Nascido Do Sangue escrita por Viúva Negra


Capítulo 58
Devaneios ou Delírios II




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A manhã começara de maneira que o ferreiro odiava, a luz do dia queimando seus olhos, já devia estar acostumado, mas era impossível, a cada raio de sol que penetrava em seus poros era um diferente incômodo, como milhares de ferrões tão finos quanto um alfinete lhe penetrassem à pele, à carne e lhe injetassem um veneno quente e terrivelmente mortal, como um fogo líquido que corria devastadoramente por suas veias, sentou-se na cama tentando recuperar a visão, suas córneas ferviam e latejavam como sua cabeça, quando pôde ver novamente, percebeu que ainda trajava a roupa do baile da noite passada.

Caminhou com dificuldade até a cômoda onde estava uma tigela de porcelana com água, sabão e uma toalha, com as mãos em forma de concha pegou um pouco da água e levou até o rosto deixando finos fios escorrerem até as gotas voltarem para a porcelana, olhando para o espelho diante dele, o adolescente percebeu algo no bolso de sua camisa, ao retirar e deixar em suas mãos, observou que era uma rosa e em seu caule espinhoso havia uma pequenina mancha avermelhada.

A lembrança de Mihaela cortando o dedo nos espinhos, seu sangue alimentando a flor, tornando-a ainda mais linda, era aquela mesma rosa, uma parte tão íntima e doce daquela jovem estava bem ali. Ao olhar-se novamente no espelho espantou-se e rapidamente virou-se, pois pensou ter visto mais uma vez a donzela tão triste, tão só, tão jovem, tão bonita, tão morta...

Sentiu-se mais calmo quando percebeu que não havia mais ninguém naquele quarto a não ser ele e a melancolia, mas que melancolia? A melancolia de tudo estar diferente, inclusive o próprio rapaz, a melancolia de não ter sua amada Rosalind ao seu lado, a melancolia de ter visto aquela garota morrer e não poder fazer nada a não ser desejar ardentemente devorá-la até atingir sua alma, que melancolia?

Seus suspiros eram pesados, como se exalasse cada dor que tinha armazenada em seu peito, dores sem rostos e sem nomes, mas que estavam presentes lhe assombrando o âmago a cada momento em que tentava esquecer, a cada instante que pretendia fechar os olhos e somente adormecer, porém não fisicamente. Estava cansado por dentro, cansado de mudanças, tantas e tantas em tão poucos meses, sua alma estava despedaçada, só queria poder reunir todos os pedaços antes que fosse tarde demais.

No desjejum seu prato estava cheio de frutas e pão fresco e sua taça transbordando da mais suculenta cerveja, mas Damian não tinha fome, muito menos sede, nem conseguia sentir o aroma dos alimentos ou da bebida, sua cabeça ainda doía quando procurava lembrar-se do cheiro do sangue da adolescente, do gosto que ele tinha e logo após os olhos dela o condenando para sempre.

Além de todas aquelas perturbadoras memórias havia também uma questão, quem a matara? Quem com tanta frieza no coração arrancou a vida daquela pobre e assustada menina, bem diante de seus olhos turvos? Alguém os observava na escuridão, não estavam sozinhos e seguros sob as asas da noite, alguém espreitava e após muito esperar, porém sem muito pensar, com apenas um movimento a morte passou pelos olhos dela.

Ou talvez não tivesse mais ninguém ali, talvez aquela suposta névoa negra a quem estivesse levando a culpa pela morte de Mihaela fosse apenas mais uma cria de sua grotesca e desenfreada imaginação. A cada segundo que esta hipótese lhe passava pela cabeça criava mais vida, só podia ter sido ele próprio quem a matara, mas como? Estava tão atordoado e os fatos não lhe pareciam nexos em sua mente, mas era a única e óbvia explicação.

O grito dela o assombrou durante as horas que pareciam não passar naquela madrugada, tudo que se lembrava era do sangue em seus lábios e tudo que queria era apenas mais uma gota e depois mais uma e depois mais uma, a culpa finalmente viera apertar-lhe o peito, uma culpa envolta em desejo, lágrimas salgadas que não derramou por ansiar que fossem esquecidas quando sua boca estivesse sendo banhada novamente em sangue jovem e quente.

Sentiu um nervosismo percorrer cada centímetro de seu corpo, estava em cada célula, em cada gota de seu sangue, exalava nervosismo, nervosismo e melancolia, estava arfante e com uma terrível enxaqueca, olhou para o lado disfarçadamente e percebera que Andreea fazia sua primeira refeição de modo natural, nem ao menos prestava-lhe atenção, estar ou não ali não significava nada para ela.

Seus olhares tornavam-se menos discretos, fitava-a sem nem saber por que, olhava em seu rosto vazio e não sabia por que ainda estava ali, por que vivia ao lado dela, mas jamais voltaria para seu pai, não mais podia, não mais pertencia à vida dele e sentia que não mais pertencia à sua, era agora um fantasma que vagava pelas dimensões, porém que ainda vivia preso às paixões terrenas.

Em um momento, a viúva percebeu os olhos do garoto como flechas arremessadas em sua direção, então perguntou:

___ Algum problema, draga mea?

Ele continuou encarando-a em silêncio, uma parte de si queria, como na noite passada, poder arrancar as respostas de dentro dela sem que necessitasse fazer as perguntas, mas não conseguia, não entendia como pôde absorver a vida de cada um dos presentes naquele baile e, no entanto ouvir apenas o sopro da quietude tocando-lhe os ouvidos.

___ Como me encontrou?___ perguntou ele quase que sem mover os lábios tão pálidos quanto a cera de uma vela que aos poucos era derretida pelo fogo.

