Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 59
"Filhos do Coração"


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é um tanto especial pois marca um desfecho no momento tumultuado que se viveu ao longo dos últimos. Sei que algumas há muito esperavam essa conversa, não sei se está mais ou menos como imaginaram e assim espero não tê-las desiludido muito.



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O som, de um silêncio aterrador, ensurdece o negrume do cómodo que as cortinas fechadas sobre a janela ainda impõem. Não fosse pelo feche de luz embaciado e cinzento que por entre a desajeitada junção escapa, Melissa necessitaria de olhos de lince para, em segurança, percorrer os poucos metros que mantém afastados o leito e a cómoda de pinho.

Numa fila desordenada agrupam-se quatro bonecas de porcelana, brancas como a neve e sorridentes, de lábios cor de rosa e vestes para todas as ocasiões. São loiras, morenas, ricas e pobres, calçando botins que já não casam aos pares e, adornando uma secular esquina da cómoda, entrevêem nas costas um majestoso espelho. Os olhares perdidos na falta de vida fitam Melissa, naquele convite natural e óbvio que os brinquedos sempre fazem às crianças, mesmo quando a eles elas desejam alhear-se. A diminuta cadeira em frente ao móvel desliza como manteiga sob os movimentos brandos da menina e, do mesmo modo, acolhe-a nos braços de madeira, como tantas outras manhãs o fizera. Hoje, porém, o reflexo do vidro não espelha a alegria do romper da aurora, nem a pressa de alcançar a escova que tão delicadamente todas as manhãs amacia o fios escuros da pequena. Nos olhos esbugalhados pelas muitas horas dormidas num sono profundo, antevê-se uma clara tristeza e um medo disfarçado no controle das lágrimas que não tardarão a cair.

De relance, Melissa espia a mais secreta das bonecas, observando-lhe os magníficos cachos num tom castanho, negro como terra. A tez firme e rija, cravada na mais elegante porcelana asiática, parece enfeitiçá-la, assim como o sorriso fino dos lábios e o brilho fosco dos olhos marrom. Pausadamente, como em câmara lenta, a menina permite aos sentidos uma viagem vertiginosa pela ilusão e as lembranças apoderam-se dela, transladando-a, com recurso à boneca, numa espiral do tempo até à sala da residência onde Catarina esboçava mimos e confiança dissimulados em lamentáveis declarações. “Ela era bonita?” – pode ouvir-se questionando qual eco da sua própria voz. “Era, muito… como você… minha filhinha.”.

O bambolear da mente entre estas reminiscências, incutido no recordar de afirmações que a boneca incessantemente reforça como uma epígrafe, é tudo quanto basta para que o choro principie, primeiro fraco e inaudível, compassadamente forte e aflitivo. O soluçar intermitente de Melissa não tarda a despertar Francisco que, coçando a vista turva pela preguiça, acode a irmã abusando do doce diminutivo habitual.

Francisco: Mel, Mel,… porque choras?

Ao notar o pranto latente que a curva distante entre o corredor e a porta do quarto já não abafa, o vagar com que Laura vinha subindo os degraus da escada ganha novo ânimo. Astuta e de relógio materno em punho, esgueira-se veloz rumo ao epicentro de toda a ação e, ao escancarar preocupado da porta, a luminosidade do corredor irrompe ao seu lado, ampliando a cena diante de si.

Francisco: Mamãe, mamãe, eu não fiz nada, eu juro – solta angustiado com o confronto individual da irmã.

Laura: Eu sei meu amor, eu sei – garante acalmando as penas do menino com um carinhoso afago no tronco. – Sossegue, Melissa acordou assustada, só isso.

Pé ante pé, num roçagar de pluma, Laura aproxima-se de Melissa e quando o intervalo entre as duas se revela suficientemente curto, estende-lhe os braços na mesma medida em que a boca se abre desenhando um sorriso enternecido. O gesto da jovem mãe obtém em segundos o efeito de uma unguento sobre corpo doente e nas feições de Melissa, logo se percebe o abrandar das sensações. Recolhida no regaço da única mulher a quem reconhece o verdadeiro papel de mãe, dispõe do tempo e do afeto dos dois seres que a ladeiam, confortando no seio materno e na fraternidade do irmão, as dores que Catarina lhe infligira e cuja real percepção, a inocência da infância ainda não lhe permite, felizmente, compreender. Virando então o rosto à boneca que tão semelhante à megera se desvendara, permanece envolta na paz do silêncio que placidamente banha o quarto, deixando-se conduzir de volta à cama onde Laura se deita aninhada contra ambos, conjeturando mentalmente o teor do colóquio que paira agarrado às partículas de pó.

Laura: Querem que eu conte uma história? – pergunta enquanto acaricia os cabelos de Melissa e encara suavemente Francisco que ao lado da irmão lhe sorri.

