O Corvo escrita por Jhiovan


Capítulo 14
Capítulo Último




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Abra essas asas
Reaprenda a andar
Pequeno livre pássaro
Foi feito pra voar

Era a estrofe final da cantiga que os antigos cantavam para oferecer um pouco de esperança a seus filhos.
Todavia, naquele momento histórico de início de uma revolução, a função era transmitir o sentimento de liberdade que a população tinha ao depredar a mansão do Gubner.

Quebravam ferozmente seus objetos caros, que para eles tinham tanto valor quanto o governador. A música os acompanhava em suas ações. Alguns homens-da-lei seguiram as ordens de atirar em todos, outros já se recusaram, percebendo que não havia outra chance senão juntar-se à eles. Eram muitos homens e mulheres, jovens e idosos, ocupando a área. Munidos de pedras, facas, tochas, machados e outras armas simplórias. Muitos foram baleados, mas não foi o suficiente para impedir a massa enfurecida. Vários homens-da-lei estavam mortos, ou se renderam. Não se tinha nenhum sinal dos homens-da-elite ou do próprio Gubner, que era o alvo principal.

Amanda acompanhada de Joseph, assim se apresentara o homem que a havia salvado. Ele era alguns anos mais velho que ela, com uns fios brancos recentes na cabeça e barba. Passavam por entre cacos de vidro e destroços de madeira. No momento em que andavam pelo grande salão com um tapete vermelho-vivo e várias esculturas que estavam sendo quebradas, um homem estava em cima de uma escada com um machado. À sua frente havia um alto lustre com muitas velas acesas. Ele em um só golpe cortou a corrente que prendia o lustre, que caiu espalhando as chamas em pouco tempo por toda a sala.
— Temos que sair imediatamente! – disse Joseph ao puxar Amanda pelo punho.

Eles desviaram para a direita e correram por um corredor. Passaram por diversas estátuas de mármore do Gubner em posições exibicionistas. Uma em particular incomodou Amanda. O governador estava de peito estufado e mostrando os músculos fictícios. Ela pediu para o homem esperar um segundo. Usando sua força empurrou a estátua que chegou ao chão em pedaços. O fogo se alastrava rapidamente até eles.

— Desculpe, não pude perder a oportunidade. Vamos! – correram.
Se depararam com um vitral com a imagem do governador, novamente.

— Vamos ter que passar – disse Joseph com urgência.

Segurou a mão dela e contaram até três. O incêndio quase os alcançava. O fogo chegou a tocar os pés de Amanda quando correram quebrando o vidro. Cacos explodiram ao ar. Nesse momento, o tempo pareceu ligeiramente mais lento. Amanda quase podia ver os cacos estilhaçarem ao seu redor. Uns poucos e pequenos arranharam seu rosto e braços. Ambos caíram na areia fofa do deserto à fora. A lua cheia estava no alto dos céus.

— Por aqui – o homem a guiou.

— Aonde vamos?

— Encontrar com o Corvo, é claro.

Uma centelha de felicidade tomou conta de Amanda. Não tinha certeza de que ele estava vivo e não fazia ideia de onde poderia estar. Pegaram um cavalo que estava no estábulo do Gubner, montaram e partiram com as chamas da mansão do Gubner brilhando atrás deles.

— Não é bem verdade que sempre odiamos o Gubner – disse Joseph após um longo caminho cavalgando. O sol estava nascendo, e junto um novo dia. – Eu, assim como muitos, chegamos na cidade sem ter aonde ir ou o que comer. Desprotegidos das tempestades de areia, dos animais ou saqueadores. Ele nos deu proteção, abrigo e comida. Parecia ser tudo que poderíamos querer. Em troca, perdemos a liberdade. Fomos obrigados a pagar impostos altos, reverenciar ele e não poder criticá-lo. A miséria continuou imperando entre nós, enquanto ele tinha todos os bens. Até que então você e o Corvo apareceram. Foi como um milagre. Vocês nos deram coragem para enfrentá-lo. Afinal, ele é de carne e osso como qualquer um, certo? – Amanda balançou a cabeça concordando. – A única diferença é que tem dinheiro para pagar homens que matam por ele.

— Obrigada por me salvar.

