Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 58
"Castelos de Areia"


Notas iniciais do capítulo

Perdão pela demora longa que levei a postar... ideias soltas e tempo escasso. Agradeço como sempre por todo o carinho, os comentários, recomendações, tudo.



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O pico do inverno que Agosto transporta abate-se sobre a cidade. Não chove mas a aragem bafejada por um vento mais forte que o habitual anuncia o inevitável. Faz frio lá fora!

Ao largo do aconchego quente e seco da sala de estar, Laura assimila os parcos fatos que Edgar soltara sobre a mesa imaginária que à razão aflora após uma caótica notícia. A morte de Catarina, a prisão de Fernando, o sequestro de Melissa, a machadada final na deformada consciência de Constância e as derradeiras peças de um dominó que, embora balançando destemperado, ainda não caíra completamente, diga-se, por mera obra do acaso, servem como ingredientes fulcrais à receita emaranhada e explosiva que a jovem teme sequer cogitar. E, se tempo e espaço houverem para uma consideração mais efetiva, rapidamente Laura concluirá que poucas peças sobram em pé. Consumida por esta nuvem espessa e sombria, não ouve as batidas vindas da porta, nem tão pouco sente os passos largos de Matilde dirigindo-se a ela. Os dedos, que delicadamente e de súbito lhe escorregam pelo ombro coberto por uma frágil renda em tons de fogo, causam-lhe um ligeiro arrepio assustado, próprio de quem se vê desprevenidamente surpreendido.

Laura: Isabel! – exclama num misto de assoberbada alegria e desperto alvoroço. – Que susto me pregou – repreende aliviada cumprimentando a moça com o usual abraço saudoso.

Isabel: Desculpa minha amiga, não era minha intenção – afirma de olhos cerrados tal qual os braços ao redor da professora como que tentando assim colmatar os medos e angustias recentemente vividos. – Ai como é bom abraçar-te, ver-te, tocar-te – confessa num estado de gáudio que lhe enche de lágrimas os olhos negros e de sorrisos os lábios vermelhos.

Laura: Você está parecendo o Edgar – tripudia alegremente rompendo de igual modo num pranto controlado e irrefletido. – Parece até que você adivinhou que eu estava necessitada de uma amiga – prossegue puxando-a pela mão até à mesa de refeições preparada para o dejejum que o casal não tocara. – Já tomou café?

Isabel: Sei que é demasiado cedo para visitas mas eu estava desejosa por saber se estavas bem, não resisti e vim assim mesmo… nem água bebi para não me atrasar – revela claramente mais tranquila enquanto se acomoda num dos recantos aveludados que forram as cadeiras ao redor da dita mesa. – Vamos, conte-me o que aconteceu que eu estou que não me entendo no meio de tanta confusão.

Laura: Então prepare-se, porque as novidades são muitas, acerbas e bastante difíceis.

Em meio a um apetite voraz que, como o vento soprando no exterior, chega sem sobreaviso, Laura relata tudo quanto se passou, detalhando fielmente o decorrer dos acontecimentos sem desmerecer ou ocultar nenhum deles. No semblante de Isabel vão-se formando pouco a pouco as rugas de incredulidade, consternação e descanso, ora sentindo-se afrontada pelos gestos sórdidos dos vilões, ora feliz com a pré-conclusão abonatória a favor dos amigos.

Isabel: Ah minha amiga, nem sei o que dizer diante de tudo isso… estou chocada. Deus me perdoe mas não posso evitar um certo alívio sabendo que aquela cobra da Catarina não voltará a destilar veneno. E apesar de todo esse sofrimento você continua de pé, com esse sorriso maravilhoso… eu tenho muito orgulho de ser sua amiga – declara embevecida estendendo a mão ao longo da toalha de linho branco convidando Laura à repetição do ato.

