O barulho dos guardas a procura de seu pai se fez impossível de ignorar por toda a manhã. A ruiva já estava de pé antes de todos, porque do jeito que foi criada, os dias eram longos e trabalhosos e as noites curtas e prazerosas. As pessoas batiam na porta por cortesia, mas entravam sem ser convidadas. De hora em hora chegava alguém para checar se a ruiva não teria ido para lugar nenhum, e também existiam guardas em baixo da torre. A septã foi a sua terceira visita aquele dia, o primeiro foi o Meistre Jory junto de sua tia Lyla, que se apresentaram mais devidamente.  Tudo que ela conseguiu entender foi que era para considerar Lyla como sua nova mãe, e Jory como seu confidente e curandeiro. Se fosse assim, a Septã seria sua nova babá.

A mulher que escondia seus cabelos grisalhos por debaixo de panos na cabeça tinha uma voz rouca e cansada, mas estranhamente aconchegante. Enquanto banhava a bastarda, contava história sobre os sete deuses e toda a religião por volta deles. Kim resolveu ignorar tudo o que saia da boca da velha e mergulhar em sua própria imaginação. Ela se lembrava de até pouco tempo estar com os homens e mulheres que conheceu a vida inteira rindo e festejando seus quinze anos. Daryus, seu mestre que ensinou tudo o que ela sabe sobre defesa, tinha dito que ela era uma mulher agora e era tudo que sempre quis ouvir vindo dele. Desde que se lembra, sonhava com o dia em que seria uma mulher. A mulher dele. Mas todos os sonhos foram em vão quando viu o peito do amado ferido por uma espada negra dos homens de seu pai.

- Por favor, levante-se – A septã a acordou na banheira. Kim obedeceu, já não via mais ponto em lutar, uma vez que estava muito longe de todo o cenário que lhe era familiar – Hoje você irá aprender bordado com sua prima, Arwydd. Agora ponha este vestido aqui e... Oh, sim! Vai ficar muito bonito em você. Ela há de acompanhá-la pelo castelo, para apresentar-te melhor os outros cômodos. Pedirei aos deuses que se adapte logo, senhorita Snow.

Snow era o sobrenome que recebeu desde o momento que pisou em Winterfell. Significava que ela era uma filha ilegítima de alguém do norte. Isso não a incomodou, porque ainda se conhecia apenas por Kim, mas os outros pareciam tratá-la mal apenas por causa de seu segundo nome. As outras septãs torciam o nariz quando ela passava, e as pessoas pareciam pensar que ela era inferior aos outros Starks... E até mesmo aos outros de outras famílias. Não tinha vontade de sair daquele quarto exatamente por isso. Odiava receber os olhares de pena, e odiava mais ainda não poder arrancar-lhe os olhos de quem ousasse encará-la com piedade.

Tão logo foi levada à Arwydd, as duas chegaram onde havia as aulas de bordado. Kim gostou de sentir uma agulha em mãos e se deliciava com o pensamento de em quanto tempo poderia matar todas aquelas garotas em volta. Resolveu não tentar, de novo, por desconhecer o terreno e não ser capaz de fugir. As linhas da ruiva eram tortas e forçadas, mas Arwydd as fazia muito bem e tratava de esfregar os elogios que recebia da Septã que as ensinava na cara de Kim.

Agradeceu aos novos e velhos deuses quando a aula acabou e começou a andar pelo castelo uns três passos atrás de Arwydd, que estava acompanhada de suas amigas conversando sobre meninos e vestidos. A bastarda esperou ela ficar bem distraída contando histórias sobre um tal Lannister quando conseguiu fugir. Seus passos eram mudos e, apesar dos cabelos alaranjados, Kim fazia-se praticamente invisível quando queria. Pelo menos até esbarrar em Augustus Stark.

- Está com pressa, Snow?

Ela levantou os olhos com raiva e se recusou a responder.

- Eu posso lhe ajudar, para onde está indo?

Nada.

- Assim fica meio difícil, sabe. Talvez eu tenha que dizer para a minha irmã que te encontrei perambulando pelo castelo quando, na verdade, devia estar junto à ela...

- Não!

- Ah, assim está melhor. Agora, Snow, para onde vai?

- Pare de me chamar desse jeito. Meu nome é Kim. Eu não sei para onde estou indo, só não quero ficar ouvindo-as falarem de roupas e garotos. Estou farta de tanta futilidade, eu só queria meu machado de volta.

Augustus coçou o queixo com pêlos medianos. Quando pareceu completar sua linha de pensamento, alargou o sorriso no rosto. Fez um sinal com a cabeça para que ela o seguisse e começou a andar. A ruiva, sem muitas opções, o seguiu com a mesma distância que antes seguia Arwydd, e o mesmo cuidado, senão maior.

- Aqui.

Eles estavam ao ar livre, então Kim sentiu-se menos ameaçada. Parou de fitar as costas do lobo para observar onde estavam. Havia homens treinando e todos os tipos de armas por perto ao seu alcance. Apenas uma mulher parecia guardá-las, a Mestre das Armas, Bárbara Snow. Uma mulher de corpo atlético e com cabelos longos e negros com apenas uma mecha branca que descia pelo seu rosto frio, mas que ostentava um sorriso orgulhoso ao ver seus discípulos treinando bem. Sua feição apenas mudou quando notou a presença da bastarda, a quem pareceu reconhecer uma inimiga antiga. Augustus pegou um dos arcos e jogou para Kim que, mesmo no susto, conseguiu pegá-lo a tempo. Depois o mesmo recolheu uma dúzia de flechas e deu a primeira para ela segurar.

