Ághata escrita por Ivan Pavlov


Capítulo 1
Poeira e sangue


Notas iniciais do capítulo

Só pra alertar, esse primeiro capítulo tem um tom meio "diferente" dos outros, então por favor, não se assuste! A história PARECE meio inexplicada, mas ela vai se desenvolver gradualmente ao longo dos próximos capítulos.



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Poeira e sangue sujaram de lama a mordida que o chão duro me dava. Atrás de mim um sino tocou, selando com sua melodia fúnebre a cova de oito gerações, uma traição, e um rótulo tão hereditário quanto uma dívida. "Bruxa! Assassina! Vadia!” mentiam os porcos lá fora. Cegos.

Meu novo lar- e possivelmente último (na verdade admiro que tenha entrado na lista)- era uma caverna fria e fedorenta, barras de ferro rasgavam a cidade pela janela, de onde certamente viriam pedras assim que um potro qualquer calculasse que era ali que eu estava; da parede pendiam correntes embriagadas, que estariam me segurando se Kovacs realmente acreditasse nas acusações. Sua constituição falha é um desperdício à sua inteligência. Mas não o culpo. A ignorância dá ao homem poderes surpreendentes.

A não ser pelas correntes e por um rato morto, a clausura era completamente vazia, limpa, de certa forma. Nela não havia fome, prostíbulos, ascensão social, escravos, monstros, nada. Somente eu, um rato bem mais vivo, e um par de justiças enferrujadas.

Batizei-o de sapo.

Conversamos o dia inteiro, e quando anoiteceu, pedi que me contasse uma história de ninar que a mãe dizia para que eu dormisse. Quando perguntou por que, eu não soube responder. Por quê? Seria essa uma lembrança boa e eu não havia percebido? Não pode. Não sou cega.

Uma explosão de dor, e depois vento. Estava frio. Quando o cansaço obrigou-me a ofegar, minha respiração mais forte fez-me sentir um odor tão forte que teria vomitado se estivesse acordada. Era cheiro de humano negando a natureza, violando o bom senso, matando a honra de uma família, morrendo. Senti cheiro de medo.

Sapo acordou-me preocupado. Foi só um pesadelo, disse com um sorriso falso. A criaturinha concordou e virou-se para retornar a seu lugar onde estivera desde que nos conhecemos. Observando-o sair, dei impulso com os braços pra levantar do chão e sentar-me. Meu rosto queimou ao descolar-se, tentei amaldiçoar, mas de minha garganta só saiu um grunhido e deu um nó. Ouvi, então, duas vozes de homem conversando em algum ponto da construção:

–Está louco? Você viu os cadáveres? Ninguém quer nem chegar perto dela!

–O que é então?

–Bem, o plano era deixá-la...

–Merlin! MERLIN!- uma terceira pessoa interrompeu. Provavelmente o gordo, pois bufava enquanto corria- Aconteceu denovo! Dessa vez foi o juiz... - Antes que Gordo falasse mais, ouvi o trote firme de Kovacs vindo na direção da cela, e em poucos segundos vi a silhueta do delegado frear em frente às barras que me trancafiavam.

Parou de repente, encarando algo além de mim. Olhei, então, para seu rosto e vi desaparecendo um sorriso que estava pra nascer, e uma mistura de desespero e decepção tomaram conta de seu semblante. Peguntei-me que era aquilo, tentei falar mais uma vez, e, novamente, minha voz falhou. Incapacitada, esperei.

Merlin piscou forte, recuou balançando a cabeça, negando o que quer que fosse, e olhou pra mim com um sorriso discreto, escondido em sua decepção inexplicada. Estremeci quando pronunciou meu nome.

–Pensamos que tivesse morrido. Os prisioneiros entraram em pânico quando te ouviram chorando... depois de três dias sem mexer um músculo.

O homem agachou-se na minha frente, pendurando uma mão no colo e outra na grade. Encolhi e abracei as pernas.

–Quando vai ser?- falei pigarreando

–Não sei. Ninguém quer sujar as mãos, mas todos querem vê-lo feito. Sinto muito. –disse, abaixando a cabeça. Seu rosto devia estar pior que o meu.

–Está aqui pra isso?- falei borbulhando.

–Não!- disse ele espantado- Eu nunca... -. Seu olhar permaneceu abaixado.

–Ah. – Olhando pra baixo, dei-me conta de que não vestia quase nada. – Pode me trazer alguma roupa?- falei apertando mais ainda os braços em volta de minhas pernas.

–Por que não pega você mesma?- apontando para algum ponto atrás de mim.

Lá estava o resto da caverna que não vi enquanto deitada. Na parede oposta à onde dormia Sapo, havia mais um par de algemas pendurado, e, ao seu lado, entulho. No fundo da cela, um enorme buraco pendia na parede, como uma boca aberta gritando ao mundo a vitória de uma grade mentira. Outro ataque!, gritava gordo em minha mente.

–Eu não... Você... Você não acredita...? Merlin, eu...

–Não há mais nada a provar, Ághata. Por favor... –disse franzindo o cenho quando olhava pra onde meu rosto ardia.

Compreendi.