Laura: E quem lhe disse que somos amigas? – desdenha irónica franzindo levemente o cenho. – Nós duas somos muito mais que isso, Isabel. Somos irmãs… ou pelo menos é assim que eu sinto – esclarece abrandando com sinceridade e afeto as nobres feições. – Não sei o que seria de mim sem vocês, meus amigos queridos – observa impondo uma curta pausa para proveito dos olhares que se tocam carinhosamente. – E agora é chegada a sua vez de falar e a minha de ouvir que, tanto quanto me lembro, temos uma conversa pendente e, pela sua expressão, intento afirmar que a temática será deveras mais agradável do que tudo quanto te contei – acrescenta descontraída.

Isabel: Eh… sabe que nem lembro mais o que era? – finge levando uma das mãos ao rosto dando continuidade à pilhéria. – Ah, lembrei… mas nem é nada de muito importante…

Laura: Fala de uma vez que está aguçando a minha curiosidade e se acaso não se recorda, estou grávida e grávidas não devem sofrer na ignorância – barafusta manhosa repousando uma das mãos sobre o ventre.

Isabel: Pois então, como eu já referi, não é nada digno de nota. Apenas achei que você merecia saber que está agora perante a mais nova proprietária do teatro Alheira – conta dissimulando euforicamente o contentamento que lhe estala em cada palavra.

Laura: Você? Comprou o teatro? – questiona visivelmente entusiasmada beirando um pulo involuntário na cadeira que ocupa.

Isabel: Aham – concorda. – Na verdade é uma sociedade… marital – ri – mas ainda assim uma sociedade. Eu e Jean-Luc estávamos com ideias de criar um negócio e depois do incidente no Alheira concluímos que a arte é o que nos move realmente e além de cumprirmos um sonho nosso, ainda ajudamos as pessoas que lá trabalhavam quitando as dívidas e garantindo os empregos. Estou tão feliz Laura, tão realizada. Jean-Luc me aceita, entende que a dança é a minha paixão e é o que quero fazer até o meu corpo permitir – relata desvendando o duplo enamoramento pela causa e seu bem feitor.

Laura: Ai Isabel! – interrompe convocando-a para um novo abraço erguendo-se da mesa já de braços estendidos. – Estou tão feliz por você, … por vocês – corrige em meio à gargalhada que trocam. – Quero saber de tudo, absolutamente tudo que vocês dois estão planeando para esse novo projeto.

Isabel: Pensamos em fazer algo diferente. Vamos manter a companhia de atores e encenar algumas peças novas mas o mote forte a trabalhar é outro. O que me diz de “Companhia Brasileira de Dança”? – interroga enfatizando a imponência do esboço.

Laura: Adorei, claro! – exulta ainda em pé fitando a amiga de frente.

Isabel: Então prepare-se senhora Vieira porque em poucos meses será minha convidada de honra para assistir à estreia da maior mistura de sons e cores que esse Brasil já alguma vez viu subir a um palco – anuncia tomando-a pelas mãos. – Acho que o nome é apropriado à fusão de influências com as quais pretendemos dotar a companhia. Eu quero representar a alma desse país imenso e um cheirinho da complexidade de ritmos que nele se congregam sem me deter somente no samba e nas danças da minha gente. A vontade que tenho é a de ver um pouco de tudo, juntar indígenas, negros, europeus…

Laura: Você parece uma criança exultante com o presente que recebeu – comenta sorrindo largamente ao acompanhar vigilante do fervilhar de reflexões que inundam a mulata.

Por alguns instantes, as nuvens que desde cedo pesam no céu da capital buscam outro abrigo, permitindo ao sol luzir os rostos das duas moças que irrequietas traçam planos e desejos passíveis de concretização. Na sala ainda encoberta pela penumbra, conversam sobre a boda que aguarda apenas data fixa para a realização, da árdua batalha que fora conquistar a aprovação de Sr. Afonso e das pequenas mas sensíveis quezílias que a união precoce e fora dos padrões moralistas arremessara sobre o casal. A prosa delonga-se sem que nenhuma dê por tal ou denote na outra qualquer sinal de cansaço ou enfado e no momento em que a razão já se alheava às incumbências das primeiras horas do dia, eis que o ranger da maçaneta da porta se faz notar. Imediatamente a seguir, Edgar assoma à esfera da sala, pálido e abatido, amparando nos braços Margarida a quem a inércia assolara após o desvendar incauto dos segredos de família.

