Há Trinta Anos. escrita por Raimundão


Capítulo 2
Capítulo 2: Erro errado




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—Bom dia mamãe!

—Bom dia tesouro!

Ainda confusa, mas com uma vaga ideia do que fazer, Dona Florinda apenas acompanhou seu tesouro tomar café com voracidades comuns a todos submetidos aos caprichos de qualquer larica, até um simples pedaço de ricota parecia um churrasco de picanha Argentina.

—Que fome, parece que eu não comia há meses mamãe!

—Pois é tesouro, mas tenha modos, lembre-se do que eu sempre lhe ensinei!

—Não se preocupe mamãe, sei que não devo me comportar como a gentalha.

De imediato, veio à cabeça do bochechudo um lapso de boas lembranças da Vila, quando esnobava as outras crianças, em especial o pobre do Chaves e o Nhonho, único capaz de concorrer com ele em termos de exibição fútil, talvez por isto mesmo havia uma certa raiva do gordinho em sua cabeça.

Kiko não mudara muito, continuava bochechudo, adorava futebol e basquete, tinha em mente ser marinheiro, mas não tinha muita disposição para isto, ganhou alguns quilos por conta do álcool junto com a maconha e só não era mais gordo por causa de seus pequenos furtos.

—Como foi seu dia ontem tesouro?

—Foi cansativo, mas muito produtivo mamãe.

Isto, de certa forma, não era mentira, Frederico passou o dia com seus companheiros de gangue, planejando um roubo bem mais ousado do que os pequenos furtos que vinha cometendo.

—Conte-me mais, Frederico!

O rosto e as bochechas coradas de Kiko ficaram pálidos, seus olhos arregalaram-se daquela maneira que bem conhecemos, desde pequeno, conforme bem lembramos; Dona Florinda só chamava seu rebento pelo nome do progenitor quando tinha motivos de sobra para ficar enfurecida com o filhinho querido, no entanto, mesmo lento no raciocínio, nosso amigo bochechudo já havia aprendido a se controlar diante de uma situação dessas.

—O que foi mamãe?

—Querido, você sabe que sempre me orgulhei do filho que tenho, por isso fui ontem pessoalmente à Paróquia de Nossa Senhora de Guadalupe para admirar o trabalho que você disse que fazia lá, mas perguntei ao padre e a todos de lá e ninguém sabia de ter visto você lá.

Prontamente, o nosso “herói” maquinou um argumento:

—Ah mamãe, deve ser porque eles me conhecem pelo apelido, não pelo nome.

Dona Florinda estava para pular da mesa, com raiva, mas conteve-se e manteve a suavidade de sua ira:

—Certo! Então quem é o pároco de lá?

O primeiro nome que lhe veio à cabeça foi bem óbvio:

—Ora essa, o Professor Lingüiça, digo, o Padre Girafalez!

A dona da casa teve um rompante de alívio, no entanto, decidiu lançar outra pergunta:

—E quem é o sacristão?

Desta vez, o apreciador de bolas quadradas suou frio, empalideceu de novo, sua cara agora sim parecia uma lua cheia de tão redonda e branca, não era nem um pouco religioso, por isso só imaginou seu ex Papi, digo, professor porque sabia da escolha que ele tinha feito, então pensou: “Caramba! Que sinuca de bico eu me meti!” e arriscou uma resposta:

—Ora essa! É o senhor Furtado, lembra dele daquele tempo na Vila quando pensávamos que o tonto do Chaves havia roubado algumas coisas? Pois é, ele se tornou sacristão.

Nenhum dos dois sabia que o famigerado ladrão acima citado já havia morrido há um bom tempo de tuberculose, pois, embora tenha, de fato, se regenerado, tornou-se pedinte e vivia ao relento, tendo sido enterrado como indigente, foi então que Dona Florinda, mediante o erro grosseiro na resposta do seu filho, vociferou:

—O que você está me escondendo, heim Frederico?

—Nada mamãe!

—Já para o seu quarto!

—Por quê?

—Está de castigo!

—Mas eu não sou mais criança!

