A Bruxa escrita por Apolo Blans


Capítulo 1
Início... E fim




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A garota recebeu um forte chute na cabeça do guarda que passava, abrindo-lhe mais um corte enquanto o frio metal da bota fazia seu caminho através do rosto da pobre mulher. Ela sentiu o olho arder conforme o sangue escorria até seu olho e impedia sua visão, misturando seu mundo em dor, medo, raiva, ratos enormes e sangue. Muito sangue.

                O guarda sorriu quando viu o resultado de seu movimento e se abaixou para ficar ao nível da franzina garota. Com sua mão truculenta ele levantou o rosto frágil e marcado por inúmeras cicatrizes, de torturas dos interrogatórios e das surras dos guardas. Analisou suas feições desesperadas por alguns segundos, sentindo uma estranha pena se espalhar por seu interior e se perguntando se o que fazia era certo. Então cuspiu na órbita vazia onde antes estivera o outro olho da jovem. É claro que ele estava fazendo o certo. Ela era uma maldita bruxa e merecia sofrer por tudo que representava e por todas as pessoas inocentes que morriam de tanto trabalhar, indo para cama com fome à noite, enquanto ela apenas estalava os dedos para conseguir comida. Era injusto. Era nojento. Ela era nojenta.

                A mulher segurou suas lágrimas uma vez mais, feliz por saber que em breve tudo estaria acabado. Em breve ela seria levada para a fogueira e poderia abandonar esse mundo de preconceitos, torturadores, guardas com botas de ferro e um povo ignorante, preconceituoso e invejoso. Sim. Em breve ela estaria livre.

                O guarda se assustou com o estranho sorriso que se espalhou pelo rosto da bruxa maldita, de corpo tão franzino e inofensivo, uma aparência tão delicada, outrora doce – mas com suas belas feições agora desfiguradas pelas pinças e tições da igreja – e ao mesmo tempo tão absurdamente perigosa para as pessoas normais. E ficou feliz por ela ir para a fogueira em breve, para poder acabar com tudo isso. Então lhe deu um soco na boca, estalando-lhe o maxilar e fazendo-a cuspir os últimos dentes que ainda tinha. O sorriso realmente o perturbava.

                Jogada pra trás pela força surpreendente do golpe, a jovem se encolheu em uma bola no canto da cela e deixou finalmente as lágrimas fluírem. Era surpreendente que ainda fosse capaz de chorar, depois de tudo que lhe fizeram. Apenas mais um soco não deveria significar nada para ela. Mas a maldade, o preconceito e a ignorância com que aquele golpe estava carregado foram demais para uma única mulher aguentar. Ela se perguntava como sua família pôde aguentar tudo isso. E chorava mais, desesperada por sua família e por saber que todos eles estavam mortos por sua causa. Mas tentou se acalmar com a ideia de que logo tudo estaria acabado. Uma última viagem. Uma última dor. E então alcançaria a liberdade.

                O homem cuspiu-lhe uma última vez, de longe, e resolveu sair da cela – os outros soldados logo viriam leva-la para a fogueira e seu merecido fim. Então sentiu outra vez aquela pequena pontada de culpa e dúvida – será que estava fazendo o certo? Será que essa pobre e mirrada jovem era mesmo tão perigosa? Ela mal parecia capaz de levantar os braços sem ajuda. Agitou a cabeça para se livrar dos pensamentos e se afastou rapidamente. Já estava pensando como um herege, se continuasse assim logo seria ele mesmo mandado à fogueira. Amaldiçoou a bruxa e sua magia e andou até sumir na escuridão.

                As horas passaram. E passaram. E passaram. Então se tornaram dias. E os dias continuaram passando. E nada da fogueira. Nada da liberdade. A jovem amaldiçoou o escuro e desejou que isso acabasse logo. Depois de tanto sofrimento e tortura, os padres ainda queriam ver seu definhamento demorado de fome e sede? Isso era tão cruel e injusto.

                Depois de ter perdido a conta dos dias desde que recebera a última visita, o guarda da bota de ferro, a garota percebeu que não havia mais nada pelo que esperar. Os guardas não viriam, a fogueira nunca apareceria e as chamas libertadoras nunca a consumiriam. Este era seu fim. Então decidiu abandonar suas últimas esperanças e acabar logo com tudo aquilo. Arrastou-se lentamente, um movimento doloroso de cada vez, evitando forçar o braço quebrado, sentindo a estranha leveza do coto onde antes estivera sua perna. Então um sorriso quase irônico lhe veio aos lábios. Tudo era estranho nesses dias. Finalmente conseguiu alcançar a parede, quase desmaiada de dor, e se preparou para seu suspiro final. Levantou lentamente sua cabeça, milímetro por milímetro e se preparou para soltá-la e deixar o frio impacto da pedra acabar com sua miserável vida.