–Você morreu pra mim. – Respondi, deixando-o pálido. Sua má interpretação de minha despedida deixou-a clara: não há mais ninguém do meu lado.

Levantei-me, tirei sapo do chão e saí andando.

Aonde vamos, Sapo?

Não sei, Ághata.

Kovacs era astuto demais pra pensar que eu fosse para casa. Todas as investigações em que falhou foram por esquecer que vivemos numa cidade de mulas. Mesmo que pensasse na possibilidade, não ousaria ir lá, ainda mais agora que me vê como inimiga.

Uma mulher desmaiou quando esbarrou em mim.

Sou um monstro? Não, não sou, mas estão me fazendo um. Vagam pela cidade fofocas sobre magia negra, licantropismo, até mesmo de insanidade, e, de boca em boca, a imundice do convívio escurece a visão das traças. Estão todos vendo um teatro de marionetes do qual eu faço parte, e atrás das cordas existe alguém controlando todo o jogo. Alguém que me odeia. Digo isso porque não acredito nessa história toda de criatura.

Se realmente existisse algo bestial o suficiente para fazer o que fez, não creio que se preocuparia em alterar seus rastros para que apontem para mim. Mas provável que me tivesse matado também. Estremeci com a possibilidade.

A primeira vítima- a única que ousei espiar- foi encontrada no estábulo de meu pai quatro meses atrás, era o homem que o havia matado pouco depois que nasci. Ele estava encostado em uma parede, seu peito dilacerado, seus olhos arregalados em uma expressão de tamanho desespero que senti vontade de abraçá-lo para dar-lhe um pouco de compaixão. Todos os cavalos infartados. Mereces, diria eu. Depois viria minha mãe protestar em seu discurso sobre a vaidade que é a vingança.

Depois de passar dezenove anos odiando-o, ali estava Frederich Quasee, assassino de meu pai, morto, dilacerado, desossado.

Continuei meditando sobre Quasee enquanto caminhava, até que finalmente cheguei à minha casa. Uma propriedade grande, cercada por arbustos e, em alguns trechos, por muros de pedra vizinhos. Do portão saía um caminho de pedra construído por meu próprio pai que levava à porta da mansão e, em suas múltiplas bifurcações, ao estábulo- onde começou meu pesadelo-, às docas, e às construções adjacentes das quais nunca me perguntei o que eram.

Temendo encontrar mais imbecis, desviei-me das pedras suadas e rumei para contornar a muralha até a entrada traseira da casa.

Aqui é onde moro, Sapo. Prometo que um dia esta casa estará cheia daqueles protocolos sociais e velhas casamenteiras, e nós estaremos lá, torturados por tédio e hipocrisia, desejando não estar ali. – olhei com um sorriso amargo para ele em meu ombro-Qualquer coisa seria melhor do que o agora.

Passando pela casa onde moravam alguns empregados, apressei meu passo e logo vi a face traseira da casa. Com cuidado para não fazer barulho, subi o degrau da varanda e aproximei-me da porta.

Nhec

–Ághata?

–Mãe.

Minha mãe ficou descorada, sua boca tremia tentando gorgolejar qualquer coisa misturada com meu nome e pronomes sobre ela. De seus olhos tentavam correr fios de lágrima quase imperceptíveis, sua mão estava estendida em minha direção, pendurada no ar como se estivesse longe demais para me tocar.

–Minha filha, eu... Por favor... Ághata... - ela balançou a cabeça, dando um passo para trás, e recuou a mão, ainda suspensa

–Mãe. – Afrouxei as sobrancelhas e virei-me para a porta da sala

Quando passei na sua frente, Helena desmoronou no chão, em um pranto tão agonizante que sem querer olhei para trás e soltei também meu soluço.

–Você... Arh. - reconfortá-la era inútil, eu sabia que sua mente já havia sido envenenada. Obra do marido, pensei.

Meus passos produziam eco enquanto eu subia a escadaria. Eu ainda estava descalça, minhas roupas eram trajes de dormir, meu cabelo fedia, e meu rosto, ardendo, estava inchado.

Ela não viu a filha. Ela viu o monstro que em me transformaram.

Chegando a meu quarto, botei Sapo na mesa de cabeceira, e pus-me logo revirar minhas roupas em busca de algo que fosse adequado. Peguei um punhal que guardava escondido, uma saia de pano fino e um casaco que tapava-me até o joelho. Depois, corri ao quarto de meu padrasto e roubei-lhe uma calça curta e uma camisa branca.

Dei-me ao luxo de um banho, meu rosto ardeu como óleo fervente quando a água tocou-o. Droga, praguejei ao ver o sangue. Vesti a saia por cima da calça- que ficava escondida por baixo daquela- e aprontei-me com o restante.

Desci as escadas, com Sapo de volta a seu lugar em meu ombro, e encontrei minha mãe ainda chorando no chão. Novamente quis reconfortá-la, dar-lhe um abraço, mas sabia que isso não melhoraria nada.

Andei até a porta passando por ela de novo, e parei a um passo de meu exílio

–Não chore, Helena. Você me conhece.


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Notas finais do capítulo

se preparem porque nmo 2º vão haver explicações sobre a história e momentos de tensão ç.ç



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