—Não interessa, vai ficar lá até eu descobrir o que você anda fazendo!

—E se eu não quiser ir?

—Corto sua mesada!

É isso mesmo amigos e amigas! Um sujeito praticamente homem feito, dezoito anos, sem perspectivas na vida, iludia sua mamãe querida ao ponto de ainda ganhar uma gorda mesada, e era justamente isso que evitava a necessidade de correr riscos maiores, mas, como foi dito anteriormente, Frederico já estava planejando algo maior para não depender mais de sua mamãezinha, por isso, obedeceu de pronto e foi correndo pro seu quarto.

Era uma época em que houve grandes avanços tecnológicos, mas, ainda não existiam os recursos de hoje, tais como, internet e celular com SMS, era década de oitenta. No entanto, como não podia deixar de ser, o quarto do “Tesouro da mamãe” tinha seu telefone e foi só Dona Florinda sair que Frederico entrou em ação, tirou um número do bolso e ligou:

—Alô!

—Alô, Antônio?

—Sim! Quem é?

—Sou eu, o Kiko!

—Faaaaaaaaaaaala bochechinha quase nada!

—Ei brother, sem onda, sujou aqui em casa, a velha tá no meu encalço!

—Sério vacilão? O que o tesouro da mamãe aprontou agora?

—Porra cara! Tu nunca desgruda do meu pé, né?

—Ah é? Esqueceu daquela vez que tivemos de molhar a mão dum tira por conta de mancada tua?

—Véio, isso é passado!

—Pois é, mas um passado que quase me deixou sem presente!

—Saca só, não quero treta, o papo agora tem que ser reto, tá ligado?

—Ok, então manda!

Kiko contou toda a estória pro seu comparsa, que ouviu muito pacientemente do outro lado da linha, afinal, Antônio não queria perder os dois tesouros de Dona Florinda: o filhinho e seu dinheiro, um estava necessariamente ligado ao outro, além disso, o “bochechinha quase nada”, apelido contendo referência, nada irônica, ao seu principal atributo facial e que, mais tarde, de forma simplificada, seria seu apelido no mundo do crime, “Quase Nada”, poderia ser útil como escudo ou bucha de canhão para ele, combinaram um encontro.

Dona Florinda caminhava a passos largos, furiosa por não ter dado um freio no seu filho mais cedo e imaginava, com alguma dose de razão, o que Frederico Junior estaria fazendo neste mundo, as piores coisas possíveis, lembrou-se de quando seu filho fora acusado de roubar a merenda de um coleguinha e, ao invés de repreendê-lo, chamou a coitada da criança de mentirosa, erros pra lá de errados, pois não pesou, também, sua ausência no período mais difícil da vida de seu filho, a adolescência.

Achava uma pena seu grande benfeitor não mais poder falar consigo, aconselhá-la, acalmá-la, acariciá-la, imediatamente veio uma lembrança ao mesmo tempo pesarosa e terna, de um erro que tinha cometido em sua vida:

—Mas Sr. Barriga, o senhor é casado, já falei isso mais de mil vezes!

—Dona Florinda, a senhora bem sabe que minha esposa me abandonou, e, por favor, me chame de Zenon.

—Eu sei, mas abandonou porque soube de suas investidas para mim.

—De fato, mas, pense com carinho no que lhe falei.

Quis afastar estes pensamentos o quanto pôde, embora muitas coisas tivessem ocorrido depois desta lembrança, mas não conseguia evitá-los, o homem gordo, calvo e feio, mas, ao mesmo tempo, inteligente, cavalheiro e gentil fazia seu velho coração balançar, seus princípios iam contra aquilo tudo, foi quando, por acaso, aconteceu ao dobrar uma esquina, lá estava ele, vestido com seu velho terno e sua pasta na mão.

—Zenon?

O coração do velho senhorio da vila deu um sobressalto quando seus ouvidos captaram aquele já conhecido tom de voz e, ao fundo, ouviu o velho a conhecido tema do filme “E o Vento Levou”, tão manjado para quem via o fatídico encontro entre a valentona da casa quatorze e o simpático professor das crianças da vila.