Na face cravejada de lágrimas soltas e copiosas, qual dilúvio que afunda a arca, Margarida comporta os maiores dos vilipêndios. A mulher que em berço dourado nascera sabe agora que construíra o seu palácio sobre areia. A onda que nele rebentou deu-se com tamanha violência que nada restou além de ruínas. E era belo o palácio aos olhos extáticos de quem só lhe contemplava a fachada esguia e soberba. Mas, no seu interior, há muito o príncipe se transformava em sapo, numa metamorfose cíclica e compassada, daquelas que a poucos atraem as atenções e a muitos derrubam num ápice. A fábula de Margarida não é a exceção que contraria a regra, antes porém carrega o cunho de normalidade fatídica que os pós de arroz tão veladamente adornam na cara da sociedade.

O momento delicado faz pouco caso dos modos e normas de conduta e Isabel despede-se sem grande alvoroço, prometendo a conclusão do colóquio para dia e hora deveras mais próprios. Aflita com o estado deplorável da sogra por quem sempre nutrira franco afeto, Laura lança-se em seu auxílio, oferecendo-lhe o conforto do silêncio e das mãos uma na outra sob o olhar perdido de Edgar que, tateando a réstia de esperança, permanece arrimado contra uma das poltronas. Sentada no sofá, dos olhos áridos de Margarida não jorra pingo algum de água, pois que a fonte secara e o bater do coração descompassara-se de tal forma que no peito da senhora quase é possível demarcar a mancha roxa de um hematoma.

Laura: Edgar, o que aconteceu? – sussurra confusa aproximando-se cautelosamente do marido a quem aplica um afago na face.

Edgar: Fernando despejou toda a verdade sem medir as palavras – adianta num murmúrio estático. – Eu não podia deixar minha mãe sozinha por isso a trouxe para cá. Desculpa se não te avisei.

Laura: Ora Edgar, ela é sua mãe – fala carinhosa. – Você fez muito bem em tê-la trazido meu amor. Vá recompor-se que eu faço companhia à D. Margarida. Felizmente as crianças ainda dormem e qualquer coisa a Matilde está por aqui.

Edgar: Vou sim… – aceita, sacudindo ligeiramente o entorpecimento do corpo, erguendo-se. – Não demoro – conclui dirigindo-se à escada após um último olhar sobre as duas mulheres.

Laura: D. Margarida –, chama retomando o assento ao lado da senhora acalentando-lhe a mão esquerda – eu lamento muito pelo sucedido e se eu puder fazer alguma coisa para remediar a sua dor…

Margarida: Obrigada minha querida – agradece esboçando um ténue sorriso na direção da moça. – Infelizmente não há nada que se possa fazer além do óbvio. Tantas mentiras meu Deus –, lamenta-se, cobrindo o rosto com os delgados dedos, num esforço claro em travar o recomeço do choro – uma vida que nada mais é do que uma enorme falácia e hoje tudo o que me resta é um desgosto sem tamanho.

Laura: A senhora não está sozinha embora eu saiba que agora é como se sente. Edgar, eu e as crianças estamos aqui para apoiá-la em tudo quanto precisar – assegura.

Margarida: Eu sei querida e você não imagina o quanto me tranquiliza saber que Edgar te tem ao lado dele e que independentemente de tudo vocês são verdadeiramente felizes – constata estabelecendo na mente o paradoxo entre a sua realidade e a do jovem casal.

Laura: Nós somos – concorda arrebatada. – E dentro de poucos meses a senhora terá mais um neto a quem mimar – prossegue abrindo o semblante.

