Há Trinta Anos. escrita por Raimundão


Capítulo 1
Capítulo 1: Apresentação




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Nestes trinta anos, a vista interna da mansão dos Barriga y Pesado mudou, estava muito diferente desde o último natal onde toda a vila havia celebrado o nascimento de Cristo, no entanto, a maior diferença estava nos muros, cercados com uma segurança quase bélica e, principalmente, com seus moradores.

Zenon Júnior, ainda muito mais conhecido por Nhonho, seu apelido de infância, dado pela mãe devido à forma como chamava seu pai quando bebê, não era mais o menino mimado e gordinho que chorava ao lhe tomarem uma quântica migalha de pão do seu sanduíche, iniciou uma dieta há quatro anos que lhe fez perder incríveis cinquenta quilos.

O motivo desta grandississississississííííííssima perda de peso era, justamente, Zenon pai, que continuaremos a chamar carinhosamente de "Sr. Barriga". O mesmo foi diagnosticado com diabetes insulino-dependente há vinte anos, há dez foi descoberto um hipotireoidismo e, justamente há quatro, foi hospitalizado, vítima de um AVC hemorrágico, que paralisou suas pernas e o deixou sem fala, além de um lado da face paralisado.

A matriarca da família, Rose Mary Phillips y Pesado, uma texana radicada no México desde que casou, nunca teve um marido ausente, entretanto, quando descobriu uma queda do Sr. Barriga por uma de suas inquilinas, há, aproximadamente trinta anos, entrou em profunda depressão, tendo desaparecido desde que o menino Nhonho tinha dez anos.

Há quem diga que a sorte acompanha poucas pessoas, mas, no caso da única mulher da casa, Atadolfa, que havia sido demitida injustamente pelo patrão anterior, teve a sorte de ser contratada pelo Sr. Barriga e quis o destino que se tornasse a nova companheira do nosso velho e querido almôndega com patas desde, justamente, a fase mais difícil do único herdeiro dos Barriga y Pesado, sua adolescência.

Passando de empregada a esposa (para efeitos práticos), dona da casa e, por que não dizer, mãe, não mais pobre, porém ainda honrada, tratava os empregados da casa com justiça e o marido doente com esmero e companheirismo, sofreu com a fase rebelde de seu enteado e mais ainda com o descaso de seu cônjuge com a própria saúde.

Hoje, Nhonho é empresário bem sucedido, PhD em logística em Harvard. Troglodita, pois fala vários idiomas, é cobiçado por muitas mulheres ao redor do mundo, no entanto, como ele mesmo diz: "só me caso por interesse, ou seja, se eu me interessar por alguém".

Lembram da segurança quase bélica ao redor da mansão? Pois bem, recordemos das eternas pelejas entre as então crianças da vila, lembram como havia certo garoto com bochechas de buldogue velho que sempre era amparado por aquela que tirava "força da fraqueza" mesmo quando ele não tinha razão? Pois bem, Frederico abandonou seu velho apelido de Kiko e teve sua vida completamente alterada depois de um episódio, no mínimo, interessante que será contado em detalhes após este breve resumo do que aconteceu com sua vida:

Há vinte e cinco anos, aproximadamente, os antigos moradores da casa quatorze mudaram para uma residência pomposa ao lado dos Pires Cavalcante, conseguida como presente para Dona Florinda de um alguém que "a amava em segredo". Foi um início de adolescência onde o que o garoto mais ouvia era o alívio por ter saído de perto da gentalha, era raro ouvir alguma frase que denotasse saudade dos velhos tempos, mas, o fato é que a cabeça fraca do tonto do Kiko foi assimilando um ódio visceral por esta época de sua vida e por todos que o cercavam, exceto, até então, sua mãe.

Foi matriculado no melhor colégio da cidade, quem pagava as mensalidades era, justamente, o misterioso amante de Dona Florinda, foi neste local que o seu ego inflado, alimentado por seu gênio mimado e, como não poderia deixar de ser, acalentado por sua super protetora mãe ganharia ares mais sinistros e devastadores.