—Dona Florinda!

—Que milagre o senhor por aqui!

Enquanto isso, Frederico, sabendo que sua mãe não voltaria tão cedo, como de costume, fugiu do castigo rumo a um dos esconderijos improvisados da sua gangue, a velha casa setenta e um da vila. Lembranças de fantasias sinistras, como no dia em que os três foram deixar um jornal para Dona Clotilde, já neste tempo, a casa era realmente sinistra, reduto de tráfico, jogatina e corrupção.

Este era novo, pertencia a Antônio, o mesmo havia adquirido-o depois da morte dos antigos inquilinos, uma senhora que sempre se andava com um vestido azul e um chapéu esquisito e um carteiro aposentado, que criavam uma filha adotiva, a mesma voltou para sua antiga casa, bem ao lado, na mesma vila.

Quando ouviu do seu comparsa onde ficava o “cafofo”, as lembranças entraram em ebulição na cabeça de Frederico, desde as mais ternas, que rapidamente se esvaíam, naquele momento, até as mais, segundo ele, rudes, cresceu querendo, e, de certa forma, sendo, o “proprietário mirim” da vizinhança, enfim, seria um encontro difícil que misturariam ódio e candura.

Dito e feito, chegou ao local e parou já defronte ao velho portão de madeira, à direita olhou à direita, lembrando da sua barraquinha de refrescos, dada por sua mãe e, do outro lado, lembrou dos barris sujos e da sensação, mesmo que momentânea, de estar acima do menino do oito, de fazer inveja a ele, mas a raiva veio em dois momentos: o primeiro quando deu um refresco de graça para a Chiquinha achando que estava sendo melhor que seu concorrente e a segunda quando almejou expandir seus negócios, sem sucesso, às custas do senhorio da vila.

Adentrou, vislumbrando o mesmo piso dividido de maneira irregular, onde tantas vezes brincou, sentiu-se superior, teve alegrias e tristezas, apanhou, bateu, apaixonou-se, teve sensações muito além de sua tenra idade, dez anos, dez anos passados e a mesma escada que dava acesso à casa da menina bonita, tão disputada por ele e pelo tonto do Chaves.

O velho barril não estava mais lá, ao pé da escada, mas a parede onde tantas vezes chorou depois de ter levado uns bons beliscões do Seu Madruga continuava a mesma com a mesma rachadura e um pequeno bueiro com torneira próximo aos revolvíveis, digo, fusíveis que tanta raiva fizeram ao algoz de seus braços, o mesmo algoz que tornara-se vítima da palma das mãos de sua mãe justamente por conta disso e ainda levava posteriores safanões seus ao som de “gentalha, gentalha, prrrrrrr!!!”.

Lembranças divertidas, até mais do que a imagem que sua mãe passava, foi então que viu, justamente, os três números que mais marcaram sua infância naquele lugar, 14, 17 e 71; no primeiro sentiu-se um rei, era dali que queria que suas ordens fossem emanadas, sempre policiadas pela mamãe querida, o segundo o reduto da gentalha, já o terceiro a famosa casa da “bruxa do 71”, o terror de sua infância.

“Pois é justamente aí onde devo entrar, sem mais distrações!” pensou prontamente e chegou batendo em código, para avisar que tinha chegado, tomando, obviamente, o devido cuidado para que ninguém o visse chegar.

—Entra bochechinha!

Foi a voz que veio de dentro da casa, para total desgosto do antigo morador da vizinhança.

—Mas Zenon, eu sou uma dama, isto vai contra meus princípios, somente aceitei aquela casa porque, enfim, pensei no futuro do meu filho, que, agora, está em sérias dúvidas.

—Como assim Dona Florinda?

—Bem, é uma longa estória!

Suspirou a velha mãe do Kiko, o que levou Seu Barriga a convidá-la para conversarem num lugar mais discreto, ao que Dona Florinda prontamente aceitou.

Chegaram a uma lanchonete mais afastada do centro da cidade, onde Dona Florinda contou tudo ao seu amado.