Surpresa e imensamente satisfeita em meio a tanto infortúnio e desgraça, Margarida nada diz com palavras, recorrendo aos gestos para melhor demonstrar sua alegria com a boa nova. Ainda prostradas no sofá, abraçam-se firmemente, dando graças pela vida que no ventre da moça se renova e aquecendo de expectativa os corações maltratados. É ainda no decurso desta comedida comemoração que Edgar a elas se junta novamente, já refeito e minimamente aprumado, como bem indicam as esbatidas cores que lhe escalam pelo rosto. Minutos volvidos e a parca descontração de que gozaram rapidamente se exala, recordando a todos as pendências pardacentas que clamam por resolução.

Edgar: Mãe, se a senhora quiser, pode passar esta noite aqui – alvitra incerto quanto às vontades prementes da senhora. – Amanhã pensamos com calma no que fazer.

Margarida: Agradeço muito meu filho, mas não. Passei tantos anos à margem de mim mesma que agora sinto uma necessidade insana de vingar o tempo que perdi. Quero ir para casa. Não dormirei mais uma noite presa à aparência impostora que descobri ser o meu casamento com seu pai – decide contundente, demonstrando certos laivos de asco na voz.

Edgar: Compreendo, e não vou detê-la se partir é o que deseja – concorda solidário. – Aflige-me vê-la sofrer assim… somente quero que fique bem e saiba que tudo farei para ajudá-la a ultrapassar estas enormidades.

Laura: A senhora já pensou no que fará? – pergunta curiosa com os possíveis desfechos, desconhecendo a chama de bravura que crepita nas profundezas da alma de Margarida.

Margarida: Sim, farei o que me cabe enquanto mulher traída e humilhada pelo marido… pedirei o divórcio! – comunica enxugando os olhos e pondo-se solenemente em pé, qual juiz deliberando a conclusão de uma sentença.

Um brando calafrio aviva os músculos trôpegos de Edgar, despoletando no jovem advogado o mesmo efeito espectável que as cordas tem sobre marionetas quando manuseadas. Levanta-se, e de mãos nos bolsos gladiando contra o nervoso miúdo que dele se apodera, gagueja alguns vocábulos inaudíveis numa óbvia alusão ao turbilhão de coisas que lhe germinam na mente. Sua conduta e personalidade distintas e sóbrias de homem justo e condescendente dizem-lhe que é o certo a se fazer. Porém, em cada nota do seu género masculino super protetor, exacerbados pela condição humana de filho, gritam-lhe igualmente os riscos que tal rótulo imporá sem bálsamos à mulher que lhe deu a vida e por quem sente um amor e respeito imensuráveis.

Margarida: Edgar, não vai dizer nada meu filho? – retruca espantada com a letargia o rapaz. – Não me diga que é contra pois…

Edgar: Não é isso minha mãe – sossega pegando-lhe em ambas as mãos. – Bem sei que nada há de mais justo a ser feito. É só que…

Laura: Que o quê Edgar? – atalha desconcertada. – Pois da minha parte só posso dizer que sinto muito orgulho da senhora, D. Margarida – completa voltando os olhos clareados de água na direção da sogra. – Conte com todo o meu apoio.

Edgar: Sabem a que perigos se expõem uma mulher divorciada? – contesta consternado inspirando pesadamente. – Apenas quero que a senhora conheça aquilo que irá enfrentar porque envolve muito desrespeito, desconsideração e humilhações e eu amo-a demais para vê-la passar por tudo impávido.

Margarida: Edgar, entendo a sua preocupação mas nada disso me importa. Aquilo que os outros dirão sobre a minha condição de divorciada em nada se compara à vergonha que senti quando ouvi da boca dos meus próprios filhos a certeza das traições de meu marido com a mãe de minha nora – exaspera-se bradando as conceções que jamais se achara capaz de repetir.

Uma larga e límpida cascata mareja nos três pares de olhos que, consumidos por uma agonia severa, se entreolham cabisbaixos. São vítimas dos algozes que deles se esqueceram retumbantemente aquando dos atos despudorados que perpetraram mas, nos poros da pele que lhes cobre o corpo, resta um aroma compilado de pequenas culpas.

