar o tempo e a paciência.

O Bode engoliu em seco.

- Eu… eu…

- O diamante, ojiisan.

- Eu não sei onde está o diamante.

Número 17 agarrou no homem pela gola do casaco, sacudiu-o.

- Queres mesmo experimentar os meus nervos, não queres, ojiisan?

- Por favor, jovem…

- Devolve-me o diamante!

- É ela que quer o diamante, não é? Ela está contigo, não está? – O homem olhou para todos os lados. – Onde é que ela… está escondida?

- Isso não interessa.

Soltou-o com um empurrão.

- Vai buscar o diamante e não te demores.

O homem desatou a correr como um bicho assustado, a cabeça enterrada entre os ombros. Número 17 respirou fundo, passando uma mão pelo cabelo negro. O Bode não fora muito difícil de convencer. Aquele sim, era um exemplo perfeito de um humano patético. Saiu da ruela e encaminhou-se novamente para o largo do fontanário, com o habitual ar descontraído, mãos nos bolsos das calças.

Ao longe, um cão ladrou.

- O que é que tu pensas que estás a fazer?!!

O grito atingiu-o, qual flecha envenenada. Olhou para trás e encontrou Ozilia a correr para ele a toda a velocidade, furiosa como um monstro. Os olhos dela, reparou, estavam vermelhos como dois rubis iluminados por um fogo vivo.

- Eu confiei em ti! Ah, maldito humano!

Ele retirou as mãos dos bolsos, fechou os punhos.

Para que raios precisou saber do nome dela, se fora ela a primeira a amaldiçoá-lo? Agora sim, pela primeira vez, sentia-se patético. Odiou a sensação e cuspiu para o lado, preparado para lutar com ela. Explicou furioso:

- Mas eu consegui o teu precioso diaman…

- Cala-te! – Cortou ela e passou por ele, parando alguns metros mais adiante.

- Nani?

A terra tremeu quando um ser gigantesco, compacto e com o aspeto imponente de um guerreiro de outras eras aterrou no largo do fontanário.

Número 17 sentiu o estômago contrair-se.

O que era aquilo?


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Notas finais do capítulo

O nome da criatura, Ozilia, foi inspirado no nome do jogador de futebol Mesut Özil, internacional alemão que atualmente representa as cores do clube espanhol Real Madrid. E se a inspiração vos parece estranha, recordo-vos que esta história está dedicada e foi escrita para a Hayami LiKogo.

Próximo capítulo:
Confronto.



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