—Mas a senhora podia ter chamado a polícia.

—Nem pensar! Jamais queria ver eu ou meu filho envolvidos em um escândalo.

—Então vou apresentá-la a um amigo meu que é da polícia e ele poderá ajudá-la melhor e em segredo.

—O senhor faria isso por mim?

—Isso e muito mais.

Concluiu acariciando suas mãos e sem saber que o seu dito “amigo policial” pertencia a uma facção criminosa que extorquia e negociava com bandidos, inclusive os do bando de Antônio e Kiko.

—Então, alguém te viu? (perguntou o comparsa)

—Nada, fui bastante cuidadoso, pode ficar sussa.

—E aí?

A pergunta era um sinal para pagar a última dívida, coisa que Frederico fazia religiosamente, uma das razões para Antônio não já ter passado o rodo no “amigo”.

—Tá aí!

—Isso mesmo! Malandro responsa é assim, paga o que deve, senta aí e curte uma “menina”.

A burrice de Kiko era algo que deveria ser estudada pela NASA, pois ia desde usar violões como raquetes de pingue-pongue, até rejeitar alguns perigos a mais, era tonto, mas não era idiota o bastante pra cair na cilada de cheirar cocaína.

—Não, obrigado! Prefiro meus Skunks mesmo.

—Pois é, a tua velha lá?

—Cara, não sei, ela saiu bem chateada comigo.

—Pudera vacilão, foste falar logo num lugar conhecido.

—E tu queria que eu falasse em que, nessa vila aqui? Ela odeia essa bagaça tanto quanto eu.

Antônio ficou intrigado com a resposta do amigo, pensou um pouco, curtiu seu barato e soltou:

—E tu já conhecia esse buraco?

—Podes crer!

—Não brinca! Conhecia também a antiga dona dessa casa...

—Sim, sim, porra!! Dá pra mudar de assunto, não gosto dessa merda e pronto! Foda-se!

—Calma véio! Eu não sabia!

—Mas agora sabe! Portanto, vamos mudar de assunto? Vamos voltar ao esquema lá?

—Beleza, beleza, vou entrar em contato com o restante da galera pra gente entrar em ação, mas vamos ver uma data em que a tua mãe não esteja por perto, porque isso pode melar a vara, aliás, o Carlos já deu certeza que vai apoiar a retaguarda.

—O tira que tá na nossa?

—Ele mesmo, o cara é amicíssimo do dono da vila e vai acobertar todo o nosso trabalho, inclusive o que trouxermos para cá.

—O dono da vila tá no esquema também? -Perguntou num tom de surpresa.

—Não, é só pro velho não amolar, o infeliz é metido a honesto e coração mole sabe?

—Sei, pois beleza, me vê mais um doce aí que eu vou curtir em casa.

—Tá na mão véio!

Kiko foi pra casa tranqüilo, com seu carregamento dentro da mochila, até que, ao sair da vila, abaixou a cabeça imediatamente, nem quis saber quem o tinha visto, entretanto, era uma mulher com camisa branca, típica dos vendedores da “Hincha Calçados” e uma calça marrom, também parte integrante do uniforme, cabelo liso e negro bem preso formando um coque, óculos discretos e que não pôde deixar passar despercebido o sujeito bochechudo e com uma mochila nas costas, entrou intrigada na casa dezessete e ficou a se perguntar: “Será que era ele mesmo?”. Não se importou muito, para ela parecia muito com o velho menino que sonhava ter uma bola quadrada, ficou refletindo durante e depois do almoço.

—Adorei o almoço Zenon.

—Pois quando quiser, é só chamar.

—Sim, mas, acima de tudo, obrigada pelo contato do seu amigo, creio que ele me ajude muito.

—E vai ajudar mesmo Dona Florinda, o Carlos é muito solícito.

Dito isto, o velho dono da vila ainda tentou roubar-lhe um beijo, mas sua amada esquivou o rosto, com medo de que alguém os visse e que virassem alvo de fofocas, entretanto, sua vontade era de se entregar àquele homem gentil e educado, que tão solícito era.


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