Embora o local fosse destinado aos filhos da nata da sociedade, conheceu diversos grupos de pessoas, mas estabeleceu um vínculo com os, assim chamados, "boyzinhos", indivíduos que, assim como ele, extremamente mimados, mas com um diferencial que ainda seria inserido em sua vida: eram usuários de drogas dos mais diferentes tipos (legais e ilegais).

No seu primeiro porre, contou para Dona Florinda que estava levemente enjoado, e esta, apenas deu-lhe um comprimido para enjoo o qual apenas fez o “tesouro” dormir, posteriormente, justificava chegar altas horas da noite em casa dizendo que estava fazendo trabalho na casa de algum colega ou se voluntariando em alguma paróquia, o que deixava a viúva de Frederico (pai) derretida pelo seu filhinho.

Não hesitava em “pesquisar” as provas dos colegas vizinhos, ou de levar uma “pesquisa improvisada”, no entanto, mesmo quando o professor era extremamente habilidoso em detectar fraudes, sua mamãe querida não pensava duas vezes antes de vociferar e, como já ocorrera algumas vezes, até mesmo agredir quem ousasse duvidar da inteligência do seu rei que, diga-se, funcionava muito bem para enganar a velha carcomida.

Alguns podem se perguntar: "mas e o maestro linguiça, digo, o Professor Girafalez?" Pois bem, lembramos que ele, algumas vezes teve atitudes, digamos assim, diferentes das atitudes de um homem comum, por exemplo, quando não tinha coragem para pedir Dona Florinda em casamento, quando pediu ajuda ao Seu Madruga e os meninos da vila pensaram que ele e o Seu Madruga tivessem um caso, pois é.

À época, o professor das crianças tinha dúvidas, mas resolveu, depois de certa idade, não se reprimir mais, confidenciou à Dona Florinda o que sentia como homem, não desejava constituir família, não ser pai biológico, mas, realizar-se, descobrir-se, ou seja, entrar para um seminário e ordenar-se padre. A príncípio, Dona Florinda mostrou-se triste, mas, no fundo, sentiu-se aliviada, pois era apaixonada por outro homem.

Inclusive, uma das justificativas de Kiko, que era a de estar realizando trabalhos em paróquias que mais deixava Dona Florinda tranqüila, pois já lhe vinha, de imediato, a figura do quilômetro percorrido, digo, Professor (agora monsenhor) Girafalez, entretanto, foi justamente este o estopim que desencadeou a mais terrível descoberta da valentona do quatorze em toda sua vida, que dizia justamente respeito ao seu tesouro.

Quando completara dezoito anos, Kiko já tinha terminado o segundo grau e dizia para sua mãe que seria professor, fato que a deixou encantada, e ainda acrescentou: “estou ensinando como voluntário na paróquia de Nossa Senhora de Guadalupe”. Dona Florinda, obviamente, ficou derretida, mas, ainda não imaginava que era uma desculpa para que seu filho passasse períodos mais longos fora de casa e para que não fracassasse em tentar um curso ou concurso mais concorrido.

Por coincidência, e por puro vacilo do bochechudo, era justamente a paróquia para onde Girafalez tinha sido designado e, um belo dia, a velha coroca decidiu fazer uma visita ao local, quando, para sua surpresa, viu, justamente, a figura conhecida sua dos tempos de vila e, finalmente, nosso amigo leitor terá a oportunidade de ler um diálogo neste capítulo, afinal, creio que ele poderá explicar muitissississississississíííííííssimo melhor do que este que vos tecla:

—Professor Girafalez!

—Dona Florinda!

—Que milagre o senhor por aqui!

—Er, acredito em milagres, mas fui designado pra cá.

—Oh, é verdade e acabei esquecendo que o senhor não é mais professor.

—Sem problemas, nem tudo na minha carreira de docente foram espinhos, também guardo boas recordações do magistério.

