Deuses e Diamantes escrita por André Tornado


Capítulo 2
Impressão.


Notas iniciais do capítulo

"Alcançaste o segredo
Demasiado cedo,
Gritaste pela lua
Brilha, diamante louco.
Ameaçado por sombras de noite
E exposto pela luz..."
Pink Floyd, Shine On You Crazy Diamond



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Quando chegou a casa vinha zangado. Nunca mais conseguira recuperar o rasto da corça e a frustração crescera até lhe azedar o estômago de tal maneira que deixou de se conseguir concentrar, chegando até a sentir que a floresta zombava dele.

O sol declinava no horizonte e não teria mais do que uma hora de luz quando se decidira a abandonar a perseguição. Não se demorava pela floresta à noite. Apesar dos seus dotes físicos e das suas habilidades lutadoras, da sua força descomunal e de conhecer um truque ou outro que o fazia invencível naquela parte do globo, ele não procurava confrontar-se com os animais noturnos. Respeitava o espaço deles, deixava-os reinar onde era suposto fazê-lo, pois também apreciava que respeitassem o seu espaço.

Fechou a porta que dava para a rua. Pendurou a espingarda caçadeira num prego e o casacão noutro. Dirigiu-se ao fogão. Agachou-se e atirou um toro de madeira para o monte de cinzas, ateou-lhe fogo e ficou a vigiá-lo, para que pegasse. A casa estava fria.

Descobrira aquele abrigo de montanha por acaso. Estava entediado, havia meses que viajava à procura nem sabia bem do quê. Pernoitara em hospedagens, ao relento, em casa de famílias ingénuas. Então, descobrira aquela cabana de madeira abandonada. Decidira recuperá-la. Fizera-o com as próprias mãos e com uma paciência que desconhecia que tinha. Construíra um lar e, pela primeira vez, tinha encontrado um lugar que poderia afirmar, com algum orgulho, que era simplesmente dele. A pieguice não lhe assentava inteiramente, mas não a podia descartar porque existia.

A cabana era pequena, com apenas uma divisão. Tinha um fogão antigo que fazia as vezes de lareira e onde cozinhava. Atrás de um biombo tinha uma cama, uma mesa pequena e um baú, recesso com a privacidade necessária a fazer as vezes de quarto. No canto oposto atrás de um tapume de madeira, tinha uma espécie de casa de banho com as comodidades mínimas necessárias. No centro da cabana havia uma mesa quadrada e duas cadeiras. Um sofá velho encostava-se numa parede, ao lado de uma estante despida. Apesar de austera e simplória, a cabana estava equipada com luz elétrica, água corrente e esgotos.

Junto ao fogão, numa bancada coberta com um tampo de granito preparou as ervas para uma infusão. Pendurou a chaleira com água num gancho por cima das chamas alegres e, em breve, um aroma adocicado invadiu-lhe as narinas. Escolheu algumas tiras de carne seca que dispôs num pequeno prato e sentou-se na mesa com uma chávena fumegante entre as mãos. Bebeu a infusão em silêncio, sem pensar em nada de especial. Comeu quatro tiras de carne seca, não sentia uma grande fome, comera apenas como parte de um ritual supostamente indispensável a realizar no início da noite. Deixou a chávena e o prato na bancada, encaminhou-se para a casa de banho onde tomou um duche de água a ferver. Deitou-se pouco depois, sem nenhuma preocupação assinalável e, por isso, adormeceu assim que fechou os olhos.

***

Não conseguia precisar se levara a noite inteira a sonhar com aquilo, porque os sonhos não eram habituais. Se ele se pusesse a pensar a sério naquela questão, que ele não achava digna de ocupar a sua mente, diga-se de passagem, era bem capaz de afirmar sem qualquer sombra de dúvida que ele nunca sonhava. Nunca, e haveria de dizer aquilo assentando com a cabeça e com uma expressão que não admitiria qualquer argumentação.

Nunca e pronto.

Despertou estremunhado, inspirando o ar como se tivesse vindo à tona naquele preciso instante após um mergulho inesperado em águas profundas. Sentou-se na cama, a respirar depressa, apoiando o corpo trémulo com os braços esticados atrás das costas.

Mas o que raios lhe estava a acontecer?

Tinha no peito uma sensação de esmagamento, sentia a cara molhada do suor. E tremia sem controlo.

Apenas uma vez tinha sentido medo na vida. Uma única vez, naquela ilha, há tantos anos… Ainda conseguia sentir o cheiro do monstro verde, ouvir o som grave daquela voz ameaçadora, a gargalhada quando o atacou e o envolveu com o apêndice rugoso para o sugar. A sensação de estar a ser digerido, a desfazer-se. Mas depois de Cell não havia mais nada naquele mundo que o poderia assustar.

No entanto, o sonho tinha-o deixado aterrado.

E era importante recordar: ele nunca sonhava.

Não acontecera, certo?

No entanto, ainda sentia o toque gelado do medo a fluir juntamente com o sangue.

Levantou-se da cama de um pulo. Arrancou o casacão do prego, escancarou a porta da cabana e saltou em direção à floresta. Sentia-o, mais vívido do que nunca, o ki da corça e ainda podia ver, como acontecera no sonho, a criatura gritando pelo nome dele, mas ainda deitada de lado, ainda desmaiada e ferida, uma enorme mancha vermelha a espalhar-se em redor, a tisnar-lhe as botas, a empapar a floresta.

Só podia estar a enlouquecer.

- Kuso!...

Era de madrugada. A noite já tinha passado e ele compreendia que sim, de facto, sonhara. E levara a sonhar o mesmo estúpido pesadelo durante a noite inteira, sem descanso, transmitindo-lhe aquela odiosa sensação de medo.

Perseguira a corça, encontrara-a mas, ao contrário do que realmente acontecera, tinha conseguido disparar o tiro. Quando se aproximou, a criatura estava de pé, a proteger a carcaça do animal. Olhava-o com uns olhos dourados, da mesma cor das suas tranças e era tão inexpressiva quanto ele. Tinha as mãos unidas junto ao colo e agarrava em algo que brilhava como um sol. Brilhava tanto que ele desviou o olhar. E depois havia o grito, o sangue a espalhar-se pelo solo húmido, a transformar o mundo num enorme campo de batalha onde se acumulavam os mortos. Mas não eram pessoas, eram corças. Milhares de corças.

Voou irritado em direção ao santuário verde, onde, na tarde do dia anterior, tinha encontrado a criatura e a tinha deixado à sua sorte. Chegou ao carreiro em poucos minutos. Subiu a pequena elevação, verificou que era o lugar exato pois reconheceu os arbustos. Viu a mancha de sangue, a depressão que o corpo da criatura fizera no tapete de folhagem, mas não havia mais nada. Nem sequer um leve odor, ou o estranho ki da corça. Alguém a salvara, ou ela fora-se embora. Ou qualquer coisa que ele não queria saber.

Inspirou fundo, fechando os olhos, cada vez mais irritado.

Estavam a brincar com ele e ele ainda não sabia bem quem era, que jogo era e por que razão o estavam a provocar.

Porque ele não gostava dos jogos que não fosse ele próprio a decidir as regras.

E detestava ainda mais que lhe perturbassem a existência, pois ele certamente não era um humano qualquer.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Procura.



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