                Os passos duros e metálicos reverberavam altos pelo corredor escuro, mandando ondas de som através das pedras frias e constantemente molhadas. A tocha era fraca e quase não era suficiente para ver 5 palmos a frente, a escuridão daquele lugar parecia sentir fome e um prazer perverso em cercar as pessoas. Quando chegou perto da sela e próximo ao guarda que vigiava a suposta bruxa o homem parou e tirou suas botas, para não alertá-lo de sua aproximação. Também se livrou da tocha, já que uma luz era tão gritante naquela escuridão. Com a adaga em punho ele se aproximou sorrateiramente, respirando fraco e pisando leve, até chegar ao lado do seu antigo amigo. Com um olhar triste e carregado de lembranças felizes, o homem cortou a garganta do outro e sentiu o sangue quente e pegajoso escorrer por seu braço, entrando em sua manga e deslizando por seu torso, enquanto a vida do outro deixava o corpo em uma última respiração assustada.

                Ele preferiria ter convencido seu antigo companheiro de infância, mas sabia que nunca conseguiria – eles pensavam de modo muito diferente, além de só ele ter visto o estado deprimente em que a garota estava. Então um barulho estranho veio da cela – um baque úmido e sólido – e o antigo guarda temeu estar atrasado. Com as mãos tremendo de ansiosidade, o arrombador colocou a chave na fechadura e a girou, apenas para encarar uma escuridão silenciosa e angustiante. Rapidamente pegou a tocha que estava na mão sem vida do carcereiro de sua amada e iluminou o interior da cela. Prendeu a respiração com o que viu. Um corpo molestado e destruído, torturado até o limite da criatividade humana, obrigado a declarar algo falso, apenas para a satisfação da vaidade dos malditos inquisidores. E então ele falhou. Chegou tarde demais. A garota finalmente cedeu e se matou. Depois de tanto lutar e se esforçar, depois de mostrar tanto desafio ela finalmente se rendeu para a escuridão maldosa ao seu redor e escolheu o único caminho que parecia lhe restar. Uma morte rápida e limpa.

Mas ele não a deixaria assim. Pelo menos seu corpo – ou o que restou dele – ele salvaria. Correu até o canto distante da cela e aninhou o belo e pequeno corpo em seu braço – ela estava tão maltratada que um braço era suficiente para carrega-la.

                Ele corria pelo corredor, tentando fazer o mínimo de barulho possível, evitando guardas sempre que podia e matando-os traiçoeiramente quando não podia. Ele sabia que tinha de correr. Em alguns minutos os corpos seriam encontrados e a fuga notada. Nunca fora bom lutador, chegara ao posto de guarda das prisões por sorte e sabia que não galgaria mais nenhuma posição. Ele não tinha nada a perder, exceto talvez o pobre corpo seguro em seu braço.

                Após cinco minutos e o terceiro corpo abandonado com a garganta aberta e o sangue jorrando de suas veias, enquanto o coração ainda não percebia que deveria parar de funcionar, enquanto o corpo lutava com todas as forças contra a morte, mesmo que a alma já houvesse desistido e se esvaído, o alarme tocou, gritando para todos que pudessem ouvir que uma fuga acontecia e todas as saídas da prisão deveriam ser seladas. A última esperança do fugitivo era chegar ao fim do corredor antes de as pesadas portas se fecharem, deixando-o preso dentro da terrível escuridão, tendo as pedras, um corpo totalmente desfigurado e sua loucura estúpida como companhia.

                Abandonando completamente a cautela, ele correu a toda velocidade, esbarrando em guardas assustados e derrubando-os para fora do caminho, enquanto refreava arquejos da dor e agonia extrema que lhe subiam pelos pés, sendo enviados das lâminas posicionadas no chão e impossíveis de serem evitadas e se amaldiçoou por ser obrigado a deixar suas botas para trás. Então, finalmente, inesperadamente, esperançosamente a luz do dia surgiu a sua frente. Eles iriam conseguir. Ele salvaria sua senhora. Eles conseguiriam escap- uma única flecha mortal, disparada com precisão quase sobre-humana acertou-lhe exatamente entre os olhos, atravessando sua cabeça e derramando pedaços do cérebro ao seu redor.


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