—Eh, não sabia que o senhor tinha fabricado doces e não conheço este seu amigo.

—Como assim Dona Florinda?

—O senhor disse que era docente e que tinha recordações desse tal de Magistério.

Contendo um discreto riso, ele falou:

—Docente é quem exerce a docência, ou seja, o professor e magistério é a arte de ensinar.

—Ai, desculpa, sou tão distraída.

—Sem problemas, mas, me diga, que bons ventos a trazem aqui?

—Sim, vim ver meu filho.

—O Kiko?

—Sim.

—Como ele está? Nunca mais o vi, deve estar um rapaz.

Esta afirmação motivou numa resposta que mostrava um misto de surpresa e indignação:

—Como assim? Ele trabalha aqui como voluntário! -Foi logo afirmando num tom de certeza e indignação, e, compreendendo como era o gênio de Dona Florinda, o ex professor respondeu com muita calma:

—Bom, se a senhora quiser pode ver todos os nossos trabalhos na paróquia.

Dona Florinda assustou-se, principalmente porque sabia que, como padre, ele não podia mentir, nem tinha motivos pra isso, afinal, ainda enquanto professor não se negava em entregar as notas do tesouro pessoalmente a sua mamãe querida, mesmo que tivessem saído de um congelador, ou seja, estivessem abaixo de zero.

—Tudo bem, então vamos.

Visitaram todos os setores, pastorais, enfim, em nenhum deles alguém conhecia um sujeito chamado Frederico Junior, à exceção do próprio Padre Girafalez e do Sacristão, um sujeito jovem, com um antigo e inseparável boné de aba reta, o último a perguntarem:

—Godinez!

—Não fui eu, Padre!

—Ai, a velha mania! Mas não estou te acusando de nada!

—Então, quaisquer coisas de errado podem dizer com certeza que não foi eu!

Muito mais paciente do que antes, o velho Lingüiça, digo, Girafalez continuou, perguntando se ele tinha visto seu velho colega de escola e vila, ao que o nosso primeiro aba reta da história mundial respondeu negativamente.

Ao ouvir isto, a velha mãe, que já estava perdendo as esperanças, aparentou estar com um mundo desabando sobre sua cabeça:

—A senhora está bem Dona Florinda? -Perguntou o sacristão.

—Sim, sim, muito obrigado, preciso ir para casa.

—Então até mais ver Dona Florinda! Se precisar estamos às ordens!

—Obrigada Padre, até a vista!

No caminho, cabisbaixa, a velha mãe foi recordando de sua vida, desde os tempos de recém casada, passando pela morte do marido, a mudança de casa, a venda de seu restaurante para um antigo garçom calvo seu e, inclusive, as bofetadas que carinhosamente ministrava à face corroída de aguarrás de Seu Madruga, imaginando, posteriormente, como faria para descobrir o que seu tesouro estaria fazendo.

Aliás, seu Madruga sempre foi um homem normal e pacato, no entanto, há aspectos obscuros de sua vida. Recordamos de Dón Ramón como um sujeito sem um tostão no bolso, mas sempre com um sorriso no rosto, tinha dificuldades para arranjar trabalho, seja quando procurava, seja quando travava batalhas épicas contra a arte de estar cansado antes mesmo de fazer alguma coisa, vulgo: preguiça.

A nossa memória também nos traz a imagem de um homem boêmio e aí vem a justificativa para o seu sumiço, deixando sua filhinha aos cuidados de sua avó, Dona Neves: da mesma forma que Frederico, Seu Madruga teve envolvimento com gente barra pesada e, por conta de dívidas desta natureza, teve que fugir do país, refugiando-se em Cuba, conforme veremos adiante.

Com relação ao “Restaurante Doña Florinda”, o mesmo foi vendido quando se mudou da Vila, como forma de justificar a compra de uma casa tão opulenta, no entanto, qualquer um com um mínimo de bom senso, inclusive o tonto do atual proprietário, conseguiria entender que o restaurante não valia o preço da casa.