— É o mínimo que posso fazer para demonstrar minha gratidão. Falo em nome do povo. Estamos chegando.

À frente deles havia a cadeia de montanhas que Amanda já estava familiarizada. Amarraram o cavalo em um arbusto sem folhas e subiram por um caminho de fácil acesso. Não foi preciso escalar, as pedras formavam algo parecido com uma escada. Caminharam por uma passagem estreita dentro de uma gruta e passaram em frente ao abismo que parecia não ter fim, pois tudo o que se via era escuridão no lugar de seu fundo. Andaram sobre uma pedra que formava uma ponte acima do abismo.

O coração de Amanda quase desprendeu-se ao ver Corvo de costas. Porém, logo entristeceu-se ao ver Gubner de frente, acompanhado de dois homens-da-elite. Ela reconheceu ambos. Um sabia o nome, Philip, o outro tinha o nome “Gustav” bordado no uniforme, era o que ajudara o governador a torturá-la. Ao reconhecer o homem careca e sem uma mão, a lembrança criou cacos de vidro em seu estômago. Joseph percebeu sua expressão de pavor. Ele ajudou-a a andar, já que estava tonta.
Estavam em um desfiladeiro, era amplo e bem alto. Havia uma única árvore com galhos totalmente secos na beira de um segundo precipício que ficava de frente para o deserto.

— Ora, ora – disse Gubner sorridente. – Olha quem veio ao nosso encontro. Ninguém mais que a torturada. Devo confessar que foi muito divertido ver sua cara de pobre coitada durante as sessões.

Amanda sentiu que ia vomitar, entretanto conseguiu aguentar-se sem contestar.

— Deixe-a em paz – pediu Corvo. – Você está aqui por minha causa.

— Sim, adorei o seu convite. Quem diria que o “Salvador” do povo iria entregar-se tão facilmente?! – falou com desdém.

— Uma vida por outra, não é justo?! Assim deixamos a balança da justiça em equilíbrio.

— Esperei muito tempo por esse momento. Em que ambos os reis do tabuleiro iriam dar-se cheque mutuamente. Mas devo acrescentar, homem-pássaro, que o cheque mate só pode ser dado se houver outras peças. Sabemos que não há forma de empatarmos. E as minhas, são mais poderosas – Gubner fez sinal para seus homens atirarem.

Eles carregaram e apontaram suas armas à Amanda e Joseph. A garota imaginou que Corvo sacaria suas facas e os mataria, todavia ele permaneceu imóvel e falou calmamente:

— Meu velho companheiro, será que ainda não percebeu a fragilidade de seu plano? Seus homens são corrompíveis e movidos pelo sabor do dinheiro. Você está em ruinas, governador. Eu, porém, sempre acumulei os bens que roubei de seus caminhões, com o palpite de que um dia seriam úteis.

Corvo atirou dois sacos pesados que se arrastaram pelo solo pedregoso. Philip e Gustav, abriram-nos. Estava cheio de joias e ouro. Seus rostos encheram-se de alegria ao verem os objetos brilhantes, enquanto o de Gubner, pela primeira vez que Amanda via, encheu-se de medo. Eles apontaram as armas para sua cabeça.

— Não é possível! – exclamou raivoso.

— Até vocês conspiram contra mim! Eu sempre lhes tratei bem, sempre lhes paguei bem.

— Não é bem verdade – disse Gustav.

— Você apenas nos dava valor quando era de seu interesse – Philip externava o que lhe estava há tempos preso na garganta. – Você nos mataria se não servíssemos mais. Parece que seu joguinho virou, não é?! Porque você não serve mais!

— Vê, Gubner? Ou será que devo chamá-lo pelo nome real? Grabbles. General Grabbles.

— Eu sabia que nos conhecemos! Tire essa máscara, seu covarde desgraçado!

— Porque? Não consegue se lembrar de seu melhor soldado? Aquele que você mandou à morte assim como muitos outros, por uma causa absurda? Você cometeu um suicídio em massa, Grabbles. Sempre foi e sempre será um sádico, que só se satisfaz com sangue nas mãos. Será que o seu próprio é tão satisfatório?