Melissa: Não, eu não quero – nega volvendo-se de supetão num frenesim apavorado, levando as mãos aos ouvidos. – Não conte, não conte, eu não quero ouvir mais histórias.

Laura: Calma meu amor, está tudo bem. Se você não quer eu não conto – concorda percebendo a inquietação curiosa que a sugestão provocara na menina.

Francisco: Eu queria ouvir mas se a Mel não quer, eu também não quero mais – assume sincero e compreensivo apertando a mão da pequena na sua, num ato simbólico de conciliação.

Mortificada pelo estado intimidado da filha que numa curta reação expusera uma espectável amálgama de medos, Laura opta por acatar o pedido e pondera. Os motivos para a refuta da menina poderiam advir de inúmeras fontes, todas elas desconhecidas dado que, em verdade se diga, Laura nada havia testemunhado das horas que Melissa passara na amarga companhia de Catarina.

Aplacar, quer a curiosidade, quer o desvelo, revela-se uma tarefa inglória e, pese embora a inexistência de um relógio por perto, a moça quase se atreveria a dizer que um par de horas decorrera neste período intermediário. Não fora deveras nestes modos mas coisa que se pareça pois o sol do meio-dia, não obstante a sua debilidade de inverno, esconde-se já mais alto em meio ao clarão pardacento que desde cedo pinta o céu da capital.

Contudo, não são estas evidências as causadoras de qualquer sobressalto, mas antes a constatação de uma presença amigável que secretamente os três desejavam e que enfim se achegava à porta entreaberta, fazendo pilhéria do enlevo dormente que tão notoriamente espreita.

Edgar: Bem que eu estranhei a calmaria quando entrei e, vejam só, quase hora de almoço e estes dorminhocos não viram sequer a luz do dia.

De braços erguidos num espasmo que beira um mecanismo automático, Francisco pula da cama correndo afoito à procura do colo do progenitor. A apatia a que se forçara por solidariedade à irmã, há algum tempo se esgotara e os dedos dos mirrados pezinhos, sentiam já um formigar sorrateiro implorar por atividade.

Francisco: Onde estava papai?

Edgar: Tratando de uns assuntos de gente grande e o senhor, nem preciso perguntar porque acabo de confirmar… Muito me espanta esse seu sono – retruca aplicando um par de cócegas no filho que, perdido em gargalhadas, se contorce nos braços do pai.

Francisco: Eu quero brincar de pirata. O senhor brinca comigo, papai?

Laura: Eh… sinto dizer mas eu temo que o seu navio terá que aguardar um pouco mais pequeno marujo – interrompe tomando assento entre as cobertas do leito.

Edgar: Pois é meu amor… eu acho que vi a Matilde preparando aquele banho que o senhor ainda não tomou hoje – completa franzindo-lhe o cenho.

Francisco: Ah não, por favor, só um pouquinho – insiste fazendo manha recostando a cabeça no ombro do jovem e direcionando um olhar de súplica à mãe.

Laura: Depois mocinho – reitera firme. – Vá papai, leve seu filho ao banho… antes que eu amoleça mude de ideia – conclui descontraída diminuindo o tom de voz num sussurro de desabafo.

Tal como previamente estabelecido com a empregada, Edgar entrega Francisco às águas mornas e mansas da banheira e volta ao quarto onde Laura molda não só o corpo aos travesseiros reclinados contra a cabeceira da cama, mas os pensamento dispersos que lhe vagueiam pela mente. Ao seu lado, submersa numa parcimónia muito própria do seu recato, Melissa mantém os olhos de amêndoa arregalados e, após breves segundos recebendo os mimos dos progenitores, ganha finalmente coragem para dar início ao inquérito.

Melissa: Mamãe? – profere acomodando-se confortavelmente entre os dois.

Laura: Fala meu anjo.

Melissa: Eu nasci da senhora?

Pese embora a escassa clareza de fatos que a desprovida sapiência da infância implica, a pergunta despoleta um visível arrepio nos dois corpos adultos. Um instante basta-lhes para que todos os temores de anos se revelem na troca de olhares inquisidores e duvidosos pois, por mais cientes que sempre estivessem quanto à necessidade de certas revelações, jamais haviam considerado a possibilidade deste aspeto particular se dar tão precocemente. Assim sendo, e antes que as bocas balbuciem qualquer letra, o casal considera as palavras e a estrutura de uma verdade inacabada que se sentem na obrigação de desvendar de acordo com a ocasião.

Laura: Porque é que você quer saber isso amorzinho? – responde devolvendo a questão com cautela de estratega.

Melissa: Porque aquela moça disse que eu nasci dela – murmura tentando deter o soluçar que lhe estremece os delgados lábios.