Edgar: A senhora tem razão – replica enfim. – Me perdoe e não se preocupe que jamais vou permitir que a destratem – conclui recolhendo Margarida num abraço meigo e doce. – Venha, vou levá-la a casa.

Quase neste preciso segundo em que Margarida principia as derradeiras léguas rumo ao calvário que lhe concederá o paraíso que nunca se permitira almejar, Assunção abate-se no sofá de peles que pesadamente ornamenta o escritório da residência. A viagem que o transportara para longe do seio familiar durara os dias suficientes para que nada testemunhasse na batalha que em fogo cerrado se abatera sobre seu teto e, portanto, estando ainda isento de sapiência é em júbilo refastelado que aceita os carinhos camuflados de Constância. A baronesa, submersa num louco devaneio, preserva nas faces falsamente coradas toda a imponência e mansidão habituais no dia-a-dia de damas a quem o sopro frio do inverno não abala. Elegantemente amanhada no cálido aconchego do colo do marido, ouve sem grande anseio os resultados do périplo, deturpando o diário dos seus dias quando sobre eles questionada.

Assunção: E Laura, como está? Tem visto ou falado com nossa filha?

Constância: Laura… – murmura entristecendo banhada em reminiscências. – Creio que passa bem. E, a propósito, porque não me contou que nossa menina nos dará mais um neto? Como sempre, fui a última a saber – aborrece-se dispensando a continuidade das carícias que trocavam.

Assunção: Constância, não se chateie por isso meu amor. Você sabe como são essas coisas, e com a dificuldade que teve em engravidar, Laura quis esperar um pouco mais para dar a notícia – desculpa-se num tom plácido e adocicado. – Ah meu anjo, não se arrelie com isso agora. Mal cheguei e você já me desdenha deste jeito – queixa-se manhoso procurando já de pé retomar o contacto dos dois corpos. – Mas diga-me, o que aconteceu que te deixou afrontada? Bem vejo em teus olhos uma tristeza que não morava aí antes de minha partida.

Constância: Você sabe o quanto me magoa que me escondam assuntos importantes. Ainda mais tratando-se de nossos filhos. Por conta disso acabei brigando com a Laura – conta dando azo à construção de mais um alicerce que acarrete o peso de tantos enganos.

Assunção: Isso, infelizmente, não é novidade dado que, volta e meia se enfrentam. Tenho certeza que não foi nada grave e logo estarão às boas novamente – desconsidera inocente roçando os dedos da mão no contorno do rosto da esposa.

Estando ambos enlevados num clima de enamoramento casual, esquecem as desavenças e deixam-se conduzir num beijo promissor de algo mais. Contudo, instantes passados, eis que surge a interrupção vinda sob a forma de temerosas batidas e tão depressa se apartam, Luzia rompe timidamente pela divisão, trazendo um pequeno invólucro para o patrão.

Luzia: Um menino de recados acabou de deixar essa carta. Pediu para que fosse entregue em mãos ao senhor, Dr. Assunção – fala indicando o papel.

À saída oportuna da criada, resta uma vez mais o casal, mergulhado na luz sobranceira da manhã que pelos vidros da janela transborda. Repetindo o gesto profissional de senador e médico, Assunção senta-se à secretária e, de punhal em mãos, abre tranquilamente o envelope desprovido de remetente. A letra, visivelmente esgadanhada com uma caneta gasta e opaca tinta, adivinha-se fresca e coberta de pressas mas são os vocábulos formando pouco a pouco e sem rodeios as frases que de fato atacam o coração do pobre homem. Vale-lhe a ditosa poltrona para sustentar o ónus da incredulidade e assombro que subitamente o acometem e, como se tivesse pedras vilmente atadas aos pés, Assunção não consegue mover-se. O drama que chocalhara Margarida poucas horas antes atinge agora o senador e, repetindo-se o portador da amarga nova, Fernando assume as culpas que tão caras se lhe mostram num sorriso matreiro que estampara com seu nome no final do escrevinhado. Do alto aturdido do seu espanto, Assunção ensurdece diante do chamado intuitivo de Constância, desviando no encalço da esposa um olhar enraivecido como nunca se lhe havia visto.