Corvo andou até ele, de modo que seus rostos ficaram muito próximos. Gubner – ou Grabbles – olhou no fundo das lentes escuras da máscara e pôde ver os olhos de Corvo. Teve uma reação que surpreendeu a todos. Soltou uma risada alta e escandalosa, que ecoou pelas montanhas. Era um riso de desdém, sem nenhum humor.

— Agora eu entendo tudo! – gritou aos homens-da-elite, Joseph e Amanda. – Eu sabia! Este que vocês chamam de Corvo, é um falsário! Enganou a todos vocês dizendo que sua motivação era justiça, quando se tratava de uma simples vingança pessoal. Conte o que nós fizemos, James. Conte à Amanda quem você realmente é!

Corvo chutou-o na barriga. Grabbles caiu de joelhos no chão, da sua boca escorreu uma gota de sangue.

— Amarrem-no naquela árvore. – ordenou. Os homens, que não mais serviam à elite, obedeceram.
Amanda foi até Corvo.

— Do que ele está falando? – ela estava indignada – Seu nome é realmente James? Por que não me disse? Por que sempre esconde tudo de mim?

Ele virou-se para ela. A máscara encostou no seu nariz.

— Há certos segredos nesse mundo, que para o nosso bem, merecemos ser poupados de conhecer – virou de costas e dirigiu-se aos homens – Tirem seu terno. Ele não precisa mais disso.

Rasgaram-no deixando seu peito a mostra. Puseram as cordas em um dos galhos que ficava muito próximo da beira do penhasco, Grabbles foi sustentado apenas por seus braços pendurados, estando seus pés perto de escorregar.

As nuvens, acima de suas cabeças, estavam espeças e escuras. O céu se fechava, indicando que haveria chuva. Há tempos não chovia. E quando acontecia, era ácida.

— Como podem ser tão imbecis? – ele resmungou aos seus ex-serventes. – Não vem que este homem não é o herói que parece? Ele vai matar os dois quando tiver a oportunidade. Eu e ele, somos muito parecidos. Vocês são um bando de corruptos que, segundo ele, “merecem a morte”. O ponto fraco dele é a máscara.

— Cale a boca – Philip rosnou com ódio. Gustav cuspiu nele. – De nossa vida, cuidamos nós. Você não nos influencia mais, seu abutre.

— Falando em abutre – disse Corvo, que estava distante a ponto de pensarem que ele não os ouviria – você alimentou meus companheiros por muito tempo com as carnes inocentes de quem mandou matar. Agora eles querem lhe retribuir e experimentar da sua carne.

Grabbles transformou sua expressão serena em pavor. Corvo pegou um gravador e ligou reproduzindo um som de corvejo esganiçado, provocando incômodo auditivo em todos, com exceção dele próprio. Os corvos pareceram surgir de todos os lugares. Muitos vieram do abismo escuro, outros de trás da montanha que estavam, e ainda de longe, formando uma nuvem mais negra que a do céu. Começaram a cair as primeiras gotas ácidas. Amanda queimou-se.

— Precisamos nos cobrir – alertou a Joseph.

— Vamos para aquela gruta – apontou para a caverna de onde vieram.

Os homens os seguiram. Puderam ver Corvo parado, olhando fixamente para o derrotado governador que se debatia na corda. Isto fez ele escorregar e ficar pendurado de vez. A chuva intensificou-se e o atingiu, deixando feridas no lugar das gotas. Ele gritava. Os corvos seguiram o som do corvejo sofrido. Suas penas pareciam estar adaptadas à acidez. Se depararam ao invés de um corvo em apuros, carne viva e sangue expostos. Atacaram. Comiam seus pedaços, enquanto continuava a se debater.

Após ver o que considerava ser o suficiente, Corvo entrou na caverna junto a eles. Era bastante espaçosa e repleta de estalactites. Alguns fungos fluorescentes azuis e verdes iluminavam o teto.

— Um final cruel para alguém cruel – disse Corvo.

— E você, Corvo? – disse Philip – se considera menos cruel que ele?

— Na realidade, não. Ele tinha razão quando disse que nos parecemos. Só não é verdade que eu me considero herói. Nunca o fui...

— Cadê o restante de dinheiro que nos prometeu? – interrompeu o segundo.

— Ele também tinha razão de que não sairão vivos desta montanha.