Estupefactos, Laura e Edgar sentem de súbito um ímpeto feroz de amordaçar a língua que tão vilmente fora capaz de plantar na cabecinha viçosa e frágil de uma criança uma certeza tão dolorosa. Todavia, ao recobrarem as consciências momentaneamente desertoras, respiram desafogados com a recordação do retumbante desfecho que enredara Catarina e prosseguem, com a calma que o momento delicado carece.

Edgar: Filha, o quê exatamente ela te disse? – avança investigando mais detalhes do sucedido.

Melissa: Ela contou uma história, papai. E eu achei que seria bonita mas não, era triste.

Será nítido que o relato desenvolvido pela menina, parcos detalhes alberga, focando-se nas explanações mais óbvias das artimanhas lúdicas a que a cantora recorrera para se fazer entender. Surge então, emaranhado neste núcleo, o motivo para o declínio do conto que Laura se propusera narrar e um estribilho de desolação floresce no íntimo de ambos.

Melissa: A história, não é verdade pois não? Era como aquelas que a mamãe conta dos livros antes de eu e Francisco dormimos? – alvitra choramingando e repetindo a si mesma a alusão às fábulas.

Edgar: Vem aqui minha florzinha – fala transferindo-a para mais perto do toque das mãos. – Você é tão pequenininha, não deveria ter passado por nada disso – lamenta não evitando uma dolente sensação de culpa por não ter, a par de Laura, sido capaz de evitar a trágica abdução. – E porque você é ainda muito novinha para entender certas coisas que os adultos fazem e dizem, nós prometemos que, um dia, quando você for maior, eu e a mamãe vamos explicar como tudo aconteceu e tirar todas as suas dúvidas. Você confia em nós, não é mesmo? – avalia procurando na face rosada da filha um aceno positivo que não tarda. – Então, não se entristeça ou preocupe com as coisas que aquela moça te disse porque o mais importante, é que essa é a sua casa meu amor e nós somos a sua família.

Laura: Melissa –, interrompe notoriamente emocionada com as palavras do marido e o momento de partilha e abertura – nós te amamos muito filha, muito, muito, muito…

Melissa: Muito… assim? – gesticula abrindo os membros superiores até rasgar os limites da extensão das pontas dos dedos.

Edgar: Mais ainda… Tanto que nem caberia nessa casa – corrige demonstrando a hipérbole sincera da ternura que os sentimentos extrapolam.

Laura: Talvez nem na cidade inteira – exagera sorridente à medida que recolhe as lágrimas que indiciam o choro que a vinha atacando desde a raiz. – E esse amor que nós nutrimos por você, que é o mesmo que temos pelo seu irmão, é único e não depende de você ter ou não nascido de mim. Porque o que verdadeiramente interessa, amorzinho, não é de onde a pessoa veio, mas onde nasceu o amor que temos por ela.

Edgar: E esse filha, que eu e a mamãe temos por você, Francisco e o bebê que aí vem em igual medida, nasceu aqui –, diz consumido pela comoção pousando a mão esquerda no peito – de uma sementinha que brotou nos nossos corações e a cada dia ganha novas ramificações.

Laura: Portanto, o que conta não é o ventre onde a cegonha te deixou e sim os corações onde você mora e cresce todos os dias com muito amor.

Toda uma esfera de ruídos se mescla entretanto. O escorrer paciente de umas quantas gotículas de água transparente, inunda, além dos olhos dilatados, a atmosfera de cores que se adensa à meia-luz e, os sorrisos difíceis de controlar porém fáceis de deslindar, temperam-lhes as faces. Não sentem senão um arroubo involuntário assomar-se-lhes ao corpo e, mal amanhados como estão na beira da estreita cama, diminuem os espaços vazios do pequeno círculo que os três formavam, unindo-se num abraço apertado sob o qual encerram as dúvidas e as querelas que, bem sabem, o tempo e o peso da idade em Melissa ainda lhes trará.

Como que perscrutando do lado oposto da parede o enleio que aqui se define, eis que surge correndo na dianteira de uma Matilde enrubescida e atarantada, o membro que completará, em questão de segundos, o futuro quinteto. Trazendo somente vestido o robezinho de felpo azul claro, espalhando atrás de si um trilho aquático que a humidade do corpo por enxugar vai largando, Francisco entra no cómodo disparado, gargalhando e em típica euforia de quem reconhece a travessura que fizera. A alegria do menino contagia a todos e, num ápice, a aura do quarto abre-se como um arco-íris rasgando as nuvens.

Nada há de mais humano do que o sentir e, esse, em toda a sua plenitude ambígua e que os humanos tendem a tornar complexo, não se confina na pele, sangue ou genética. Aqui as leis básicas da natureza são inerentes ao pulsar desordenado do coração, não se controla, não se escolhe, apenas… se sente e, desta forma, nascem todos os filhos do coração, como Melissa e tantos outros.


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