- Sabe usar?

Kim não respondeu. Armou a flecha no arco e mirou na mira mais próxima. Respirou fundo e soltou a flecha que acertou perto do meio pintado de vermelho. O sorriso floresceu nos lábios da ruiva e ela virou para Augustus com uma cara debochada.

- Acho que isso foi um sim. – Riu – Mas aqui, deixe-me ajudá-la – Ele pôs as mãos abusadas por cima das dela e ajeitou seus dedos pela madeira – Tente mais uma vez, sem pressa.

Ela obedeceu, e dessa vez, acertou no vermelho.

- Eu não preciso da sua ajuda, você sabe. Eu consigo me virar muito bem sozinha.

- Ah, desculpa, estou gastando o seu tempo? Você quer voltar à companhia de Arwydd e conversar mais sobre a beleza dos Lannisters?

Kim se ruborizou e desviou os olhos.

- Foi uma brincadeira.

Augustus pegou outro arco para si mesmo e trouxe uma caixa com flechas. Os dois perderam um tempo ali, em silêncio com apenas algumas risadas e provocações de quem era o melhor na arte do Arco e Flecha até Arwydd e Tommen aparecerem. Arwydd parecia mais irritada do que o costume e Kim não pode evitar em se esconder atrás de Augustus. Tommen pareceu apenas aliviado e contente.

- Eu disse que eles estavam juntos. Você é muito paranóica, irmã.

- Paranóica? Se essa bastarda some, eu é que sou a culpada! Quem ela pensa que é para fazer essas coisas? Eu espero que apanhe. E muito!

- Você não devia dizer isso para mim quando tenho um arco e flecha nas mãos – Kim rebateu.

- Augustus! Você põe armas na mão da selvagem? – Arwydd se pôs na defensiva. Cobria com as mãos o corpo reto como se fosse algo precioso que não devesse ser machucado.

- Ela não terá motivos para usá-lo se não provocá-la.

- E ainda a defende? Tommen, ponha senso na mente de seu irmão!

- Eu creio que nós que devemos botar senso na sua, irmã – A resposta de Tommen pareceu deixá-la no mais profundo ódio. Bateu o pé mais uma vez e saiu de lá – Desculpa, Prima, mas terei que dizer para Septã onde está. Melhor eu que Arwydd.

- Não – Ela soltou o arco na mesma caixa que as flechas e olhou com um sorriso de agradecida para Augustus – Eu mesma vou falar com ela. Só espero que me mostre o caminho.

Tommen concordou com a prima e estendeu o braço para que ela o pegasse. Demorou uns segundos para entender, mas logo o fez. Saíram juntos de volta para o castelo, mas antes de sumirem no horizonte, Tommen virou o rosto e deu uma piscadela provocativa para Augustus.

Quando voltou para o seu quarto após longas séries de reclamações da Lady Lyla, sua filha e a Septã que a cuidava, surpreendeu-se por ter Lorde Theodor esperando-a sentado em sua cama. Ele, cabisbaixa, apenas levantou os olhos para vê-la e, ao perceber que era Kim, levantou a coluna e ficou em posição de um homem do cargo em que ocupa.

- Sobrinha – Ele forçou um sorriso – Você não me lembra em nada seu pai.

Kim não sabia se isso era um elogio ou não.

- Não quero lhe deixar inconfortável – Ele continuou, ao ver o silêncio dela – Eu só queria informar que seu pai sumiu.

- Eu sei disso.

- Sabe... Claro que sabe. Foi uma barulheira a manhã toda, e só agora à noite estão sossegando.  Eu não sei muito bem como dizer isso, eu acho que eu quero saber mais sobre você? – A pergunta foi mais para si mesmo que para ela, e Kim percebeu isso e continuou silenciosa – Talvez eu queira que você saiba mais sobre o seu pai? – De novo, a mesma coisa – É que ele foi um homem tão importante para mim. Queria que ele fosse para você. Quando eu tinha lá a sua idade, ou menos, eu era o mais novo e menos amado pela família. Sabe como é, Athos era o filho herdeiro e tinha todos os olhos voltados à ele... E depois da morte de nosso irmão bastardo, nosso pai ficou muito adoecido. Esperava-se muito de Athos, e ele correspondeu à altura, mas abdicou de tudo quando eu lhe confessei meu sonho de virar um Lorde – Sorriu com as memórias – Foi algo idiota. Eu não esperava que ele o fizesse. Em uma noite bebíamos vinho escondidos, e em outra ele renunciou seu posto e disse os planos sobre tornar-se Patrulheiro do Norte, sabe, os homens que vestem o negro não podem ter família. Ele também tinha muito jeito com as mulheres e teria ficado com Lyla, provavelmente. Meu irmão me deu tudo. Até mesmo a filha que ele não podia ter por minha culpa, deu para que eu cuidasse.

As palavras ficaram pesadas e a respiração mais acelerada. Parecia que Theodor queria chorar, mas se forçava a não fazer isso em frente à criança. Kim sentou-se do lado dele na cama e pôs a mão pequena por cima da sua grande e coberta por luva. Não sabia como aconselhá-lo ou fazê-lo se sentir melhor.

- Ele me parece um bom homem.

E, simples assim, Theodor voltou a sorrir.