Constância: Assunção! O que foi, porque me olha assim? – pergunta esforçando-se por disfarçar o ensejo de pânico. – Pois se nada diz eu mesma leio!

A afirmação da baronesa obviamente não aguarda aprovação e, sem encontrar contrariedades nos dedos flácidos de Assunção, num ápice a carta se acha alvo da vista de Constância. Não desfalece meramente por graça da urgência em desmentir as acusações devidamente fundamentadas que sobre si recaem mas o sangue, como que desacatando as leis da gravidade, para de correr, abandonado as ilustres extremidades da pele de Constância a uma mórbida e glacial palidez.

Constância: Calúnias, tudo isto são calúnias e boatos maledicentes – esbraceja oscilando entre o descontrole que dela se apodera e o cinismo que lhe é característico. – Meu amor, você não pode acreditar numa infâmia deste calibre. Não sei o que deu em Fernando, sempre foi tão amigo de Albertinho, frequentou a nossa casa como um sobrinho querido e agora afronta-nos deste modo! Coitado, deve ter ensandecido por ter morto aquela meretriz hedionda que quase tomou por esposa – comenta esperançosa de que as desculpas cubram qualquer nódoa de desconfiança.

Assunção: Chega! Chega de mentiras Constância – grita em surdina batendo os punhos na madeira da secretária. – Suas artimanhas não me enganam mais. Essa carta apenas ditou aquilo que há muito se desdobrava diante dos meus olhos e que eu teimava não ver – pausa instantaneamente reformulando o discurso dolente perante as afirmações que acabara de ler. – O cargo de delegado de saúde pública… foi você quem conseguiu em troca de favores mundanos – acusa trazendo vivos à memória os dias de euforia desmedida que a esposa demonstrara com o inesperado e duvidoso convite de anos atrás. – Até sua briga com Laura ele menciona… porque ela descobriu a podridão que se esconde atrás dessa máscara de boa esposa e mãe. E se fizer questão de negar, basta-me procurar por minha filha agora mesmo e eu saberei.

Constância: Não ouse falar-me nesse tom! – repreende altiva. – Eu sou sua esposa, a mãe de seus filhos. Tudo o que fiz foi por esta família, há anos batalho sozinha para manter o nosso bom-nome e prestígio e é assim que você me agradece por tanto desvelo? – berra desembargando a voz que as lágrimas começam a travar.

Assunção: Julga-se tão sábia e ardilosa mas na verdade engana somente a si própria. Sabe porquê Constância? Porque viveu uma vida inteira fingindo acatar uma conduta de decoro que nunca teve.

Constância: Pare! Logo você Assunção, que sempre foi cego e complacente, se deixa levar à primeira por uma carta repleta de obscenidades. Eu sou sua mulher, é em mim que você tem que acreditar.

Assunção: Decerto não o será por muito mais tempo depois que eu conversar com Laura – declara determinado, lançando o isco com o qual intenta substituir a encenação no semblante da baronesa por uma fresta de transparência.

Constância: Ingratos! Todos vocês não passam de uns ingratos.

Se em Assunção dúvidas restavam quanto à desvirtuada moral de Constância e ao rol de imputações que a última cartada de Fernando despejara, esta reação comovida da baronesa tem o mesmo efeito de uma pá de terra sobre a vala e, tal como sucedera ao palácio dos Vieira, também o dos Assunção se desmorona nas areias movediças sobre as quais fora erguido ao desbarato.


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Notas finais do capítulo

Deixo alguns versos do poema "O Andaime" de Fernando Pessoa.
Acho que se adequam ao momento vivido neste capítulo.

O Andaime

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças
Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser muro
Do meu deserto jardim.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"