___ Fui procurá-lo ___ respondeu a mulher de forma que a resposta fosse tão estupidamente óbvia.

___ Você a viu?

___ Quem, meu amor?

___ A filha do Conde... Mihaela.

___ Por acaso eu deveria?

___ Alguém a matou ___ disse ele.

___ De fato ___ a naturalidade com que a viúva falara assustou o garoto fazendo-o arregalar os olhos.

___ Sabe quem foi?

___ Como poderia? Ela foi encontrada caída com o pescoço quebrado, ah era uma imagem terrível! Estava torto e inchado... Oh pobrezinha ___ falou engolindo um pedaço de pão com uma fatia de queijo e mastigando lentamente.

___ Não desconfia de mim?

___ Ora e por que eu faria isso?___ indagou ela dando um riso sarcástico.

___ Eu estava junto dela.

___ Ora, Damian, não diga tolices, draga mea! Mihaela estava sozinha no jardim.

O moço franzira as sobrancelhas, confuso ao ouvir o que a dama acabara de falar.

___ Como assim? Eu estava ao lado dela, eu a vi morrer!

___ Não pode ser, a garota foi encontrada só, meu querido.

___ Não, isto não pode ser verdade, eu estava ali junto dela, estávamos passeando pelo jardim!

___ Por que estava com ela, Damian?___ a pergunta fora ríspida e direta.

___ Eu não sei, apenas senti que devia passar um tempo com ela naquela noite. O que não entendo é como ela foi encontrada sozinha, eu estava ali, nós estávamos sozinhos ali.

___ Pois não foi o que pareceu.

___ Como assim?

___ Você a matou?

___ Mas é claro que não!

___ Então, meu amado, alguém observava vocês, tão silencioso e hábil quanto uma sombra vagueando pela escuridão.

___ Quem poderia ser?

___ Eu não sei, meu bem.

Andreea continuou a desjejuar em silêncio, a cabeça de Damian voltou a doer, uma dor ainda mais intensa, nada do que a mulher dissera fazia sentido, ele estava ao lado da garota, a viu morrer, não podia compreender, não podia acreditar, não podia aceitar tais coisas que acabara de ouvir.

Levantou-se imediatamente saindo do recinto e indo para o quarto, a viúva apenas o seguiu com os olhos subir rapidamente cada degrau da grande escada principal que dava para o segundo andar. Ao entrar e fechar a porta, deparou-se com o corpo inerte da jovem sobre o tapete, o pescoço quebrado em tons de roxo, um fino fio vermelho escorrendo de seu pulso e outro de seu dedo indicador, os olhos vazios e sem luz, porém podendo ver até o que escondia em seu âmago.

Sentiu vontade de chorar, não sabia se era pela morte da donzela ou se era pela fome que sentia de seu sangue, estava com medo e confuso, agachou-se retraindo o corpo em um canto do quarto, ela não se movia, não emitia som algum, apenas estava lá imóvel e fria, entretanto não permaneceu assim por muito tempo.

Seus dedos finos e pálidos começaram a se mover seguido de seus punhos, seus braços, cada parte de seu corpo foi criando vida, estava cabisbaixa, foi se locomovendo lentamente em direção ao adolescente, assim como a ilusão que tivera com Ionela, podia ouvir o som de seus ossos estalando quanto mais arrastava-se para perto de sua figura apavorada.

___ Não... Por favor, não... ___ murmurou ele, tão baixo como se fossem as últimas palavras de uma prece e tão desesperado quanto um apelo.

Não era mais Mihaela, era uma coisa sem nome, soturna e horrenda que arrastava o corpo para perto do rapaz como uma marionete, o vestido sujo de terra, sentiu a frieza de seus dedos tocando seu rosto empalidecido pelo medo, os cabelos perderam o brilho dourado, os olhos escuros e vazios, porém ainda inchados e vermelhos, a boca sangrava, a cabeça caída para o lado notando facilmente o osso de seu pescoço quase rasgando a pele a ponto de expor-se.

Ela passou o dedo indicador pelos lábios dele, apesar de sua silhueta esbelta jazer tão fria, o sangue ainda estava quente, todavia com um repulsivo sabor pútrido, um olor nauseabundo que exalava do líquido viscoso tão próximo de sua saliva, de suas papilas gustativas, mas seria um erro deixar-se levar.

___ Você não está aqui, você não é real, você não é real, não é real!

Sua voz ia tornando-se cada vez mais alta, quem agora estava alimentando-se do medo de quem? Quem agora sentia prazer na dor de quem? Quem agora gritava? A garota então segurou firme o rosto do moço e sussurrou em seu ouvido, como um segredo que jamais deveria ser revelado... Ei, eu estou aqui, você não vai se livrar de mim! Fora o momento em que o pavor atingira seu ápice.

Repentinamente a voz de Andreea invadiu sua mente e logo após sua imagem apossou-se de seus olhos, ainda estava encolhido em um canto do quarto, atrás da porta, havia lágrimas apavoradas em seu olhar e seu semblante estava lúrido tanto quanto o de Mihaela quando a fitara pela última vez naquela noite, sentiu as mãos quentes da viúva acariciarem-lhe o rosto e a ouviu inquirir:

___ Está tudo bem, querido?

Damian não lhe respondeu, apenas apertou o cálido corpo da mulher contra o seu buscando um pouco de conforto e paz, sua respiração esbaforida retornava ao ritmo normal, até que ela o ouviu dizer:

___ Não vá embora, por favor, Rosalind, não me deixe.

A dama engoliu em seco tentando suportar a angústia que acabara de brotar em seu peito, deitou sua cabeça sobre a do jovem ferreiro e deixando uma lágrima ardorosa misturar-se entre os negros fios de cabelo dele, falou ternamente:

___ Eu nunca vou deixá-lo, querido.


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