A história do restaurante que conhecemos desde o proprietário anterior que ficava com as mãos no queixo, não trabalhava com miúdos, servia panquecas frias e nutria “grande respeito” pela vovozinha que morava na casa de número setenta e um da vila é um caso interessante e merece um capítulo à parte, entretanto, podemos adiantar algumas coisas.

O mesmo foi vendido ao antigo garçom carequinha que o rebatizou de “Restaurante Teto Lizita”, como referência à sua deficiência capilar, no entanto, o mesmo adquiriu dívidas impagáveis por conta de uma bela amante sua conhecida por Paraíso, digo, Glória.

Já o tonto que o comprou do carequinha era um jovem com seus dezoito para dezenove anos, muito atrapalhado, que também foi garçom nos tempos de Dona Florinda, mas que conseguiu muito dinheiro vendendo garrafas vazias para o dono da venda da esquina e depois plantar milhões de carambolas, para depois colher as milhões de carambolas e vender as milhões de carambolas, e assim por diante.

É isto mesmo caros leitores! Depois de tanto tentar resumir o que houve com outros personagens (inclusive secundários), chegou a hora de falar o que houve com a personagem principal, o velho Chaves, o órfão cujo esconderijo secreto era seu barril e que ninguém sabia seu nome.

Ao comprar o restaurante, o então novo proprietário rebatizou-o com ares nostálgicos, novamente, para “Restaurante Doña Florinda”, tanto por lembrar dos tempos onde teve seu primeiro emprego com salário, como por morar, atualmente, na mesma casa quatorze da sua antiga patroa, já que a sua casa de número oito havia desabado.

Isso mesmo, o jovem Chaves não era tão tonto como parecia ser, guardou suas economias e começou a construir sua vida depois de terminar os estudos, entretanto, sua vida pessoal ainda era um grande rebuliço.

Passava sua adolescência vendo as meninas bonitas que passavam pela rua e pela vila, no entanto, havia três, em especial, que mexiam com seu íntimo, uma era sua paixão de infância, Paty, da qual nunca mais soube notícias, mas que veremos em outro capítulo, Popis, que terminou os estudos junto com ele, mas que perdia todo encanto quando ouvia sua mesma voz fanhosa de infância.

A terceira merece algum destaque, embora tivessem terminado os estudos juntos, Chaves e Chiquinha estavam sem se falar desde os quinze anos, quando uma parte das economias do pobre órfão havia sumido e sua então musa da casa dezessete, havia ganhado ares de vilã, embora, como veremos adiante, não tenha sido culpa dela.

A propósito, a antiga Chiquinha, sardenta e de óculos, havia dado lugar a uma mulher que tinha amadurecido cedo, quando perdeu o contato com seu pai, com a morte da sua “Biscavó” e depois de ter sido adotada por um casal que também era da vila e tinha morrido, por conta da idade, pouco tempo depois de adotá-la: Jaiminho e Dona Clotilde.

Esta mesma mulher não havia herdado a (in) disposição e a sorte (azar) do velho pai, pois também era uma morena bonita e tinha um emprego razoável como vendedora de sapatos numa loja próxima à vila, localizada na esquina da antiga venda, onde o menino do barril vendeu suas garrafas e começou a tornar-se um homem (neste caso, não em sentido figurado), difícil situação, pois sequer se cumprimentavam ao se encontrarem, o que ocorria com frequência numa vila tão pequena.

Dona Florinda chegou a sua casa angustiada, sem saber o que fazer, mas com muitas reflexões e um sentimento cruel de culpa, o medo nunca ocupou sua cabeça como agora, não sabia que horas seu tesouro voltaria, o que lhe dava ainda mais tempo para pensar e tomar uma atitude, ligar para a polícia? Parecia o mais certo a fazer, mas acabou por ter uma ideia que considerou melhor.


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