Ambos armaram-se. Corvo tirou o chicote de seu cinto e estalou-o. Quando Gustav carregou sua arma, Joseph pulou de cima de uma rocha, com uma pedra na mão, que investiu contra sua cabeça calva. Apenas obteve um leve ferimento, mas conseguiu fazer que sua arma caísse longe no chão. Brigaram corpo a corpo. Amanda não pode deixar de se envolver e pôs-se a dar socos no seu torturador. Seus socos eram mais fortes do que ela esperava.

Simultaneamente, Corvo tirou a arma de Philip com o chicote. O mais jovem, sacou uma faca de sua bainha. Ele investiu contra Corvo, que desviou e segurou a faca contra o próprio portador, apontando ao pescoço. Philip chutou-o suas pernas, fazendo-o cair. O homem mascarado bateu a cabeça em uma estalagmite e quebrou a ponta. Ele não podia reagir, estando temporariamente desacordado. Philip sorriu, triunfante.

— Talvez o Gubner tivesse razão – falou com um Corvo desmaiado. – Você não passa de carne e osso. Eu não tenho interesse em matá-lo. Só quero ver o rosto por trás da máscara.

Ele agachou-se e com cuidado tirou a máscara respiratória. Amanda viu e rapidamente correu para tentar empurrá-lo.

— Não! – ela gritou.

Gustav conseguira alcançar a arma e atirou, acertando em uma rocha que caiu em sua perna, deixando-a imóvel. Joseph, aproveitou a oportunidade e deu um golpe em sua nuca. Ele caiu e o senhor golpeou-o com uma pedra, até a morte.
No momento em que a máscara se desprendeu da cabeça do Corvo, um som de gás se espalhando foi emitido. Ele acordou e suas mãos enrijeceram tentando desesperadamente segurar algo. Encontrou o pescoço de Philip e apertou-o. Corvo emitia um som abafado de angústia típico de quem está sem ar. O jovem, percebendo que não havia outra saída, puxou a máscara respiratória por completo.

Viu-se um rosto desfigurado. Sem cabelo, sobrancelha, cílios ou barba. Não era coberto por pele, senão por carne-viva, como alguém que há muito tempo fora queimado e nunca cicatrizado. Seus olhos demonstravam sofrimento. Não somente pela falta de ar, como também de alguém que carregava o fardo de uma vida marcada pelas sombras do passado. Havia cicatrizes que iam da testa até o queixo.

Amanda começou a chorar ao vê-lo naquele estado. Joseph estava absolutamente impressionado. Não era o que esperava encontrar de um homem como o Corvo. O que chocou a garota, era como os olhos dele eram parecidos com os dela, igualmente azuis na tonalidade. Lembrava o homem que ela vira em seus sonhos, seu pai.

Philip morrera sufocado por Corvo. Amanda retirou a pedra, usando toda sua força e conseguiu aproximar-se, ajoelhou. Ainda assim tentou pôr a máscara de volta. Os tubos que se conectavam ao aparelho respiratório foram rompidos. Corvo balançou a cabeça, muito débil.

— Não... – falou, com a voz rouca e fraca – se pode... voltar atrás.

Amanda chorou ainda mais. Pela primeira vez, Corvo não poderia sobreviver. O Gubner estava certo quanto a seu ponto fraco. Fez o que sempre conteve-se em fazer.

Encostou seus lábios no dele e assim permaneceu por um tempo que ela gostaria que durasse para sempre. Uma lágrima escorreu de seu rosto e passou ao dele. Era como se lavasse suas feridas. Ele empurrou gentilmente o corpo dela.

— Amanda... – ele esforçou-se para falar, porém a cada palavra ele tentava buscar o ar, sem sucesso. – Limpe o mundo por mim. Faça dele um lugar bonito de se viver onde a esperança e a liberdade imperem, sem repetir os erros do passado.

Beijou ela uma última vez. Correu até o abismo de fundo oculto e atirou-se. Neste momento, os corvos o seguiram entrando na escuridão. Era uma quantidade incontável de pássaros negros que ali sumiram. Desapareceu do mesmo modo que apareceu, nas sombras. Deixando muitas perguntas que nunca seriam respondidas. Apenas sua história e um nome: C. James, o Corvo.


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